sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

O Mundo se Despedaça



Sinopse: Um dos livros mais importantes da literatura africana do século XX, O mundo se despedaça conta a história do guerreiro Okonkwo, da etnia ibo, estabelecida no sudeste da Nigéria. Okonkwo, um dos principais opositores dos missionários brancos, precisa encarar a desintegração da vida tribal e de tudo o que conhecia até então.

Publicado originalmente em 1958, dois anos antes da independência da Nigéria, o romance de estreia de Chinua Achebe foi traduzido para mais de quarenta idiomas e consolidou o autor como um dos mais notáveis de sua geração.

Em seu primeiro livro, o autor Chinua Achebe descreve uma cultura que conhece bem, pois a sua família pertence à etnia Igbo, que na África é um dos maiores – e mais tradicionais – grupos étnicos. Além disso, Achebe é considerado o pai da literatura nigeriana, justamente por resgatar a visão das tribos em um mundo acostumado a ler a visão dos colonizadores.

O livro de outubro da TAG Curadoria tem como curador o escritor Alberto Mussa e é dividido em três partes, nos treze primeiros capítulos o leitor vive a rotina do personagem principal chamado Okonkwo em sua aldeia paterna, local onde ele vive com suas três esposas.

Qualquer pessoa que conhecesse a luta implacável que travara contra a miséria e o infortúnio não poderia dizer que ele apenas tivera sorte.

Okonkwo é um guerreiro e um trabalhador, reconhecido pela sua aldeia, mas também é machista e truculento. Um homem atormentado pela imagem do pai, a quem considerava um fraco.

Enfim, um ser humano como outro qualquer, com suas qualidades e defeitos. E é através dele e de sua família que acompanhamos a cultura da aldeia Umuófia, seus rituais, festas, julgamentos e crença. E justamente neste momento o leitor mais sensível pode se chocar ao se deparar com recém-nascidos jogados na mata para morrer, ou com o destino do jovem Ikemefuna.

Os mais velhos e as eminências da aldeia sentaram-se em seus próprios tamboretes, levados até ali por seus filhos menores ou por seus escravos.

Mas Okonkwo comete um crime, que a tribo considera do tipo feminino, quando não há intenção de realiza-lo, sua sentença são sete anos fora do clã, e com isso ele e toda a família se mudam para a aldeia da família da sua mãe.

A parte 2 da história nos apresenta Mbanta, e aqui o leitor pode perceber as diferenças culturais de um clã para o outro, assim como a complexidade deste personagem tão rígido em seus conceitos, que parece não ter espaço nenhum para a gratidão.

E neste contexto entra o ótimo diálogo com o seu tio Uchendu, onde é realizado um paralelo da relação dos filhos com o pai e com a mãe, onde a figura feminina não parece ter um papel tão desimportante quanto na primeira aldeia.

A vida de um homem, desde o nascimento até a morte, era uma série de ritos de transição que o aproximavam cada vez mais de seus antepassados.

Mas é quando um de seus filhos Nwoye, ao qual o personagem classifica como degenerado e efeminado, resolve se juntar a igreja dos recém-chegados ingleses que o leitor é preparado para chegar a terceira parte: a colonização da África.

Era verdade que eles andavam salvando os gêmeos atirados no mato; porém nunca os traziam à aldeia.

Inicialmente os clãs vivem sem problemas com o homem branco, ao destinar-lhe o lugar que consideram amaldiçoados, eles imaginam que logo ele se vá. Mas como bem sabemos, não é isto que acontece. O choque de cultura e valores é inevitável, e as consequências aqui são descritas pelo olhar dos que foram invadidos.

O mais interessante de O mundo se despedaça é que ele não julga ninguém, nem os clãs, nem os colonizadores. É como ler um documentário que te faz ficar imerso em uma cultura completamente diferente da que se conhece.

Para melhor aproveitamento é necessário exercer a empatia, pois estamos falando de outros hábitos, e não raro é fácil apontar o dedo e questionar os costumes de um lugar e época ao qual estamos muito longes de conhecer.

Um livro que eu realmente achei interessante, e recomendo para quem gosta de conhecer mundos diferentes. A narrativa em terceira pessoa é bastante fácil, e no caso da edição da TAG há um glossário no final.

Minha única sugestão é deixar a introdução do Alberto da Costa e Silva para depois da leitura, ela me pareceu mais clara após finalizar a história. E para quem quiser saber mais sobre a literatura nigeriana, outro livro muito bom que ocorre já com os estrangeiros vivendo entre os povos em grandes cidades é o Alegrias da Maternidade.


O Mundo se despedaça
Things Fall Apart
Chinua Achebe
Tradução: Vera Queiroz da Costa e Silva
TAG Curadoria – Companhia das Letras
1958 – 236 páginas

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Intérprete de Males



Sinopse: Celebrando vinte anos de lançamento, Intérprete de males continua mais relevante do que nunca, abarcando todas as consequências possíveis de um mundo globalizado. Jhumpa Lahiri nos toma pela mãe e, a cada história, nos apresenta personagens que se encontram no meio do caminho de um fio condutor identitário: em meio a deslocamentos e realocações, quantas origens e culturas podem habitar uma pessoa?

Tendo como curadora a jovem escritora indiana Rupi Kaur, a TAG Curadoria trouxe no mês de setembro o livro de contos Intérprete de Males, que se tivesse que ser resumido em uma única frase eu diria que ele fala sobre a alma humana.

Composto por nove contos, cujas histórias divergem - mas ao mesmo tempo se complementam -, Jhumpa Lahiri nos fala de sentimentos sem precisar dizê-los. O comportamento de seus personagens nos faz sentir o mesmo que eles, envolvendo o leitor de uma forma gentil, mesmo nas histórias mais fortes.

Os contos

Uma questão temporária nos trás um casal de indianos que moram em Boston. Logo de início o leitor percebe que a algo errado na relação. Em sua rotina uma mudança: temporariamente a eletricidade será cortada por uma hora, durante cinco noites.

Na escuridão a esposa sugere ao marido que eles contem alguma coisa um para o outro que nunca foi contada antes. E neste momento passado e presente são revelados não só para os leitores, como para o casal, iluminando as entranhas do relacionamento.

Quando o Sr. Pirzada vinha jantar temos uma menina que nos conta a história de um homem que ia à sua casa nos Estados Unidos acompanhar as notícias de sua terra que estava em guerra. No seu lar distante estão sua esposa e sete filhas, com a qual tentava toda semana ter contato via correio sem sucesso.

Neste conto além da situação de guerra no Paquistão no ano de 1971 é explicada a partição que dividiu a Índia de uma forma muito clara, afinal, quem está perguntando é uma criança.
O conto possui toda uma delicadeza, ao mesmo tempo em que relata a cultura indiana, ela cita a introdução da cultura americana na família. 

Intérprete de males é o conto que dá título ao livro, aqui temos o guia de turismo Sr. Kapasi que está transportando pela índia um casal filhos de indianos que nasceu nos Estados Unidos.

Durante o caminho eles passam a conversar e é quando o guia revela que possui outro emprego como intérprete para médicos. Tal revelação faz com que a mulher comece a conversar mais com ele, e assim o leitor vai desvendando a vida de cada um.

Um durwan de verdade conta a história de Buri Ma, uma mulher de sessenta e quatro anos que não possui casa e sobrevive limpando um prédio que não possui durwan, isto é, um síndico.

Para os moradores vive a contar sobre a riqueza que possuía no passado e que perdeu após ser deportada de Calcutá depois da partição da Índia. Mas tudo irá mudar quando uma das famílias melhora financeiramente e uma pia é colocada para uso geral dos moradores.

Sexy é o único conto cuja personagem central é uma americana. No seu dia-a-dia ela vive entre as confidências da colega indiana cuja prima havia sido abandonada pelo marido e o seu relacionamento com um indiano casado.

E ao contrário do que se possa imaginar, o foco da história não é a diferença cultural, mas a visão que Miranda tem de si, desde suas roupas até o que ela se sujeita sem precisar.

A Sra. Sen trás novamente a voz de uma criança. Aqui temos um garoto americano com quem a mãe não tem com quem deixar e a Sra. Sem, a esposa de um professor que precisa aprender a dirigir.

