sexta-feira, 31 de agosto de 2018

A Promessa e A Pane



Sinopse: A promessa, primeiro título deste livro, é uma obra engenhosa, filosófica e paradoxal, que satiriza e reverencia o gênero policial de forma simultânea. Já a novela A pane revela o brilhantismo de Friedrich Dürrenmatt em elaborar debates teóricos ao mesmo tempo que presenteia o leitor com uma história tão cômica quanto original. Em ambas as obras, saltam aos olhos alguns dos temas que tornaram Dürrenmatt um dos maiores escritores suíços do século XX: a justiça, o dever moral, a responsabilidade e a absurda força do acaso.

Na edição de agosto a TAG uniu um romance e um conto do suíço Friedrich Durrenmatt. Em ambos o autor mexe com a imaginação do leitor, fazendo o mesmo idealizar diferentes caminhos para as histórias até ser impactado com o seu final.

No romance A Promessa temos um escritor do gênero policial sem nome que termina a sua palestra para um público não exatamente animado, pois na mesma cidade havia outra com Emil Staiger sobre o Goethe tardio. No hotel ele encontra o doutor H., um ex-comandante de polícia do cantão de Zurique que lhe oferece carona e ele aceita.

O silêncio no hotel era inumano; dormir, nem pensar, pois logo surgia o medo de nunca mais acordar.

No caminho doutor H. indaga a inverosimilhança das histórias policiais, onde tudo é organizado para que o detetive principal encontre a solução nas páginas finais. O que dificultaria a vida real dos policiais, já que as pistas dos crimes nem sempre possuem obviedade.

Para demonstrar como está certo, ele para em um posto de gasolina, onde o homem que está na bomba demonstra sinais de estar fora da realidade. Saindo do local se descobre que ele se chama Matthäi e era um tenente sênior que estava prestes a ir para a Jordânia no auge de sua carreira quando uma ligação mudou a sua vida.

Não tinha um bom pressentimento sobre aquele caso; de alguma forma, tudo tinha dado errado; eu só não sabia como, apenas sentia.

Uma garotinha assassinada, uma promessa feita sem querer aos pais da criança, a certeza de que o acusado não era o culpado o levam a abandonar tudo e partir para uma investigação própria. Descobrir o verdadeiro assassino vira a sua obsessão.

E neste momento o leitor passa páginas e páginas em dúvida sobre o que ocorreu, torcendo e se horrorizando, visto que é sabido o seu estado atual. Em um romance tipicamente policial um final feliz é quase certo para o seu detetive. Mas na obra de Friedrich ficamos na mão de uma suposta realidade.

Pois o que o assassino não ousa fazer com mulheres ele faz com meninas.

Já em A Pane temos o representante comercial Alfredo Traps que se vê com problemas no carro e a previsão de conserto somente para o outro dia. Ele possuí duas opções: pegar um trem e em 30 minutos estar junto à família, ou dormir na pequena cidade.

Ao optar pela segunda opção, Traps se depara com outro problema: todos os hotéis estão ocupados devido a um evento. Sua única solução é pedir abrigo em uma mansão onde vive um juiz aposentado. E neste momento você não sabe mais se está em uma história de comédia, terror ou reflexão da personalidade humana.

Existem, ainda, histórias possíveis, histórias para escritores?

Graças ao juiz e seus amigos aposentados somos apresentados à tertúlia, um tribunal com juiz, promotor, defensor e carrasco, onde o interrogatório é feito com boa comida e muitos vinhos de qualidade e o veredito final só é dado após a sobremesa.

Entre uma taça e outra a inocência irá se perder, e entre risadas e queijos, Traps irá analisar seus atos de outra forma. Deixando ele e o leitor em dúvida sobre o seu papel em várias situações da vida. O engraçado é que justamente por ele ser comumente malandro, o leitor pode ficar preocupado cada vez que ele abre a boca e dá argumentos ao promotor.

Nosso jogo é um tanto singular, talvez. Passamos a noite encenando nossas velhas profissões.

De presente está a primeira parte em A Pane, onde o autor começa questionando se ainda há historias possíveis para escritores, o que ele pode ou não produzir. A quem ele deve atender. Uma reflexão sobre a escrita e sobre a nossa sociedade.

Duas histórias muito bem escritas, que não apenas distraem, mas trazem as mais diversas reflexões.

