quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Se adaptar


Sinopse: “UM DIA, NUMA FAMÍLIA, NASCEU UM MENINO INADAPTADO”. Assim começa a história do menino de olhos negros que flutuam para o nada, eternamente deitado, e dos seus três irmãos. Em meio à natureza poderosa das montanhas, são as pedras do muro da velha casa da família que testemunham suas trajetórias. O amor absoluto e protetor do mais velho, a rebeldia que a do meio assume para rejeitar a dor, a chegada do mais novo que cresce à sombra das memórias. Um livro magnífico e luminoso, sobre o laço infinito entre irmãos e a inesgotável capacidade humana de se adaptar.



No mês de maio/2025 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação da editora Ana Lima Cecílio, que foi o livro Se adaptar da escritora francesa Clara Dupont-Monod. O mimo foi uma obra inédita produzida em família de Rafael Coutinho e Laerte.

No sul da França, em uma região que a natureza e as montanhas se fazem presente, uma família tem sua vida totalmente alterada após o nascimento do terceiro filho.

Um dia, numa família, nasceu um menino inadaptado. Ainda que de uma crueldade degradante, é esse termo que dá a real dimensão de um corpo mole, de um olhar móvel e vazio.


O menino que nasce com uma condição não nomeada que o impede de se movimentar e interagir com o humano, gerando sentimentos diversos em seus pais e seus dois irmãos.

E é sobre esta necessidade de se adaptar a quem nasceu inadaptado que irá gerar relações complexas e diferentes do irmão mais velho e da irmã do meio.

Há milhares de anos, temos sido as testemunhas. As crianças são sempre as esquecidas das histórias.


Tudo em meio em uma narrativa sensível, que ao mesmo tempo que nos coloca no lugar do outro, nos enche de perguntas.


A escrita de Clara Dupont-Monod

A escritora e jornalista francesa Clara Dupont-Monod é conhecida por suas críticas literárias e a escrita sensível de seus livros, que tiveram como resultado duas premiações, inclusive o Prix Femina em 2021 por Se adaptar.

Em Se adaptar ela coloca as pedras para contarem a história do menino inadaptado e seus irmãos. Dividido em três partes, o foco está totalmente nos irmãos, sendo necessário estar atento aos detalhes para perceber o impacto sofrido também pelos pais.

Muito lhe disseram que o tempo cura. Na verdade, ele o mede durante essas noites, e o tempo não cura nada, muito pelo contrário.


As mudanças naturais no local onde a família são outro ponto de atenção, servindo tanto como um anúncio do que está por vir como uma metáfora de todas as transformações que ocorrem com os personagens que começam crianças e chegam à idade adulta na narrativa.

A escrita é ao mesmo tempo delicada, poética e real. Existe uma humanidade latente em cada um dos seus personagens, provocando o leitor sobre de que forma ele se adaptaria se vivesse situação semelhante.


O que eu achei de Se adaptar

Ao contrário do que é dito, não me pareceu que eram as pedras que estavam contando a história. Só me lembrava que eram elas quando as mesmas eram nominalmente citadas. Como se faltasse algo para gerar essa conexão, dando a impressão de ser uma narrativa simples em terceira pessoa.

No geral achei a narrativa uma mistura de tristeza, resiliência e revolta com todo o peso físico, financeiro e emocional de criar uma criança que não irá interagir com o mundo conforme o esperado.

Os primeiros enfrentavam, o segundo foi se fundindo. Para ela, não sobrava nada, nenhuma energia para sustentá-la.


O resultado de tudo isso é silêncio, solidão, negação e como diz o título, adaptação. Motivo pelo qual apesar do livro ser curto, aos poucos ele foi me gerando um cansaço, principalmente quando cheguei na última parte.

Cansaço semelhante ao encontrado muitas vezes nesta visão do que se passa dentro de uma família que tem as ilusões quebradas por algo que torna o seu filho inadaptado para a vida em sociedade.

Um senso de dever as guia. Elas vão estar sempre ali, vigias na noite escura, vão se virar para não sentir nem frio nem medo.