Através do olhar do menino entramos na rotina desta mulher que todas as tardes corta vários vegetais e desenha uma pinta acima das sobrancelhas. Sua adaptação ao novo estilo de vida parece tão complicada quanto guiar um carro.

Esta casa abençoada é sem dúvida o mais divertido dos contos. Aqui temos Sanjiv e Twinkle, ambos indianos, casados por um arranjo familiar. 

Em sua nova casa nos Estados Unidos, ela passa a encontrar peças cristãs, virando uma espécie de caça ao tesouro enquanto ele tenta argumentar que os itens não fazem parte da sua cultura.

O tratamento de Bibi Haldar é junto com Um durwan de verdade os contos pesados do livro. Bibi sofre de um mal, vive em uma peça cedida pelo primo e trabalha para ele.

A mulher já passou por vários tratamentos, mas nenhum resolveu, até que vem a sugestão de que para curar ela necessita de um marido. 

O bacana deste conto é que se não simpatizamos com o primo e a sua esposa, existe uma sonoridade entre as mulheres que rodeiam Bibi que dão leveza a história.

O terceiro e último continente temos um indiano que já passou pela Índia, por Londres e agora está nos Estados Unidos trabalhando na biblioteca do MIT.

Recém-casado, precisa se organizar para trazer a esposa que mal conhece, enquanto isso ele aluga um quarto na casa de uma senhora centenária, aonde um diálogo irá se repetir por muitas noites.

A escrita de Jhumpa Lahiri é suave, sendo muito fácil ler as suas histórias, mesmo que depois você as fique digerindo. Ao mesmo tempo em que ela nos apresenta um pouco da cultura indiana, ela nos faz refletir por sentimentos comuns a todos os seres humanos, que vão da felicidade, inveja, amor, tristeza e esperança.

Eu amei este livro, foi uma das minhas melhores leituras de 2019, o que faz com que eu mais do que o recomende. 

Intérprete de Males
Jhumpa Lahiri
Tradução: José Rubens Siqueira
TAG – Biblioteca Azul
1999 – 207 páginas

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Todos Nós Adorávamos Caubóis



Sinopse: Era o ar da serra, nós estávamos ali, com cinco ou seis anos de atraso, mas ali, finalmente ali. Tínhamos sobrevivido a uma briga que continuava pairando sobre nós, a Paris, a Montreal, à loucura das nossas famílias. Aquela viagem era mais um fracasso irresistível.

No mês de Agosto a indicação de Noemi Jaffe para a TAG Curadoria foi a Road Trip da escritora Carol Bensimon pelo interior gaúcho.
Todas as ótimas ideias já pareceram más ideias em algum momento.
Narrado em primeira pessoa pela personagem Cora, temos uma jovem adulta, filha de pais separados, que atualmente mora em Paris. Após ser avisada pelo pai que o seu meio-irmão iria nascer, ela utiliza a passagem oferecida para colocar um antigo plano em ação.

Assim ela chama sua amiga e objeto de desejo Julia para fazer uma viagem pelas estradas do interior do Rio Grande do Sul. As duas não se veem a anos, desde que Julia resolveu ir embora para Montreal.

Por alguns instantes, nós ficamos sozinhas ali, sem saber se batíamos palma ou coisa que o valha.

O plano é seguir sem rumo, mas com destino final a cidade natal de Julia. Mas aqui não estamos falando de um livro de descobertas, e sim um livro de fuga, Cora, como boa menina mimada prefere correr a encarar a realidade.

O livro é curto e de rápida leitura, mas também é superficial devido à escolha narrativa da escritora. Cora é uma mulher alienada, que vive ao redor do próprio umbigo. De seus diálogos pouco se aproveita, de seus pensamentos temos apenas reclamações e julgamentos.

O reencontro. A proposta da viagem. Tudo agora pressupunha alguma lógica.

Nada é bom para a pobre menina rica. Ela desdenha, desqualifica tudo e todos. Parece ter sempre um dedo pronto para apontar e julgar. E pronta para espernear caso se sinta julgada.

Sobre Julia temos apenas a visão de Cora. Sabemos que como a narradora ela também não sabe lidar com as emoções, que as relações familiares apresentam problemas, e a sua vida até ali foi bem diferente da amiga.

De novo eu pensei em como seria ir embora dali de repente.

E se Julia é uma personagem que ajuda a seguir com a leitura, é também o ponto de questionamento pela história não ter relatado o lado dela, já que a mesma parece ser muito mais rica em conteúdo e informações do que a pessoa que nos conduz.

Os demais personagens, assim como as paisagens, são apenas relances, figurantes que servem para observar o caráter de Cora, que julga o vinho ruim, as cidades tristes, as hospedagens decadentes. 

Era meu lado meio adolescente rebelde que ainda não havia se apagado de todo.

A soma disso tudo tornou essa uma das resenhas mais difíceis de escrever, pois é o tipo de história que você não ama nem odeia, mas simplesmente esquece. Ao virar a última página fica o sentimento se não deveria ter ocupado o tempo com outro livro.

Talvez o fato mais surpreendente de tudo seja que o livro tinha uma base muito rica para se construir o tipo de história que prende o leitor, mas a narrativa fraca impediu qualquer envolvimento maior.

Todos Nós Adorávamos Caubóis
Carol Bensimon
TAG – Companhia das Letras
2013 – 196 páginas

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

A Mão e a Luva



Sinopse: Publicado inicialmente em formato de folhetim, A mão e a luva foi lançado como livro em 1874. Nesta obra, o célebre Machado de Assis apresenta ao leitor uma de suas tramas mais românticas: Guiomar, uma jovem adotada pela madrinha baronesa, precisa escolher um dos seus três pretendentes. Essa dúvida envolve o conflito permanente da protagonista, que se vê angustiada com a dicotomia entre emoção e razão. O autor utiliza as reflexões para fazer uma análise complexa da alta sociedade da época, na qual, ao que tudo indica, não havia espaço para sonhadores e ingênuos. 

Terceiro e último exemplar dos clássicos enviados pela TAG como mimo do mês de julho, A Mão e a Luva é o segundo romance de Machado de Assis, que foi inscrito para um folhetim no jornal O Globo.
O romance é anterior ao século XX, mas a personalidade forte da personagem Guiomar faz com que a história possa ser de qualquer época. Embora bela e delicada, a moça se mostra dona do seu nariz, sabendo usar de sua esperteza para ajustar os acontecimentos conforme as suas vontades.

Na história Guiomar é uma jovem órfã criada por sua madrinha, uma mulher de posses que a trata como filha. A união das duas tiveram grandes perdas: Guiomar perde os seus pais, e a baronesa tem na afilhada uma forma de substituir a filha falecida precocemente.

Mas o primeiro personagem a ser apresentado ao leitor Estêvão, um apaixonado por Guiomar há muitos anos que não consegue conquistar o seu amor devido à personalidade um tanto indecisa. Ou em outras palavras um cara tão perdido na vida que chega a ser chato.

Outro pretendente para a moça é o sobrinho de sua madrinha. O casamento de Guiomar e Jorge representam a realização da senhora, tal desejo faz com que a governanta inglesa, Mrs. Oswald, tente ser o cupido da história. O que falta aqui é qualquer sentimento de amor, já que a união entre os dois parece ser mais uma forma do rapaz ficar com toda a herança da tia.

Fechando o trio de pretendentes está o ambicioso e objetivo Luís Alves, amigo de Estevão, o advogado que sabe bem controlar as suas emoções tem como objetivo ser político, e trata Guiomar com cortesia, às vezes até com certo desinteresse.

Inicialmente Guiomar é um mistério para o leitor. Sua mistura de gentileza e frieza no tratamento que dispensa aos rapazes que lhe fazem a corte não permitem saber os seus reais sentimentos. A única certeza inicial que temos é do seu apreço pela madrinha. Mas no decorrer dos atos é possível entender o que ela procura.

A forma narrativa utilizada por Machado de Assis é bastante interessante, pois a maior parte do tempo ele nos conta a história em terceira pessoa, mas em certos momentos é como se o escritor conversasse diretamente com os seus leitores - na qual ele julgava serem na verdade apenas leitoras.