A Promessa / A Pane
Das Versprechen / Die Panne
Friedrich Durrenmatt
Tradução Petê Rissatti e Marcelo Rondinelli
TAG - Editora Liberdade
1986 - 220 páginas

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Objetos Cortantes



Sinopse: Camille Preaker é repórter em Chigago e, a pedido de seu editor, Frank Curry, retorna a sua pequena cidade natal para investigar um mistério envolvendo a morte de uma menina e o desaparecimento de outra. Curry acredita se tratar de um caso de assassinatos em série que, com uma cobertura perspicaz, daria prestígio e destaque ao jornal. Hospedada na casa da família, Camille precisa reaprender a conviver com a mãe, o padrasto e a meia-irmã, além de lidar com as memórias difíceis de sua infância e adolescência que tanto quis esquecer.

Camille Preaker é uma jornalista medíocre, que trabalha em um jornal de menor expressão em Chicago e habita um local totalmente impessoal. Seu editor Frank Curry decide, por economia, envia-la para a sua cidade de origem Wind Gap no Missouri (hospedagem gratuita na casa da mamãe) e cobrir crimes envolvendo meninas, na esperança de um furo de reportagem alavancar as vendas.

Em uma cidade pequena os primeiros acusados são forasteiros. O testemunho de um menino cuja mãe luta contra um câncer é desacreditado. Em comum, duas meninas que fogem dos padrões comportamentais, são mortas sem sofrer violência sexual. A marca do assassino: arrancar todos os dentes de suas vítimas.

Eu não tinha animais de estimação com os quais me preocupar, nada de plantas para deixar com um vizinho.

No trajeto de ida de Camille o leitor já irá perceber que tudo o que ela não queria era retornar ao seu 'lar doce lar'. E neste momento fica claro que o livro está mais para um drama psicológico do que policial/suspense.

O título Objetos cortantes é a definição da própria personagem, que acaba de sair de uma clínica para tentar controlar o desejo de eternizar palavras em seu próprio corpo. Qualquer objeto afiado serve. E as palavras dizem muito sobre como ela se vê e o que deseja.

A casa estava perfeita, inclusive com as dezenas de tulipas cortadas em vasos no saguão de entrada.

Sua família é composta pela mãe, uma meia-irmã morta, uma meia-irmã adolescente e o padrasto. Ricos e fúteis, bem vistos e totalmente desequilibrados. Eles são o foco da história, as meninas apenas um espelho para Camille relembrar a sua própria infância e sair em busca de informações que justifiquem a falta de amor materno com a qual foi criada.

Primeiro livro que leio da autora Gillian Flynn, achei que a história tinha potencial, mas caiu no óbvio pela facilidade de saber quem é o assassino, nem mesmo as cenas de sexo conseguem dar tesão a história. No que se refere ao drama psicológico, não consegui criar uma conexão com a personagem, ela pipocava entre as páginas montando um quebra-cabeça de quarenta peças sem me conquistar.

Eu nunca pude ter nada só para mim. Elas não eram mais um segredo meu.

Não sei se a tradução brasileira ficou a desejar, visto que o livro é tão elogiado, ou se a forma foi para manter o estilo de escrita original, mas o fato é que não existe tensão. Os diálogos e as relações são superficiais, assim como as mortes. Não há expectativa, braços arrepiados, o desejo desesperado pela próxima página para saber mais.

Creio ter sido isso o que mais me chateou, a falta de impacto e empatia pelas personagens. Terminei a leitura na esperança de ser surpreendida, de um melhor uso de personagens como Adora. Mas obtive um desfecho rápido e até mesmo um tanto infantilizado.

Objetos Cortantes
Sharp Objects
Gillian Flynn
Tradução Alexandre Martins
Editora intrínseca
2006 – 254 páginas

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

História do novo sobrenome



Atenção: Esta resenha possuí spoiller, pois é difícil escrever sobre uma continuação sem citar algo do livro anterior, neste caso A Amiga Genial.

Sinopse: Neste segundo romance da chamada série napolitana, veremos suas duas protagonistas, Lila e Elena, crescerem, e com elas todas as dores e as delícias de sua juventude em meio a um mundo repleto de caminhos que se abrem enquanto portas se fecham - se a sabedoria, o crescimento e o amor são possibilidades, eles ocorrem em um cenário limitado por uma disposição social por vezes cruel. Neste maravilhoso romance de formação de duas meninas, certamente o leitor vai se surpreender ainda mais com as possibilidades do universo de Elena Ferrante - esse mundo árido, tenso, delicado, profundo e, sobretudo, humano.