E são os filhos que acabam representando as diferentes reações. Começando pelo irmão mais velho que abdica de tudo para dar suporte e sente a dor de forma mais latente a ponto de se fechar para o mundo. E os pais simplesmente parecem não ter tempo de ver isso.

A irmã do meio é quem se envergonha e acaba por se revoltar por não ter mais a mesma rotina de antes. Mas seus atos já conseguem atrair mais os olhares tão ocupados com as dificuldades do dia-a-dia.

Sentia que não devia ser esse o seu papel, mas sentia também que o destino gosta de bagunçar os papéis e que era preciso se adaptar.


E por fim, tem o irmão que nasce depois e por influência da própria imaginação acaba indo parar a sombra do menino inadaptado. O que me gerou mais dúvidas e curiosidade do motivo pelos pais permitirem ou não perceberem isso. Para logo em seguida me lembrar que quando se trata de seres humanos quem está de fora enxerga melhor do que quem está dentro.

No geral é um livro que mexeu com a minha empatia ao mesmo tempo que gerava questionamentos e reflexões. Motivo pelo qual deixo a dica de leitura aqui. 


Se adaptar
S'adapter
Clara Dupont-Monod
Tradução: Diego Grando
TAG - Dublinense
2025 - 160 páginas
Publicado pela primeira vez em 2021


sexta-feira, 18 de julho de 2025

Outra autobiografia




Sinopse: Rita Lee pode ter tido de tudo, menos uma “vidinha besta”. E os últimos anos foram, sim, desafiadores. Ao mesmo tempo que o mundo passava por uma pandemia, ela foi diagnosticada com câncer no pulmão. Em um texto franco, ora cru e chocante, ora cheio de ironias, ora sutil e amoroso, Rita Lee não poupa detalhes de seu tratamento. Fala também da rotina, dos avisos do Universo, de seres de luz e dos caminhos que a vida tomou.



 Em Autobiografia Rita Lee compartilhou com fãs e leitores em geral a sua infância, a relação com a música, com os Mutantes, seus perrengues, suas histórias em geral, passando de forma rápida e leve a sua vida, mesmo quando as cenas descritas eram muito mais complexas que o tom utilizado para as contar.

 Já em Outra autobiografia irá se encontrar uma espécie de diário sem data, onde ela compartilha seus últimos anos de vida quando descobre em plena pandemia que está com câncer.

 Mas é aquela velha história: enquanto a gente faz planos e acha que sabe de alguma coisa, Deus dá uma risadinha sarcástica.


E com isso ela relata os detalhes do seu tratamento, seus ataques de pânico no hospital, as mudanças que precisa fazer por estar mais fraca, as relações com seus bichos de estimação, enfermeiras e claro, família.

Ela demostra o seu lado mais místico e nos momentos de maior sofrimento não se nega descrever vulnerável, mostrando que a nossa rainha do rock sempre foi muito real em expor o que estava rolando pela sua cabeça, seja por música ou páginas.

 

A escrita de Rita Lee

A paulista Rita Lee Jones de Carvalho, mesmo após a morte, segue sendo uma das mais espetaculares cantora e compositora do Brasil. Inteligente, com um humor que brinca com a ironia, ela se tornou uma escritora que atende grandes e pequenos através de livros infantis, de crônicas, contos e os autobiográficos.

Como é o caso de Outra biografia, onde a eterna ovelha negra escreve em tom de luta e ao mesmo tempo de despedida de todos que a amaram e a acompanharam durante toda a sua carreira.

A "massa" como eles se referiam ao troço, precisava ser melhor investigada para fecharem o diagnóstico e terem mais detalhes.


E como não poderia faltar, há também crítica política, algo que ela sempre fez nos shows, está ali presente em um dos momentos mais tristes que o mundo viveu. A ponto de nomear um de seus tumores de Jair.

O bom humor também anda por ali, como colocar o nome de Leonor na máscara de proteção ao tratamento de câncer, e a comparação e convívio com as duas enfermeiras que a cuidavam.