A Mão e a Luva é um livro de leitura rápida e bastante fácil, como um bom folhetim ele desperta a curiosidade de quem o acompanha para saber quais os verdadeiros pré-requisitos para conquistar o coração da protagonista da história.

Reviravoltas sutis acontecem para dar mais emoção ao enredo que às vezes é quase linear, principalmente nas partes que temos o personagem Estevão ocupando o centro da trama. Uma leitura para ver que os clássicos brasileiros não são sinônimo de leitura sofrida.

A Mão e a Luva
Machado de Assis
TAG – L&PM Pocket
1874 – 175 páginas

terça-feira, 8 de outubro de 2019

O Epinício de Sangue



Sinopse: O ar medieval de Toledo, antiga capital da Espanha, sempre instigou a imaginação de Triana. Quando uma série de eventos misteriosos e sinistros acontecem, ela sente-se no limite da insanidade, incapaz de diferenciar entre fantasia e realidade. No entanto, seus instintos persistem em alertá-la do perigo e revelam que as ruas sinuosas e estreitas se transformaram no palco de confrontos entre anjos, demônios e decaídos, que acreditam que ela é a peça chave de uma antiga profecia.

Foi comentando um blog de literatura que o meu caminho virtual cruzou com a da autora brasileira Sinéia Rangel, que gentilmente me enviou o seu livro para ler e agora eu divido as minhas impressões nesta resenha.

O cenário de O Epinício de Sangue é a cidade medieval de Toledo, na Espanha, cujas ruas e locais históricos encantam e mexem com a imaginação dos seus visitantes.
Os decaídos, como ficaram conhecidos, perderam seu halo, suas asas e com eles sua imunidade à dor e ao sofrimento.
Na história a cidade é o lar de Triana, uma jovem estudante que está no ano final da escola, possui pais amorosos e uma melhor amiga que adora se apaixonar.

Mas toda a sua rotina muda quando figuras místicas a cercam, e ela descobre toda a verdade sobre as origens da sua família paterna.
Ao contrário da maioria dos adolescentes que conhecia, era a sensação de viver num século passado o que mais gostava.
Por ser um livro indicado ao público jovem com mais de 16 anos, há também romance, e aqui temos Martín, um anjo que se prepara para se tornar arcanjo e nada mais nada menos que filho de Miguel. Sua missão é observar Triana, mas ele acaba se apaixonando pela moça e precisa se decidir em desafiar ou não as regras celestiais.

Ao ler esta fantasia juvenil me vieram na memória cenas da série Supernatural, e de livros como Apocalipse, onde anjos e demônios estão sempre preparados para a guerra, enquanto o equilíbrio dos humanos é ameaçado. 

Mas o grande diferencial, e no qual eu considero um mérito do livro, é trazer uma nova face para Lúcifer, quebrando o que temos em nossa imaginação.  E apresentar para o público jovem figuras como Lilith, a primeira mulher que teria sido criada por Deus.
Lúcifer nunca desejou a destruição dos homens, tampouco queria governar, seu único pecado foi apaixonar-se.
A narrativa é predominantemente em primeira pessoa, sendo narrado a maior parte do tempo por Triana em uma linguagem rápida, onde a ação dos seres místicos divide espaço com questionamentos típicos adolescentes, que vão da personalidade, passando pelo sexo até os relacionamentos.

Cada capítulo usa uma frase, que pode ser de uma música - para quem busca playlist existe uma com o nome do livro no spotify - ou de outros livros, entre eles o clássico de Miguel de Cervantes: Don Quixote, cujo fidalgo possui relação com a cidade de Toledo.
Havia tantas páginas marcadas pelo desgaste, resultante do manuseio frequente, que abria nos meus trechos favoritos sem qualquer esforço.
Eu, como leitora adulta, senti falta de mais detalhes em relação aos anjos, ambiente menos explorado na história, assim como do próprio Miguel, já que Lúcifer e Samael possuem uma participação mais ampla. Ficando a sensação que uma nova história poderia surgir deste meio.

O livro é vendido em formato de e-book, tornando mais fácil seu acesso principalmente pelo público alvo. A mistura de fantasia e romance pode ser uma boa pedida para quem procura uma leitura rápida ou ficou órfã de livros no estilo Saga Crepúsculo, só que agora com um toque brasileiro.

Sinéia Rangel
436 páginas – 2019
Produzido pela escritora, o livro é vendido pela Amazon.com.br

domingo, 29 de setembro de 2019

Autobiografia



Sinopse: Na Lisboa dos anos 1990, um jovem escritor vê seu caminho se cruzar com o de José Saramago em diversas ocasiões. Desses encontros, nasce uma história em que realidade e ficção se mesclam, num engenhoso jogo de espelhos construído habilmente por José Luís Peixoto que evidencia as possibilidades que cercam o universo da metaliteratura.

Julho é o mês de aniversário da TAG, e seus associados sempre recebem uma edição ainda mais especial. Ao completar cinco anos o que recebi foi um grande presente. Autobiografia é uma homenagem ao escritor José Saramago e a oportunidade do leitor entrar neste mundo tão estranho que se chama escrever um livro.

Temos um José que gosta de beber, jogar e que na ânsia de sua juventude ainda não conseguiu escrever o seu segundo romance. Ele é surpreendido por um convite: escrever a biografia de ninguém menos do que José Saramago. 

Preso, o seu olhar entrou em cada uma daquelas palavras, mestre de obras, avaliou-as por dentro como se fossem casas, pode viver-se aqui?

Enquanto tenta escrever a história, ele percorre Lisboa e convive com diferentes personagens que vão da própria mãe, seu senhorio Bartolomeu, a namorada Lídia, o amigo Fritz, além é claro do próprio Saramago e Pilar.

A primeira coisa a dizer é que a leitura não é fácil. Como a sinopse avisa, temos um jogo de espelhos. Peixoto parece se utilizar de sua experiência pessoal e do que conhecia do próprio Saramago para confundir o leitor em uma narrativa fantástica, que multiplica Josés e situações que vão do cotidiano ao inusitado.

Caminhando pelas ruas de Lisboa, que pode ser o centro histórico ou a periferia onde nenhum turista tira foto, assuntos como imigração e racismo são colocados na pauta, onde questões tão atuais fazem parte do encaminhamento da história, ao mesmo tempo em que leva o leitor a refletir sobre comportamentos tão familiares.

Perante a fatalidade da morte, a herança que um homem foi capaz de juntar é a sua própria existência; termina o tempo, permanece o metal.

A segunda coisa a dizer é que o livro não é uma biografia do Saramago, mas o autor está presente em suas páginas quando identificamos em alguns capítulos o ritmo e a estrutura de livros já lidos. Assim como referências e personagens de histórias hoje muito conhecidas pelos fãs deste escritor português.

O que faz com que o leitor que se entrega ao jogo de biografia tenha um desejo de ler as obras de Saramago referenciadas ao longo do texto ao finalizar a leitura. Uma curiosidade que se mistura com a necessidade de buscar pequenos tesouros ainda não descobertos.

Mas não pense que não há nada de Peixoto, pois há também a poesia e a suavidade característica do autor, o que nos leva de um mundo a outro sem nenhum aviso, exigindo ainda mais a nossa atenção.

Outra característica que deixa forte a presença de Peixoto no livro são as referências à figura paterna, que se apresenta nas mais diferentes formas, impactando fortemente na vida dos seus personagens.

Há uma condensação de potencial nas crianças, se são verdadeiramente crianças são sempre verdadeiramente livres, qualquer impensável pode nascer da sua sede.

A terceira coisa a se dizer é que a muito processo da escrita, mais precisamente do processo criativo de um escritor. Temos observações, pesquisa, nota de rodapé e frases não terminadas. Em um momento raro estamos na mente e nos dedos de quem tenta transformar pensamentos em parágrafos. É possível sentir a pressão, o envolvimento e até mesmo a frustração da quebra do ritmo.