O que Marcello Solara estava fazendo com os sapatos desenhados por Lila? A cena final do primeiro livro é a charada respondida no segundo: nada é como parece ser. No final da adolescência tudo muda conforme as nossas escolhas, e no caso de Lila e Elena, conforme os caminhos escolhidos mesmo em uma época onde as mulheres não possuíam tanto direito assim de ditar o seu.
Quando me pediu para jurar que nunca abriria aquela caixa, por motivo nenhum, jurei.
Lila se vende, literalmente, em um primeiro momento ao conforto e ao dinheiro. Seu castelo se revela de vidro ainda na festa de casamento, quando Stefano se mostra mais parecido com o pai do que se imaginava. A Sra. Carracci não é fácil, e nela temos a face mais fria de Lila. Sim, ela é inteligente. Sim, ela é manipuladora. Sim, ela usa a sua beleza. Mas também sofre pela falta de oportunidade de estudar, por tanto potencial não aproveitado. E assim ela agrada e humilha Elena, tentando mostrar toda a sua superioridade quando na verdade provavelmente ela trocaria tudo para estar no lugar da sua amiga. 

Esforçada e inteligente, com uma autoestima que precisa ser trabalhada com urgência, Elena supera as suas próprias expectativas, e mesmo quando incorpora Lila para espantar os seus medos, fica nítido que ela tem coragem para muito mais do que ela mesma imagina. Seu sentimento de inferioridade ainda lhe prejudica, lhe cega, e para acabar com isso só se afastando de todos. Aquele bairro, aquela família, aqueles amigos não são para ela. Eles a sufocam. Eles são sabem como lidar com ela. Ao mesmo tempo, ela é a esperança de uma presença feminina que não deixe que outro sobrenome assine suas conquistas.
Durante todo o tempo, mesmo quando falou da própria violência, valeu-se de um dialeto cheio de sentimentos, sem defesas, como o de certas canções.
As amigas se tornam contrapontos. Lila é a esposa que apanha, grita, controla e se submete. Elena é a estudiosa, cujo esforço vai abrindo mais portas do que o previsto. E o empurrão final para isto ocorre nas férias de verão, em que Lila paga para Elena lhe acompanhar, e esta sem imaginar o que aconteceria sugere a praia onde sabe que irá encontrar a presença de seu antigo amor: Nino. E estes dia de sol irão mexer com o que eles tem de melhor e pior.

Em paralelo, mas com menor ênfase, estão a ida de Enzo e Antônio para a guerra. Entre as meninas traições, fofocas e intrigas rolam soltas em um retrato claro da falta de unidade feminina para se defender dos desmandos machistas que se tornaram padrão dentro do seu meio. E o mais assustador, o fato da personagem Melina se tornar um espelho de algumas das mais novas quando estas descobrem a paixão.
Não sentia vergonha dela, jurei, mas escondi que temia me envergonhar.
O fato é que cada um entrará na vida adulta colhendo o resultado de suas escolhas anteriores. E na escrita fluída de Elena Ferrante é isto que faz desejar ler o terceiro volume da série.

Sobre a narrativa, no primeiro livro senti falta da versão da Lila para os fatos. Ela é uma personagem riquíssima, que desperta sentimentos conflitantes para quem convive com ela na ficção e para quem acompanha através da leitura. No segundo livro a autora usa um recurso para aliviar um pequeno percentual desta curiosidade, embora ainda insuficiente para mim.

História do Novo Sobrenome
Série Napolitana – Segundo Volume
Storia del nuovo cognome
Elena Ferrante
Tradução Maurício Santana Dias
Biblioteca Azul – Editora Globo
2011 – 471 páginas


Outros livros de Elena Ferrante resenhados no Blog:
A vida mentirosa dos adultos
Amiga Genial
História de Quem foge e de Quem fica
História da Menina Perdida

Dias de Abandono


quarta-feira, 15 de agosto de 2018

as últimas testemunhas



Sinopse: Zina Kossiak tinha oito anos quando a Segunda Guerra Mundial assolou a antiga União Soviética, e foi uma das muitas entrevistadas pela jornalista biolorrussa Svetlana Aleksiévitch, vencedora do prêmio Nobel de literatura de 2015. Ela conversou com vários sobreviventes que eram crianças durante a guerra e presenciaram horrores que nenhum ser humano jamais deveria experimentar. Os relatos francos desses indivíduos, adultos à época das entrevistas, mas nunca antes ouvidos, são a matéria dolorosa e potente deste livro colossal.