Minha família e meus amigos me mimavam, me tratando como rainha. 


Há também fotos do período, de sua visita a exposição organizada pelo filho e claro, a participação do Phantom. Tudo distribuído em capítulos curtos nas menos de duzentas páginas que são totalmente insuficientes para quem ficou órfão de Ritinha.

 

O que eu achei de Outra autobiografia

Eu adoro a Rita Lee, suas músicas, suas ironias e a forma engraçada e inteligente de expressar a sua opinião desde banalidades até sobre assuntos mais complexos.

Motivos que me levaram a ler Autobiografia para entrar conhecer um pouco mais da sua história, e ao qual senti falta de mais detalhes, o que me levaram a ler Outra autobiografia.

Quando você fala que está com câncer, a pessoa geralmente fica séria e não sabe o que dizer; eu também agia assim.


E eu achei o livro triste, a ponto de finalizar a leitura chorando, pois em minha mente vinha a imagem da mulher ativa que tive a sorte de ver algumas vezes no palco, e ficava o sentimento de ela não merecer ficar tão limitada.

 Sim, quando há sentimento envolvido, não temos muita racionalidade ao acompanhar os fatos. Mas se por um lado achei injusto ela passar por todo o sofrimento descrito, por outro fiquei feliz por ela estar rodeada de pessoas amorosas.
 

Já meu quê Beauvoir tem a leveza de ser sempre uma persona grata e um cabelo que não lhe faz falta: ela adora seus turbantes.


Durante a leitura também me lembrei do livro do David Coimbra Hoje eu venci o câncer, outra pessoa que eu admirava e também foi levado por esta doença maldita.

Comparando os dois livros autobiográficos que li da Rita, se o primeiro é voltado para o seu passado, no segundo o foco está na doença que ela enfrenta e no fato de tudo ter ocorrido durante a pandemia de Covid, não faltando assim "elogios" a criatura que dizia não ser coveiro. 

Mas como bom coringa que sou, escolho a cara do tarô que mais me representa: o Louco.

Me parecendo uma espécie de carta de despedida para todos o que acompanharam a rainha do rock. Ficando as páginas e as músicas como forma de matar a saudade desta mulher incrível.

 

Outra autobiografia
Rita Lee
Globo livros
2023 - 192 páginas

 

 

 

 

sexta-feira, 27 de junho de 2025

O Amante



Sinopse: Prêmio Goncourt em 1984, com mais de 2 milhões e meio de exemplares vendidos apenas na França, este romance autobiográfico acompanha a tumultuada história de amor entre uma jovem francesa e um rico comerciante chinês na Indochina pré-guerra. Com uma prosa intimista e certeira, Duras evoca a vida nas margens de Saigon nos últimos dias do império colonial da França e relembra não só sua experiência, mas também os relacionamentos que separaram sua família e que, prematuramente, gravaram em seu rosto as marcas implacáveis da maturidade.



Na Indochina francesa, uma adolescente de 15 anos órfã de pai mora com a mãe e dois irmãos. Filha de colonos franceses pobre, ela conhece em uma travessia de balsa sobre o rio Mekong um jovem com o qual terá um relacionamento intenso que envolve benefícios financeiros.

Filho de um rico empresário chinês, o homem de 27 anos, mesmo sendo mais velho, acaba sofrendo psicologicamente dos mesmos problemas que a menina, no que envolve tabus raciais e morais dos anos de 1920.

Muito cedo na minha vida ficou tarde demais. Quando eu tinha dezoito anos já era tarde demais.


O que a empurra precocemente para esta relação é a sua família desestruturada, com um irmão extremamente violento e uma mãe que o defende, ao mesmo tempo que possui uma busca constante por dinheiro.

Um livro sobre memórias e traumas transferidos para as páginas em um romance curto, cuja densidade se alterna, e virou um filme não aprovado pela autora.


A escrita de Marguerite Duras

Considerada uma das escritoras mais importantes da literatura francesa do século XX, a autora Marguerite Duras nasceu na Indochina e no final de sua adolescência retornou a França para estudar.