A quarta coisa a se dizer é que temos um narrador sem nome (será o próprio Peixoto?!) que nos conta a história utilizando o português de Portugal, mas isto não deve assustar ao leitor, pois mesmo as palavras desconhecidas são de fácil entendimento no andamento da frase.  

Outro recurso utilizado é de frases do próprio Saramago sobre a literatura, sobre escrita, sobre vida. Elas complementam a experiência e nos levam a repensar outros livros escritos, e ecoam em leituras futuras.

O mundo não sente obrigação de explicar-se. Quem precisa de explicações que as procure.

Um livro sobre livros, sobre autores, sobre vidas. Um livro para pensar e gargalhar, pois sim, neste mundo de Josés há cenas para rir, sonhar e questionar. Autobiografia é para ser lido de coração e mente aberta, pois para os que amam ler ele não acaba após chegar à última página.

Autobiografia
José Luís Peixoto
TAG – Companhia das Letras
2019 – 246 páginas 

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Amor e Amizade & Outras Histórias



Sinopse: Acredita-se que amor e amizade tenha sido uma das primeiras empreitadas de Jane Austen no que viria a ser seu ofício. Criada quando a inglesa tinha catorze anos, esta novela é composta de cartas escritas por Laura, em que conta seus infortúnios amorosos do passado. Já nesta obra Austen brinca com os clichês das histórias de amor da época – como o amor á primeira vista – e dá um verniz de sarcasmo ao enredo de reviravoltas românticas, mostrando um humor que marcaria sua obra dali em diante.

Este pequeno livro composto de três histórias, todas narradas em forma de carta, estão para mim mais como contos, vieram no combo-mimo de clássicos da TAG Curadoria de julho, e foi uma agradável surpresa.

Logo de início temos um prefácio do escritor e jornalista britânico G. K. Chesterton, cujo texto começa por opiniões controvérsias das obras de Jane Austen, passando por uma análise das histórias, até o fato de ter deixado tudo, inclusive seus manuscritos, para a irmã Cassandra.

A seguir o leitor será informado um pouco mais sobre a própria escritora, que teria escrito os seus contos ainda na adolescência, mostrando que sua ironia era algo nato.

O primeiro conto é exatamente o título do livro Amor e Amizade, tudo começa com Isabel enviando uma carta para Laura, solicitando que esta detalhe para a sua filha todas as desgraças pela qual passou.

Neste momento o leitor se torna Marianne, filha de Isabel, e acompanha todas as desventuras um tanto estapafúrdias de Laura, que envolve relações familiares, casamento, interesses, encontros e desencontros.

A crítica à sociedade da época não é nada sutil, o falso moralismo nada mais é que um reflexo de inocência inexistente. Tudo gira em torno de dinheiro, o que nos faz pensar o que Marianne estava pensando em fazer.

A segunda história se chama As Três Irmãs, e é a mais engraçada do livro. Mary inicia a sua carta se dizendo a pessoa mais feliz do mundo por ter recebido uma proposta de casamento do Sr. Watts.

Não, ela não é apaixonada pelo Sr. Watts, conforme ela ele é velho (possui cerca de 32 anos), é muito feio, desagradável e ela o detesta.

Mas ele é rico, e se ela não aceitar irá fazer a proposta as suas irmãs, e se estas não aceitar as filhas de uma outra família. Por saberem que a mãe não irá permitir a negação das três filhas, as duas mais novas resolvem enganar a mais velha, para convencê-la a se casar e assim livrando elas do partido indesejado.

A troca de cartas acaba sendo um jogo de manipulação, onde o trunfo é de quem possuí mais informações para saber como atiçar o lado competitivo da outra.

Para encerrar o conto Uma Coletânea de Cartas, que como as duas primeiras é narrado em forma de missiva. Aqui não temos personagens fixas, mas cartas que são desabafos para amigas sem nomes.
É uma mãe relatando as mudanças na forma de convívio com as filhas, uma jovem frustrada pela paixão, outra jovem que se sujeita a comentários da mulher que a leva para um baile, e outras histórias que parecem narrar à rotina das jovens de uma sociedade que hoje parece muito distante de nós.

O livro é curto e de rápida leitura, uma das coisas que eu mais gostei foram das dedicatórias antes de cada história, como a que Jane Austen dedica ao seu marido: “Ao Ilmo. Edward Austen o seguinte romance inacabado é respeitosamente dedicado por sua obediente e humilde serva, a autora.”. 
Amor e Amizade & Outras Histórias

Love and friedship
Jane Austen
Tradução: Rodrigo Breunig
TAG – L&PM Pocket
124 páginas

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Sonho de uma noite de verão



Sinopse: Sob o solstício de verão, humanos, espíritos da natureza e criaturas fantásticas performam seu espetáculo. Diante de um casamento arranjado por seu pai e pelos deuses, Hérmia decide fugir à noite com o seu amado Lisandro, para a tristeza do seu prometido, Demétrio. Ele, por sua vez, é desejado pela confidente de Hérmia, Helena. Nos bosques mágicos, o quarteto se reconfigura, transformando essa trágica história de amor em uma comédia caótica.

Eu li este livro de William Shakespeare em uma versão juvenil quando estava ainda no colégio e havia me encantado com a leitura. Então foi com prazer que recebi o exemplar que foi mimo do mês de julho da TAG junto com outros dois clássicos.

O livro exige imaginação dos seus leitores, pois é uma peça descrita. Ele não possui partes, possui atos. E ele não possui capítulos, possui atos. Ele é 99% diálogo, havendo apenas exceção para as entradas e saídas de cena.

Acorde o atrevido e ágil espírito do júbilo, expulse a melancolia daqui para os funerais.

A história – ou a peça – é iniciada com uma conversa sobre as núpcias de Teseu, o duque de Atenas, e Hipólita, a rainha das amazonas. Tudo está ocorrendo bem até Egeu e sua filha Hérmia entrarem em cena.

É neste momento que inicia um dialogo onde Teseu cobra da jovem obediência ao seu pai, lhe deixando duas alternativas: ou casa-se com o escolhido Demétrio ou vira freira. Não adianta a jovem dizer que o seu amado Lisandro tem as mesmas qualidades do seu pretendente, pois lhe é exigido que ela assumisse a visão de seu pai.

Mas, então, se amantes fiéis sempre foram traídos, isso é uma lei do destino.

No desespero, ela e Lisandro decidem fugir, iniciando sua fuga por uma floresta. Helena, sua confidente, tentando ganhar o amor de Demétrio lhe conta tudo, e ambos também vão para a floresta. Aqui assistimos Helena ser destratada inúmeras vezes por Demétrio, o que pode agoniar o leitor mais sensível, já que ela permanece seguindo-o mesmo após as humilhações.

O que ninguém sabe é que Oberon e Titânia, rei e rainha das fadas e dos duendes, estão em pé de guerra em plena floresta. E Bute, um duende endiabrado que atende as ordens de Oberon irá fazer a maior confusão em uma quente noite de verão.

Não é você que, às vezes, não deixa a cerveja fermentar, e desorienta os viajantes noturnos e ri de sua desgraça?

 O ritmo de leitura de um Sonho de uma noite de verão irá depender da adaptação à linguagem, que em relação aos dias atuais parece um tanto rebuscada, como no momento em que Egeu se dirige a Teseu dizendo “Cheio de vergonha venho eu, com queixas contra minha prole, minha filha Hérmia.”.

Mas também é uma história divertida, já que Shakespeare exagera na dramaticidade de seus personagens a ponto de se tornarem cômicas, e conforme Bute vai aprontando, mais surreal se torna a noite de cada um dos envolvidos.

O que tu vires quando acordares, toma por teu verdadeiro amor.

A leitura vale a pena por ser um clássico, por ser divertido e por nos fazer exercitar a imaginação. Eu, por exemplo, me imaginei sentada em um teatro aberto, onde parte do cenário era o próprio local.

