terça-feira, 29 de janeiro de 2019

O Coração é um caçador solitário



Sinopse: Sul dos Estados Unidos, 1939. A par de seus problemas particulares e intransferíveis, o dono de bar Biff Brannon, o mudo John Singer, a adolescente Mick, o médico negro Benedict Copeland e o agitador marxista Jake Blount vivem o flagelo comum da solidão e da incomunicabilidade. Nesta narrativa vívida e pungente, Carson McCullers revela os desejos mais secretos de cada um, equilibrando com maestria o retrato social e a investigação psicológica.

O título poético pertence a Carson McCullers, uma das escritoras mais influentes do século 20, e foi lançado quando a americana possuía apenas 23 anos de idade. Indicado pelo escritor mexicano Juan Pablo Villalobos, O Coração é um Caçador Solitário foi o livro de dezembro/2018 da TAG Curadoria.

A história ocorre no final dos anos 30 e seus personagens ainda vivem com as consequências da grande depressão.  No centro temos John Singer, um homem surdo que vê o seu companheiro ser levado e internado em uma clínica. Perdido, ele aluga um quarto na casa de uma família, e a partir deste ponto outros quatro personagens passam a considerado o seu melhor confidente.

Os dois mudos não tinham outros amigos e, a não ser quando estavam trabalhando, ficavam o tempo todo a sós.

Benedict Copeland é um homem culto, médico formado, e importante na sua comunidade. E ele também é negro. Seu sonho é ver o seu povo crescer, mas a frustação o corrói por não ter conseguido educar nem mesmo os seus quatro filhos. Considera John um homem de confiança, a quem ousa falar o que jamais compartilhara com outra pessoa branca. É Portia, sua filha, que muitas vezes o situa dentro da realidade da sua família, buscando com a sua simplicidade um equilíbrio entre ideias divergentes.

Já Jake Blount é um homem que anda de cidade em cidade tentando convencer operários de suas ideais marxistas, mas tem mais sucesso em virar copos e copos. Torna John o “ouvinte” de seus pensamentos mais profundos, atrapalhando vários jantares do próprio Singer que não conseguia comer por tentar ler os lábios do homem. 

Porque alguns homens têm essa coisa neles de abrir mão de tudo o que têm de pessoal num determinado momento, antes que tudo fermente e os envenene - de entregar tudo a algum ser humano ou alguma ideia humana.

Inicialmente menina, ao final jovem mulher, Mick é considerada por alguns o alter ego da autora. Fisicamente se apresenta com estilo andrógino, possuí um mundo interno e externo. Em sua mente a música está sempre lhe sussurrando, de forma sedutoramente hipnotizadora. Cheia de irmãos, com uma família muito pobre, a busca por um rádio a consola, e depois o próprio John, a quem ela faz perguntas para que ele a ajude a encontrar a solução dos seus problemas.

E o mais dúbio dos personagens, Brannon, o cara do restaurante que vê todos passarem, desviarem, para ir e voltar. Ele também busca John, não da mesma forma que os outros personagens, ele apenas tenta entender, a si e aos outros.

Uma vez, ele tinha tentado contar quantos eram e descobriu que havia mais de uma dúzia de crianças batizadas em sua homenagem.

Mas ao contrário do que você possa imaginar, não estamos falando de uma linda história de amizade. E sim de uma forma analógica do que hoje ocorre nas redes sociais: a falta de comunicação. Ao buscar um homem surdo e mudo para contar suas ideias, histórias de vida e até mesmo pedir sua opinião, o silêncio do outro lado é como uma benção as suas palavras.

Conversar com John é não ter suas ideias contrariadas, não ser interrogado de seu comportamento nem sempre correto, da sua fraqueza, da razão de falar tanto e fazer tão pouco.

Agora estava se sentindo bem. De repente, sussurrou algumas palavras ao vento: "Perdoai-me, senhor, pois eu não sei o que faço."

E embora a história do livro seja muito rica em possibilidades, eu não fui encantada por ela. Não sei se já estou cansada de ver nas redes sociais tantas pessoas em busca de surdos que lhe deem likes em ideias absurdas, das brigas que beiram a comédia por não entenderem o que leram ou ouviram. O fato é que acabei identificando nos personagens principais a mesma superficialidade de hoje, a mesma bolha, a mesma incapacidade de mudar.

E contraditoriamente recomendo a leitura, mesmo tendo literaturado suas páginas cheias de descrições sonolentas, os acontecimentos previsíveis, e a pobreza de espírito dos que passam pelas páginas. Simplesmente por ela ser um retrato atual demais da natureza humana.