Sua escrita tem por característica ser fragmentada, conseguindo ser emocionalmente contida e ao mesmo tempo profundamente sensível. O que fez com que fosse uma das figuras-chaves do movimento literário "Nouveau Roman" (Novo Romance francês) que ocorreu nas décadas de 1950 e 1960.

A história da minha vida não existe. Ela não existe. Jamais tem um centro. Nem caminho, nem trilha.


E este rompimento com as formas tradicionais de narrativa é encontrado em O Amante, sua obra mais conhecida que venceu o prestigiado prêmio de literatura francesa Goncourt.

O Amante é uma mistura de ficção com autobiografia, tendo como base a sua infância na Indochina e o caso amoroso que teve na adolescência com um homem mais velho.

Tudo começou assim assim em minha vida, com esse rosto visionário, extenuado, as olheiras antecipando-se ao tempo, à "experiência".


A narrativa é semelhante a um fluxo de consciência, com presente, passado e futuro dividindo o mesmo espaço sem ordem cronológica nem capítulos definidos. Como alguém que se senta no divã e conforme vai puxando o novelo de lã que é a sua vida, começa a trazer memórias, reflexões e pensamentos.

Dando um tom introspectivo na narrativa em primeira pessoa, onde nem tudo é explicito e não raro há situações que ficam mais na sugestão no que no detalhamento para o leitor.


O que eu achei de O Amante

Esta foi a segunda vez que leio o livro de Marguerite Duras. Havia recebido o livro em capa dura em uma coletânea de clássicos que o jornal do meu estado vendeu tempos atrás.

E acabei relendo por causa do encontro com outros assinantes da TAG Curadoria, já que a obra foi o livro de abril, ao qual pulei para não ficar com dois livros iguais.

Sei que não são as roupas que fazem a mulher mais ou menos bela nem os cuidados de beleza, nem o preço dos cremes, nem a raridade, o preço dos adornos.


Quando abri o livro já não tinha lembranças de sua narrativa, apenas a famosa base de que era o caso de amor de uma adolescente com um homem mais velho.

Ao reler, me deparei com uma família desestruturada, que apesar da pobreza tem empregados, da mãe que cobra postura da filha, mas permite que ela chegue em qualquer horário na escola após os encontros com o amante. De um irmão mais velho que inspira medo nos que convivem com ele e deixa para a mãe pagar as dívidas dos seus vícios.

Resta aquela menina que começa a crescer e que talvez um dia venha a saber como trazer dinheiro para casa.


Também é uma narrativa que expõe a colonização, onde a cor da pele ou o dinheiro não impede que ocorra racismo ou preconceito.

E por fim é um livro bem psicológico, pois não foram raras as vezes que me vinha o jargão "fale-me mais sobre isso" durante a leitura. Ficando a dúvida se era ficção, algo que deveria ficar subentendido ou traumas que não conseguem ser revelados.

Sente subitamente uma angústia até então apenas pressentida, uma fadiga, a luz apagando-se levemente no rio.


Mas apesar de todas as suposições, de ser um livro bem curto, eu segui não gostando.

A mistura de pedofilia e prostituição foi algo que me incomodou ainda mais nesta segunda leitura. Pois o relacionamento não é iniciado por amor, paixão ou uma atração física na minha opinião, mas pelo que o dinheiro dele poderia proporcionar.

Quer a apanhem, quer a levem, quer a maltratem, quer a corrompam, eles não devem saber mais nada.


Também me peguei achando que se o nome do livro fosse O irmão mais velho, combinaria mais. Pois o amante é uma figura secundária em meio a todos os conflitos que as relações familiares causaram em todas as etapas da vida da narradora, sendo uma ferida ainda não curada mesmo após tantos anos.

Sendo o amante apenas mais um a acelerar o seu sentimento de envelhecimento precoce, de mudança na imagem que via no espelho ainda tão jovem. Me parecendo o resultado de quem se sentia usada por todos ao redor sem nunca ter sido realmente amada.