Sonho de uma noite de verão
A midsummer night’s dream
William Shakespeare 
Tradução: Beatriz Viégas-Faria
TAG - L&PM Pocket
128 páginas

quarta-feira, 31 de julho de 2019

O Sentido de um Fim



Sinopse: Tony Webster vive em Londres. Um dia, recebe uma pequena herança e o fragmento de um misterioso diário de um de seus melhores amigos, Adrian Finn, que cometeu suicídio aos 22 anos. A partir desta lembrança, Webster revisita sua juventude na Inglaterra dos anos 1960 e tenta decifrar os escritos herdados, confrontando sua própria memória, a inexata versão dos fatos e o seu papel na cadeia de eventos que resultou na morte do brilhante amigo Adrian.

O livro de junho da TAG Curadoria teve como curador o escritor Michel Laub, autor várias obras, entre elas O Diário da Queda já resenhado aqui no blog. A obra é do britânico e vencedor do Man Booker Prize Julian Barnes.

O sentido de um fim é narrado em primeira pessoa por Tony, um homem comum, já aposentado com mais de 60 anos, divorciado, pai de uma filha, que divide a sua história em duas partes. 

Este último não é algo que eu vi de verdade, mas o que você acaba lembrando nem sempre é a mesma coisa que viu.

A primeira parte vai do momento que Adrian se junta ao grupo de amigos de Tony até o seu suicídio, onde ao final o narrador faz um rápido resumo até os seus dias atuais. Existe uma certa superficialidade nesta etapa, que começa com o típico deboche adolescente, passando pela separação quando cada um escolhe a sua universidade, e a partir daí temos uma centralização na vida de Tony.

Do seu primeiro relacionamento amoroso, onde Veronica, sua namorada, parece apenas manipula-lo. Há uma visita à casa dos pais da moça, a apresentação da mesma aos seus amigos, e o relacionamento da ex com o seu então amigo Adrian.

Naquela época, as coisas eram mais simples: menos dinheiro, nenhum aparelho eletrônico, pouca tirania da moda, nenhuma namorada.

Tudo descrito de forma linear, ou usando o adjetivo que o próprio Tony usa para se definir: pacato. Mesmo o suicídio de Adrian é um espelho de outro que ocorre no começo da história, seguindo o ritmo definido.

Ao finalizar a primeira parte fiquei pensando se o nosso narrador tentava nos convencer de seu estilo devagar, ou era um mentiroso. Se Adrian era brilhante como ele dizia, ou fruto da santificação dos mortos, fato comum que ocorre com a maioria das pessoas que tendem a imaginar que a pessoa que se foi era muito melhor do que realmente era. Assim como a descrição de Veronica, se ela era real ou escondia resquícios de uma grande mágoa.

Algum inglês disse que o casamento é uma refeição comprida e sem graça onde servem o pudim primeiro.

A segunda parte inicia sobre Tony falando da perda da juventude, das consequências de envelhecer, da relação um tanto distante com a filha até chegar à carta de uma advogada com uma herança improvável que o leva de volta ao passado.

É neste momento que novas memórias surgem, assim como perguntas sem respostas, sendo a maior delas se Tony é realmente um homem pacato ou babaca.

Eu descobri que esta pode ser uma das diferenças entre a juventude e a velhice: quando somos jovens, inventamos diferentes futuros para nós mesmos; quando somos velhos, inventamos diferentes passados para os outros.

O que torna interessante a segunda parte é o confronto das divergências da parte um com a parte dois, fazendo com que a memória do leitor seja tão solicitada quando a do próprio personagem.

Particularmente eu achei o livro mais ou menos, não amei, não detestei, e não criei empatia com ninguém. Mas ele pode causar paixão nos leitores que se encantam por suas analogias em relação ao tempo, a própria palavra sentido – viria de sentimento? De direção? De significado? – de impulsos sejam sexuais ou de violência que são vislumbrados momentaneamente.

Mais tarde... mais tarde há mais incertezas, mais sobreposição, mais retrocesso, mais falsas lembranças.

Recomento a leitura pelo seu depois. Pela imaginação que ela desperta no seu leitor ao permitir que ele crie teorias. Em tempos de verdades absolutas, ter o ponto de interrogação como protagonista não deixa de ser uma leitura que gera grande inquietação.

O sentido de um fim
The sense of an ending
Julian Barnes
Tradução: Léa Viveiros de Castro
TAG – ROCCO
2011 – 175 páginas

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Ensaio Sobre a Lucidez



Sinopse: Numa manhã de votação que parecia como todas as outras, na capital de um país imaginário, os funcionários de uma das seções eleitorais se deparam com uma situação insólita, que mais tarde, durante as apurações, se confirmaria de maneira espantosa. Aquele não seria um pleito como tantos outros, com a tradicional divisão dos votos entre partidos da direita, do centro e da esquerda; o que se verifica é uma opção radical pelo voto em branco. Usando o símbolo máximo da democracia – o voto -, os eleitores parecem questionar profundamente o sistema de sucessão governamental em seu país.

Em 1995 a mesma população se fez presente em uma situação nada comum: todos, com exceção de uma mulher, estavam cegos, tudo o que viam era a cor branca. O livro se chama Ensaio sobre a cegueira e deu a Saramago o prêmio Nobel de literatura.

Nove anos depois, ou quatro no país imaginário, o branco retorna em forma de voto, questionando a democracia, o sistema político, a imprensa, a mediocridade, a mentira e a verdade.

Tudo começa em um dia de muita chuva, o presidente da mesa, os delegados dos partidos, secretários e demais envolvidos esperam pelos eleitores na capital de um país. Passa o tempo e ninguém aparece, ligações são feitas, a chuva é a culpada e todos aguardam. Faltando uma hora para o término a população sai às ruas e exerce o seu direito cívico. Na hora da apuração, a surpresa: mais de setenta por cento dos votos estão em branco.

A cabeça dos seres humanos nem sempre está de acordo com o mundo que vivem, há pessoas que têm dificuldade em ajustar-se á realidade dos factos, no fundo não passam de espíritos débeis e confusos que usam as palavras, às vezes habilmente, para justificar a sua cobardia

A primeira reação do governo é realizar novas eleições, para obter o mesmo resultado. E assim presidente, primeiro-ministro, ministros ficam desnorteados, e começam a colocar em prática as mais absurdas soluções para uma consequência ao qual não dão importância de investigar a causa.

Diálogos sem nexo são travados, disputas pelo poder ganham ênfase. Quem tem razão? Quem acerta? Quem erra? Ministros se demitem. Outros acumulam cargos. De quem será a glória de fazer as pessoas voltarem a si?

No vale tudo a palavra branco é banida, o direito ao voto branco é esquecido tornando o mesmo um crime, jornais são manipulados para informarem o que o governo deseja, quem são os culpados? Ninguém sabe, apenas silêncio e medo.

Felicito-o pela excelente memória, mas às ordens, de vez em quando, há que flexibilizá-las, sobretudo quando haja nisso conveniência

A falta de resultado torna uma cidade sitiada, à noite em que os políticos abandonam a capital é descrita de forma belíssima, uma crítica, um afronto, um combate em silêncio.

E é desta cidade agora sitiada que vem o link com o primeiro livro, quando o primeiro cego relaciona a mulher do médico oftalmologista aos votos em branco, pelo simples fato de ela não ter ficado cega quatro anos antes. Fatos antigos são relatados em forma de presente para quem deseja exercer maior influência.

Aprendi neste ofício que os que mandam não só não se detêm diante do que nós chamamos absurdos, como se servem deles para entorpecer as consciências e aniquilar a razão

Neste momento um comissário de policia ganha a missão de investigar, e o leitor volta a ter contato com seis personagens da história anterior, onde cinco deles seguem se apoiando em uma nova situação absurda. 

O que faz um homem que encontra a verdade, mas esta não atende os anseios de quem comanda? O que faz um homem ao ver informações serem distorcidas? Novamente os dilemas éticos na visão de um cidadão comum.

Como ocorreu no Ensaio Sobre a Cegueira, os personagens não possuem nome. É o vigia, o padeiro, o jornaleiro, o editor, o velho. Indicando que este lugar imaginário pode ser o país do leitor, e este ser um dos personagens sem perceber.

A crítica e a ironia escorrem das páginas, mesmos nos capítulos que parecem mais lentos. O que é realmente a democracia? Quais são os direitos? Quais são os deveres? Qual o papel dos políticos? Até onde se vai pelo poder? Quem é culpado? Quem é inocente? 