"Não gosto de lembrar...Não gosto. Em suma: não gosto..."

O livro de Svetlana Aleksiévitch foi o mais difícil de resenhar até hoje. As palavras viraram vozes e ainda soam em meus ouvidos. Sua tristeza, dolorosamente real, parece ter passado das páginas para os meus dedos e entrado na corrente sanguínea, deixando o coração apertado mesmo após virar a última página. 

"Eu já tenho 51 anos, tenho os meus filhos. Mesmo assim, eu quero a mamãe..."

As últimas testemunhas são entrevistas com sobreviventes da segunda guerra mundial feitas pela escritora e jornalista nascida em Stanislav, que ganhou o Nobel de literatura em 2015. Assim como ela, eles viviam na antiga União Soviética, com a diferença que eles viram os alemães invadirem suas cidades, suas casas e suas almas.

"Uma vez, na rua, encontrei um homem que parecia o papai. Passei muito tempo andando atrás dele. É que eu não vi o papai morto..."

O que estes relatos possuem de diferentes? O fato de durante este período eles serem crianças. São lembranças de sua não infância. De um dia acordar cheio de expectativa e de repente ver a brincadeira guerra se tornar real. Ou de quem nasceu no pós-guerra, como Svetlana, e mesmo assim teve a vida marcada por fatos não cicatrizados por seus sobreviventes.

"Tenho medo da felicidade. Sempre acho que logo mais ela vai acabar."

Para tornar a presença da autora invisível, as respostas se tornam relatos de tamanhos variáveis, conforme a dor de cada um permite lembrar e falar. Remexer no passado para estes adultos que tiveram uma etapa da vida pulada é mais do que difícil, muitos jamais assimilaram as perdas. As idades são variadas, assim como as experiências durante e após o período da segunda grande guerra. Podendo ser um fato isolado, ou do primeiro ao último dia de um período que deve ter parecido eterno.

"Não entendo o que são pessoas desconhecidas, porque eu e meu irmão crescemos entre pessoas desconhecidas."

Em comum a perda de um estilo de vida, o amadurecimento precoce, a fome, a proximidade da morte. O tipo de realidade difícil de imaginar para quem está na segurança de sua casa. 

"Boris de fato era nosso, porque haviam matado a mãe e o pai dele, e queriam jogá-lo no gueto."

Muitos relatos são semelhantes, pois as cidades de origem são as mesmas, parecendo que apenas os nomes mudaram. O que acentua a verdade do que é descrito, não há distorções, apenas páginas e páginas gritando que sim, todo aquele horror é real.

"Quando eu conto, mordo a mão até sangrar para não chorar..."

Para quem lê fica a falta de explicação para soldados perderem a sua humanidade e agirem como monstros. O uso da violência de forma gratuita, desproporcional e totalmente desnecessária. Seguido de um choque por saber que muitas pessoas ainda vivem isso, em guerras que damos pouca atenção por estarem distante de nós.

"Como morreu, se hoje não atiraram?"

E quando os soldados não os encontravam, uma outra guerra, esta invisível, aparecia para atormentar. Eram as doenças que se aproveitavam da fragilidade dos pequenos que passavam fome, frio e carência. 

"Vi o que não deve ser visto... O que o ser humano não deve ser."

Os que tiveram sorte ainda conseguiam ficar com a sua família, mas muitos ficaram sem rumo, sendo amparados por desconhecidos ou cedo virando voluntários de uma guerra que nem eles entendiam.

"Como sobrevivi se morri cem vezes?"

Complementando os relatos estão as fotos. Crianças em campos de concentração. Crianças sentadas em destroços. Deixando ainda mais nítido o recado de quem são as maiores vítimas de toda essa loucura.

"Na aldeia não sobrou nenhuma criança. Não havia com quem brincar na rua..."

Um livro para nos tirar dos eixos, que deveria ser leitura obrigatória em todos os exércitos, e nos faz pensar no que a falta de compaixão pode nos transformar.

"No inverno às vezes deslizávamos sobre os cadáveres alemães congelados, eles ainda ficaram muito tempo nos arredores da cidade."

As frases em itálico fazem parte de alguns dos relatos descritos no livro, raramente eu faço isso, mas desta vez se fez necessário para reforçar a força destas histórias.

As últimas testemunhas
crianças na segunda guerra mundial
Svetlana Aleksiévitch
Tradução: Cecília Rosas
TAG – Companhia das Letras
2013 – 317 páginas