O Coração é Um Caçador Solitário
The Heart is a Lonely Hunter
Carson McCullers
Tradução Sonia Moreira
TAG – Companhia das Letras
1940 – 391 páginas

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quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

A Bolsa Amarela



Sinopse: A Bolsa Amarela é o romance de uma menina que entra em conflito consigo mesma e com a família ao reprimir três grandes vontades (que ela esconde numa bolsa amarela) - a vontade de ser gente grande, a de ter nascido menino e a de se tornar escritora. A partir dessa revelação - por si mesma uma constatação à estrutura familiar tradicional em cujo meio "criança não tem vontade" - essa menina sensível e imaginativa nos conta o seu dia-a-dia, juntando o mundo real da família ao mundo criado por sua imaginação fértil e povoado de amigos secretos e fantasias. Ao mesmo tempo que se sucedem episódios reais e fantásticos, uma aventura espiritual se processa e a menina segue rumo à sua afirmação como pessoa.

Raquel é a caçula de uma família aparentemente classe média, uma menina meio criança meio pré-adolescente que tenta esconder suas três vontades que não param de crescer: de ser grande, de ser um garoto e de se tornar uma escritora.

Estas vontades são alimentadas pelo cotidiano, pela solidão de quem não tem com quem conversar e ouve de quem está na frente da televisão sobre não haver tempo para interagir com ela. Se adaptada aos tempos modernos, seria o smartphone nosso de cada dia.

Vocês podem um monte de coisa que a gente não pode. Olha: lá na escola, quando a gente tem que escolher um chefe pras brincadeiras, ele sempre é um garoto. 

E é justamente nas primeiras páginas que o leitor, independente do tamanho, irá se dar conta que está entrando em um mundo parte real, parte imaginário. Das cartas que ela escreve para seus amigos inventados (e responde em nome deles), até o surgimento da bolsa amarela usada, enviada por uma tia com mais posses, que ninguém mais da sua casa queria. 

Aliás, a grande bolsa acaba se tornando uma companheira inseparável da menina, cujo fecho muito sabido emperra nos momentos que a menina mais precisa, tornando-a praticamente um cofre para esconder aquilo que a família não deve ver.

Vi aparecer uma bolsa; todo mundo pegou, examinou, achou feia e deixou pra lá.

Nas cartas estão perguntas sobre o que ela ouve e não entende, como qual o motivo de uma mãe ter mais um filho se ela não queria mais? Sobre o fato da irmã que deveria cuida-la enquanto os demais trabalham e estudam, mas de além não deixa-la fazer nada - nem mesmo trazer amigos em casa – a deixa trancada sozinha em um apartamento no sexto andar.

Sobre as vontades, todas possuem algum motivo relacionado ao ambiente familiar. A vontade de crescer é para não entrar em conflito com a família e poder tomar as próprias decisões.  Raquel quer ser menino por ter uma criação em que o sexo masculino ser mais incentivado, ter liberdade de brincar de coisas que não são de meninas e, o mais importante, ganham o poder de decisão. E ser escritora por simplesmente gostar de inventar coisas.

Eu ia respondendo e pensando: será que eles acham que falando comigo do mesmo jeito que eles falam um com o outro eu não vou entender?

E de forma simples a menina irá aprender com os próprios conflitos, a dizer suas opiniões e compreender as próprias vontades, que tornam a bolsa amarela leve ou pesada conforme o momento que ela vive e os paradigmas que ela resolve enfrentar.

Considerado literatura infanto-juvenil é um livro que agrada e encanta leitores de todas as idades. Se para o público pré-adolescente a história mostra que não se está sozinho na confusão de sentimentos e frustrações, para os adultos pode trazer lembranças e antigas vontades que ainda pesam em algum lugar, mas que estamos tão acostumados em carregar que nem lembramos mais.

Mas aconteceu uma coisa esquisita: eu não podia parar de falar.

A narrativa em primeira pessoa nos deixa mais próximos da personagem Raquel, sendo fácil pensar por alguns momentos que Afonso, a Guarda-Chuva e o Alfinete são reais. E talvez sejam se deixarmos de lado toda a lógica para se entregar a emoção.

O livro é bonitinho, filosófico, sendo muito fácil e rápido de ler. Lygia Bojunga lançou este livro originalmente em 1976 com fortes influências de outro grande autor infanto-juvenil: Monteiro Lobato. A Bolsa Amarela agradou tanto que acabou se tornando um clássico deste nicho literário, e tirando a questão da figura masculina, ele segue mais atual do que nunca.

A Bolsa Amarela
Lygia Bojunga
Ilustrações Marie Louise Nery
Casa Lygia Bojunga
1976 – 135 páginas