E assim novamente Saramago nos despeja uma leitura reflexiva, onde as peças podem não se encaixar na primeira vez. Uma leitura complementar que fecha um ciclo e nos faz pensar no nosso papel como cidadão, mas esta só será possível se nos livrarmos de opiniões pré-concebidas e avaliarmos o cotidiano em uma folha em branco.

Sobre o final: fazia tempo que eu não deseja tanto que um livro terminasse de forma diferente.

Ensaio Sobre a Lucidez
José Saramago
Companhia das Letras
2004 – 325 páginas

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Jude, o Obscuro



Sinopse: Ansioso para escapar das amarras de sua classe social, Jude Fawley sonha em um dia se tornar professor universitário. Apesar do empenho nos estudos de letras clássicas, o entalhador se vê cada vez mais sufocado pela pobreza e pelo casamento infeliz com Arabella Donn, filha de um criador de porcos.
É quando finalmente conhece Sue Bridehead, prima distante e nada convencional, que Jude vislumbra uma chance de felicidade. Em uma sociedade tão pouco favorável a mudanças como a do sul da Inglaterra em meados do século XIX – cujos costumes, dialetos e arquitetura Thomas Hardy aqui recria com exatidão -, o amor deles logo se transforma em uma sentença.
Jude, o Obscuro, o último romance de Hardy, é considerado o trabalho mais corajoso e inovador do escritor. Originalmente publicado em fascículos mensais, cada novo capítulo trazia uma onda de choque aos leitores vitorianos. Como em outras obras do autor, é possível perceber o quanto a sociedade é cruel com aqueles que desafiam suas tradições.

Curadora do mês de Maio da TAG Curadoria, a atriz Fernanda Montenegro indica um clássico do final dos anos de 1890 do autor inglês Thomas Hardy.

Dividido em seis partes, o leitor logo é apresentado ao menino Jude, órfão que mora e trabalha para a tia na cidade de MaryGreen. Ele tem onze anos e está triste com o fato do professor Mr. Phillotson estar indo embora para uma cidade chamada Christminster.

Ia ter sido uma benção se o senhor todopoderoso tivesse te levado também, com o teu pai com a tua mãe, meninho sem serventia!

Este professor é o responsável por Jude se encantar pelas letras e se tornar um autodidata. Conforme cresce, o leitor percebe que ele é inteligente, bom, mas muitas vezes utiliza da sua pobreza para justificar a falta de foco para atingir os seus sonhos.

E a sua bondade o torna também um homem facilmente manipulável, o que o torna a vítima perfeita para Arabella, até esta perceber que todo o seu potencial não tem riquezas como resultado.

Que a piedade para com um grupo de criaturas fosse crueldade para com um outro era algo que deixava sua noção de harmonia nauseada.

Outro fato constante na vida de Jude é a obsessão pela cidade universitária de Christminster, que para ele é a representação de toda a luz do conhecimento, e ele é um inseto a flutuar em sua volta buscando uma forma de entrar, esquecendo-se que a luz também pode queimar.

A primeira coisa que se deve dizer sobre o livro é que apesar de ser um livro com mais de cem anos, sua linguagem permanece atual, sendo fácil entrar no mundo da narrativa.

A morte pacífica não o aceitava como súdito e não o acolheria.

A segunda coisa que se deve dizer é, como diz na sinopse, inicialmente ele era um folhetim, e com isso existem alguns capítulos que parecem ser um pouco de enrolação até a cena de maior emoção. Levando o leitor com certa curiosidade para a próxima parte, como ocorrem em muitas novelas televisivas.

A terceira coisa a se dizer é que os dois personagens masculinos principais possuem algumas características semelhantes, tanto Jude quanto Mr. Phillotson são homens essencialmente bons, que acreditam nos outros. No caso de Mr. Phillotson ele poderia ser considerado inclusive um feminista, por suas atitudes fortes em defender o direito de uma mulher escolher o próprio rumo em uma época que isso era incomum.

Fosse ele uma mulher, teria gritado sob a tensão nervosa por que ora passava. Mas com este alívio negado à sua virilidade, rangia os dentes com o sofrimento, fazendo surgir em sua boca rugas como as de Laocoonte, e vincos entre as sobrancelhas.

A quarta coisa a se dizer é que as três personagens femininas que norteiam os caminhos do Jude já possuem o dom da manipulação, da crueldade e da vaidade. Começando pela sua tia Drusilla que o chama de menino sem serventia, passando por Arabella que busca melhorar de vida até a sua prima Sue, uma mulher que parece extremamente moderna até ceder a rivalidade feminina e perder uma a uma de suas convicções.

É tão culpável se obrigar a amar para sempre quanto acreditar para sempre no mesmo credo e tão tolo quanto prometer gostar para sempre de uma dada comida ou bebida!

A quinta coisa a se dizer é que se faz necessário observar a brincadeira que o autor faz com alguns personagens como o sobrenome do professor que lembra filosofia e de Sue que lembra noiva.

Você acha que existem muitos casais em que uma pessoa não gosta da outra sem qualquer problema que definitivamente a leve a isso?

A sexta coisa a se dizer é que Hardy aborda de forma direta críticas a religião, as universidades inglesas e ao casamento. O conhecimento ser destinado a poucos, o peso da igreja influenciado os atos do personagem, a exigência da sociedade pelo homem dominar a mulher, a exigência do casamento como pré-requisito para ser uma família.

E, no entanto, não vejo por que motivo a mulher e as crianças não possam ser a unidade sem o homem.

E a sétima e última coisa é que Jude faz o leitor se surpreender, questionar e se chatear com muitas das ações dos personagens. E quando se questiona as escolhas de cada um, acaba-se pensando também na sociedade atual, principalmente ao identificar que muitas situações não perderam a atualidade, como na frase abaixo:

É isso que algumas mulheres não enxergam, e, em vez de protestar contra as condições, acabam protestando contra o homem, a outra vítima;

Como bônus os leitores da TAG ganharam uma das edições mais bonitas do ano, e uma mudança em relação as versões anteriormente publicadas no Brasil: os nomes dos personagens não foram traduzidos.

Um livro que literamei e literaturei, mas que indiferente não fiquei.

Jude, o Obscuro
Jude the Obscure
Thomas Hardy
Tradução: Caetano W. Galindo
TAG Curadoria – Companhia das Letras 
1895 – 399 páginas

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Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Nove do Sul



Vinte anos de silêncio separam os novos da velha geração. Nesses vinte anos a paisagem mudou e as condições se alteraram. O Rio Grande do Sul deixou de ser a ilha verde de vida tranquila para se tornar campo de batalha. A velha geração ficou onde estava, tida, mantida e publicada. A nova geração encontrou silêncio, descaso e editoras fechadas. Vinte anos durou a fase, onde ir para o Rio era descobrir a América e, pelo menos, tentar uma nova vida.

Assim começa a apresentação de um livro de contos que em meio a mudanças saiu da casa da minha mãe e foi encontrado perdido entre as minhas prateleiras em uma limpeza.

Nove do Sul trás, como diz o título, nove escritores gaúchos e seus contos. Os estilos são diferentes, não havendo nada mais em comum do que o estado em que nasceram. O livro fino é um convite para conhecer vários autores nacionais de uma só vez.

Quem começa é Cândido de Campos, que trás seis contos rápidos que trazem o cotidiano: O cortejo, O espião, Um beijo, Santinha, Suspeita e Lugar de ladrão. Neles você encontra a morte, as descobertas da adolescência, amores não correspondidos, mudanças e desconfianças. Tudo em uma escrita bastante fluída, às vezes reflexiva outra cômica.

Em seguida temos Josué Guimarães com dois contos mais encorpados: Odete do Oliveira e A morte do caudilho. No primeiro temos toda influência de uma mãe no amadurecimento e escolhas de sua filha.  O segundo já explora mais o comportamento do antigo gaúcho em situações de conflito. São histórias interessantes, que envolvem o leitor de forma que o mesmo parece estar vivendo ao lado dos personagens cada situação.

Entre as poucas mulheres participantes está Tânia Jamardo Faillace com A descoberta e Um navio. Confesso que desconhecia a autora cujos contos são mais intimistas. Ambos são narrados em primeira pessoa, como se o leitor fosse um amigo ao qual os personagens precisam para serem ouvidos ou aconselhados.

Sérgio Jockymann – outro autor desconhecido por mim – trás quatro contos: Jimmy, Compulsão, Torta com chocolate e Tabernáculo do Senhor. Os dois primeiros trazem uma repetição de tema, o de chocolate nada tem de doce e foi um conto que, em minha opinião, deixou a desejar e o último aborda as múltiplas crenças de uma família, onde ele utiliza o recurso de um longo parágrafo, em um estilo similar a Saramago.

A segunda e última mulher é Lara de Lemos, que apresenta os contos Um ser delicado, Em meio da noite, Vertigem e D. Eufrásia. As histórias são curtas e de rápida leitura. De dois casais observando outro cliente em um restaurante, do fogo que queima, a busca por um endereço e a vizinha que a todos ajuda. 

Conhecido jornalista, Ruy Carlos Ostermann trás Moderato cantábile, Extinção do mundo e Tiodoro. Contos curtos de pouco ou nenhum diálogo onde três personagens compartilham um momento da sua vida.

Sergio Ortiz Porto vem com O louco, Noite de Carnaval e Jurik. Suas histórias possuem um olhar mais social, com uma mistura de intensidade e sutileza que agradam ao leitor, e pedem uma pausa antes de seguir para o próximo escritor.

O oitavo escritor é Moacyr Scliar com Três histórias de busca, Peixes e Almoço de domingo. Por ser o autor que mais conhecia em termos literários acabou sendo o de maior expectativa. Os dois primeiros vão pela linha fantástica, sendo Peixes o mais interessante em minha opinião. Almoço de domingo trás uma cena familiar onde à figura central é um pai dominador.

Quem fecha é Carlos Stein com A greve dos lixeiros, Os preguiçosos e Mar e Fome I e II. Os quatro tratam do comportamento humano em diferentes situações, sendo apenas um narrado em terceira pessoa e os demais temos apenas a visão do personagem que nos conta para situações que beiram o extremo, mas não o incomum.

O livro é originalmente e 1962, e mesmo passado tanto anos não perderam atualidade, e o gosto ou desgosto vai conforme as preferências do leitor. No geral foi um achado pra mim, e por serem histórias relativamente curtas, mesmo as literaturadas foram fáceis de ler.

Nove do Sul
Autores Diversos
Instituto Estadual do Livro
1962 – 139 páginas

segunda-feira, 10 de junho de 2019

O Garoto no Convés



Sinopse: Aos catorze anos de idade, o órfão John Jacob Turnstile perambula pelas ruas de Portsmouth, no sul da Inglaterra, cometendo pequenos furtos. Dois dias antes do Natal de 1787, porém, o que tem início como apenas mais uma delinquência resulta numa série de acontecimentos que mudarão sua vida para sempre. Para escapar da prisão, embarca às pressas num navio da marinha inglesa na função de criado do capitão. Seu plano é fugir na primeira oportunidade, mas o que o aguarda é uma aventura de proporções épicas, na qual não faltarão conflitos entre membros da tripulação, tempestades, portos exóticos, ilhas paradisíacas e um motim, que acabaria por se tornar o mais famoso na história naval.

Misturando ficção e fatos históricos o autor John Boyne leva o leitor pelos subúrbios da antiga Inglaterra, passando por marés recém descobertos na visão de um jovem menino, cuja vida não é nada fácil, para contar uma nova versão do motim ocorrido no navio da marinha britânica HMS Bounty.

Mas ele a pronunciou não para insultar, mas com o desprezo natural pelas outras formas de vida que só um cavalheiro inglês podia ter.

O livro é dividido em cinco partes, que vão da proposta para Turnstile embarcar até o seu retorno em terra firme. Por ter como fundo fatos reais, para os mais curiosos são disponibilizadas as referências utilizadas além de um mapa com a viagem do Bounty.

A história começa em 1787, quando Turnstile conversa sobre livros com um fidalgo francês e rouba o seu relógio. Enquanto já imagina a ceia que teria com a venda do objeto acaba preso. E então o jovem que desconhece seus pais e vive em uma casa cheia de meninos como ele, supervisionados por um homem que só os explora, se vê entre duas escolhas: um ano na prisão ou dois anos navegando em um navio da marinha britânica.

Mas um jovem como você devia ter sempre acesso aos livros. Eles enriquecem o espírito, sabe? Fazem perguntas sobre o universo e nos ajudam a compreender um pouco mais o nosso mundo.

A missão do navio é buscar mudas de fruta-pão para alimentar os escravos das colônias inglesas. A missão de Turnstile é atender as ordens do capitão do navio William Bligh. E assim o menino aprende a conviver em um ambiente às vezes hostil, às vezes formal, às vezes perigoso e às vezes tedioso. 

É neste cenário que o leitor vai conhecer mais da história de Turnstile e ser apresentado pouco a pouco aos personagens desta história, que vão do capitão, aos oficiais, passando pelos marinheiros até o cozinheiro. Não são dias fáceis, pois além de ter que aprender a viver em um ambiente totalmente diferente, era obrigado a tolerar alguns abusos quase tão cruéis quantos os vividos anteriormente em terra.

Os ricos sempre consideram ignorantes os garotos como eu, mas às vezes demonstram ignorância igual ou maior, se bem que de outro tipo.

Nos diálogos entre o capitão e o jovem é possível ter uma ideia da cultura social do período, não raro Turnstile questiona, em pensamento, algumas linhas de raciocínio, onde as diferenças econômicas permitem aos mais poderosos ações bastante equivocadas para o leitor de hoje.

Só que ao chegar à ilha todos parecem se igualar, depois de quase um ano navegando, a variedade de frutas e mulheres que se mostram disponíveis aos tripulantes cria a ideia de que outro estilo de vida é possível. E se a viagem até ali havia sido tranquila, sem maiores brigas ou castigos, os seis meses de sol trataram de mudar os desejos de vida para aqueles homens.

E após um motim, Turnstile que ainda guarda ecos do seu primeiro amor se vê amontoado com aqueles que apoiaram o capitão em uma barca abandonada em meio às águas. A busca para casa trás ainda mais reflexões e completa o amadurecimento de Turnstile.

De onde vinha esse controle, eu não sei. Talvez fosse a solidão ou a segurança daquela aparência familiar. Talvez fosse o fato de nenhum de nós jamais ter conhecido coisa diferente na vida.

O garoto no convés é um livro que te leva a virar páginas, a questionar preconceitos, e descobrir um pouco mais da história da navegação. Narrado em primeira pessoa, Turnstile convida o leitor a sentir as mesmas alegrias e dores, sendo difícil ficar indiferente.

Um livro que eu literamei e recomendo para quem busca uma ótima leitura.

O garoto no convés
Mutiny on the Bounty
John Boyne
Tradução: Luiz A. de Araújo
Companhia das Letras
 2008 – 493 páginas

quarta-feira, 29 de maio de 2019

O Sonho dos Heróis



Sinopse: Em 1927, o jovem Emílio Gauna ganha uma aposta e decide gastar todo o dinheiro com os amigos em um alucinante Carnaval portenho. Ao perceber que pouco se recorda do que aconteceu na noite anterior, o personagem fica refém da sua obsessão por descobrir a verdade sobre os acontecimentos e as pessoas presentes, mas, sobretudo: quem é aquela mulher misteriosa com quem dançou no baile de máscaras?

O sonho dos heróis foi o livro do mês de abril da TAG Curadoria, uma indicação do escritor Javier Cercas (autor de A Velocidade da Luz já resenhado aqui no blog), que foi escrito pelo argentino Adolfo Bioy Casares, que junto com Jorge Luis Borges foi um dos responsáveis por consolidar o estilo Realismo Fantástico. O mimo foi um copo de plástico com a temática da história: o Carnaval de 1927.

O destino é uma útil invenção dos homens.

Casares nos conta a história como se estivéssemos em uma roda de amigos, e entre os detalhes de uma Buenos Aires que ele conhecia muito bem, estão os eventos de uma história cíclica, pois ela inicia e termina em um carnaval.

Sua escrita torna tudo muito vivo, pois os detalhes de cada ambiente transportam o leitor para o local, podendo ser avaliada a beleza ou feiura, e às vezes quase sentindo o cheiro.

Os levantes, infelizmente, naquela época de egoísmo, eram tarefa para um homem sozinho.

A história ocorre entre os anos de 1927 e 1930, possibilitando dentro do cotidiano dos personagens ver o impacto da recessão de 1929 e a decadência que a Argentina sofreu com o aumento da pobreza e vários lugares fechados.

O personagem principal é Emilio Gauna, um jovem do interior cheio de ideias pré-concebidas, um jeito meio egoísta e que parece ter a necessidade de provar a sua coragem. Sua vida sofre uma mudança quando ganha a aposta de uma corrida de cavalos.

Os jogadores disputavam o direito de subir ao trono, ou seja, de ocupar o posto principal e de ser considerado o primeiro dos heróis.

Sem pensar em aplicar o dinheiro em algo para o futuro, ele resolve levar os seus novos amigos para uma grande festa de carnaval, entre eles o doutor Valerga, considerado um exemplo de homem para todos do grupo.

Após três dias acordou em uma cama estranha, sentindo os efeitos de uma bebedeira que não lhe deixava com os pensamentos claros em sua mente. Ficando apenas a sensação de algo fantástico e uma estranha necessidade de saber como tudo havia conhecido. Na memória apenas alguns flash e uma mulher mascarada.

O que eu vou contar é tão estranho que se eu não explicar tudo com muita clareza não vão me entender nem acreditar em mim.

Conforme os dias voltam ao normal, novos personagens surgem como Serafín Taboada, um bruxo conhecido pelo seu poder de adivinhação e que parece possuir uma necessidade de proteger Gauna. E sua filha Clara, uma mulher forte de diferentes facetas, ao qual Gauna passa a nutrir sentimentos conflituosos ao ver a paixão domina-lo.

Mas ao mesmo tempo em que ele parece dono do seu destino, por vezes transparece a impressão de que o rapaz nada mais é do que uma marionete sendo guiada por aqueles que o cercam. 

Talvez eu tenha imaginado dois amores. Agora vejo que só houve um em minha vida.

Um livro que permite diferentes leituras, tanto da história da Argentina e de seu povo, como a questão de se desafiar o destino e se deparar com o fantástico, até o leitor mais racional que pode entender tudo como uma grande metáfora para o amadurecimento de um homem.

A única coisa certa é que ao fechar o livro você não irá se sentir indiferente aos eventos que o norteiam mesmo para quem não se sente perdidamente apaixonado pela obra como eu.

O Sonho dos Heróis
Adolfo Bioy Casares
Tradução: Josely Vianna Baptista
TAG – Biblioteca Azul
1940 – 207 páginas

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terça-feira, 14 de maio de 2019

O Olho Mais Azul




Sinopse: Todas as noites, Pecola Breedlove reza para ter olhos azuis. Zombada pelas outras crianças por sua pele negra e seu cabelo crespo, a menina anseia por se encaixar no padrão de beleza da sociedade americana dos anos 1940: quer ser branca e loira, assim como a atriz mirim Shirley Temple. No entanto, à medida que cresce seu delirante e inconsciente desejo de aceitação, Pecola se vê presa a uma realidade cada vez mais violenta.

O livro de março/19 da TAG Curadoria teve como curadora a escritora brasileira Djamila Ribeiro é o primeiro romance da escritora e vencedora do Nobel de literatura de 1993 Toni Morrison, uma autora ainda pouco lida no Brasil. 

O Olho mais azul fala sobre identidade, padrão de beleza, preconceito e discriminação, mas não da forma como o leitor está habituado. Não é a toa que ele se tornou polêmico por abordar entre muitos assuntos à própria pedofilia em plenos anos de 1970.

Um pequeno exame e muito menos melancolia nos teriam provado que as nossas sementes não foram as únicas que não brotaram: as de ninguém brotaram.

Logo de início temos uma descrição da família perfeita: mãe, pai, um filho, uma filha, um gato, um cachorro, um amigo. E depois já sabemos que Pecola está grávida de um bebê do pai dela.

Pecola é uma personagem que carrega todos os abusos que uma criança pode sofrer no decorrer das páginas. Seu sonho de ter o olho azul não é uma bobagem, já que o preconceito aqui começa por alguém igual a ela: sua própria mãe.

Como é que se faz isso? Quero dizer, como é que a gente faz alguém amar a gente?

Em contrapartida temos as irmãs Frieda e Claudia, esta uma das narradoras da história e talvez um alter ego da própria escritora. Assim como Pecola, elas são negras, e estudam com outros negros. Mas o racismo existe mesmo ali, pois a diferença do tom da pele parece autorizar os mais claros a tentarem subjugar os mais escuros. O que gera muito sofrimento a Pecola e contraria as irmãs.

No cenário em que elas viviam fica claro o poder dos adultos, que não podiam ser contrariados, mesmo quando não possuíam razão. O abuso em relação às crianças é pulsante em todo o livro, deixando claro sua fragilidade quanto a serem defendidas.

Preta retinta. Preta retinta. Seu pai dorme pelado.

Toda criança possui os pais como referência. Os pais de Pecola se denominavam pobres, negros e feios. Não existe carinho. Nem no tratamento. Para os filhos são senhor e senhora Breedlove. Um muro intransponível para quem não sabe se defender das diferenças.

Na escola as crianças utilizam o pátio para hostilizar as outras e descarregar o desprezo que eles sentem pela própria cor. O ódio, a desesperança, o desprezo que eles mesmos sentiam eram despejados em sua vítima, no caso a própria Pecola.

Ao igualar beleza física com virtude, ela despiu a mente, restringiu-a e foi acumulando desprezo por si mesma.

O contraponto é a menina mulata Maureen Peal, cuja pele mais clara e a condição de vida melhor que as dos demais encantam a escola, tendo aceitação de alunos brancos e subordinação dos alunos negros.

A questão de um padrão de beleza é bastante forte, em uma associação tão comum do feio com o errado. Ao mesmo tempo em que nos questiona o que é feio? Ao citar artistas que glamourosamente se apresentam nas telas de cinema, o leitor pode sair da zona pobre e negra de Toni Morrison e ver as muitas meninas que sofrem de anorexia e bulimia por querer ficar igual a x ou y.

Deitar ao lado de uma pessoa de verdade, que estava "menustrando" de verdade, era meio sagrado.

Talvez repare com mais atenção na quantidade de mulheres mudando a cor de seu cabelo para algum tom de loiro, ou nos jovens pais torcendo para que os olhos claros do recém-nascido permaneçam.

Padrões que aprisionam diferentes pessoas, independente da sua cor, condição social e instrução escolar. 

na altura em que este inverno se havia apertado num nó odioso que nada conseguia afrouxar, alguma coisa o afrouxou, ou melhor, alguém.

Ironicamente, a menina que todas querem ser no livro viveu aos quatro anos de idade na produção Polly tix in Washington o papel de uma prostituta. A atriz que se aposentou da carreira de atriz aos 22 anos de idade por não ter mais a mesma popularidade da infância. 

Em relação a narrativa o livro é divido nas quatro estações, mesclando presente e passado de alguns personagens, de uma forma fluída e rápida de ler. Para os mais sensíveis a leitura pode ser difícil, pois a história carrega um peso muito grande, provocando além de reflexões sensações de impotência, raiva e tristeza. Sabemos que é ficção, mas não é difícil enxergar a realidade em suas páginas.

Mas, para descobrir a verdade acerca de como os sonhos morrem, nunca se deve aceitar a palavra do sonhador.

Um livro que recomendo para quem quer entender a humanidade, o racismo, os padrões e o que o comportamento dos adultos influencia nas crianças.

O Olho Mais Azul
The Bluest Eye
Toni Morrison
Tradução: Manoel Paulo Ferreira
TAG – Companhia das Letras
1970 – 222 páginas

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