Ele lamenta o que ocorreu comigo, digo-lhe que não deve, que não devo ser motivo de lamentação, ninguém deve, exceto minha mãe.


E apesar de tanta complexidade, em muitos momentos ela me pareceu superficial. Como se a narradora tivesse uma borda a ser respeitada, e justamente ao respeitar estes limites, ela não me ganhou como leitora.

Pois o vai e vem de tempos e lembranças me parecia mais um disfarce para não explorar o que era realmente importante para a menina frágil e a mulher já idosa que manteve tudo muito vivo em sua memória.

Só que esta é a minha leitura, a sua pode ser completamente diferente, e assim deixo a indicação deste clássico para que você possa tirar suas próprias conclusões.


O Amante
L'amant
Marguerite Duras
Tradução: Aulyde Soares Rodrigues
2003 - 95 páginas
Publicado originalmente em 1984



sexta-feira, 20 de junho de 2025

Farda, fardão, camisola de dormir



Sinopse: Quando o Estado Novo de Getúlio Vargas ainda flerta com o eixo nazifascista, a morte súbita e prematura do poeta Antônio Bruno abre uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Quem prontamente se candidata é o coronel Sampaio Pereira, chefe da repressão política do regime e simpatizante do nazismo. Alarmados com a possibilidade de ver um inimigo da cultura ocupar a cadeira do boêmio, sedutor e gaiato Bruno, alguns veteranos acadêmicos articulam a anticandidatura de outro militar, de oposição, o general reformado Waldomiro Moreira. Segue-se então uma memorável e imprevisível campanha eleitoral na Academia. 



No Rio de Janeiro de 1940 o poeta Antônio Bruno não suporta as aflições que a bela cidade de Paris vem sofrendo devido a segunda guerra mundial e sofre um infarte fulminante.

O boêmio além de deixar várias mulheres as lágrimas, coloca uma batata quente na mão dos integrantes da ABL - Academia Brasileira de Letras: a escolha do sucessor para ocupar a sua cadeira em plena ditadura de Getúlio Vargas.

Esta fábula conta como dois velhos literatos, acadêmicos e liberais, partiram em guerra contra o nazismo, a ditadura e a prepotência.


O complicador parte de outro integrante da ABL, o acadêmico Lisandro Leite, deseja integrar o STF, e para isso vira padrinho do coronel Agnaldo Sampaio Pereira, chefe da repressão política do Estado Novo, sob a justificativa que uma cadeira pertence aos militares e a tradição havia sido quebrada com a escolha do poeta.

Para combater o simpatizante nazifascista, dois outros integrantes, o romancista Afrânio Portela e o ensaísta Evandro Nunes dos Santos, vão atrás de um militar menos perigoso, o general da reserva Waldomiro Moreira, para ser o oponente na eleição, e que já tentava uma vaga na Academia Fluminense de Letras.

Haverá sentimentos mais onipotente, a dominar o coração dos homens, do que a vaidade?


Misturando nesta narrativa bem-humorada com toque de "fábula para acender uma esperança" história do Brasil e bastidores das eleições da ABL, Farda, fardão, camisola de dormir é para relaxar e sorrir com a crítica irônica de Jorge Amado não só ao país, mas também ao ambiente que ele mesmo frequentou.


A escrita de Jorge Amado

Um escritor que dispensa apresentações, acho que isso cabe muito bem a Jorge Amado, o escritor baiano traduzido para diferentes idiomas, cujos livros viraram novelas e filmes.

Em seus livros encontramos personagens cativantes, pitadas de humor, drama e crítica social. E Farda, fardão, camisola de dormir não foge disso.

Tinham de derrotá-lo, fosse como fosse, para provar que ainda existe decência neste país, que a Academia se mantém independente e digna.


A história começa já pelo título, já que a farda representa os militares e a repressão dos anos de 1940, o fardão o traje caro de gala dos imortais da ABL e a camisola de dormir o poema do personagem que morre para dar início a toda essa bagunça.

O ano de lançamento do livro também é simbólica, publicado em 1979 em plena Ditadura militar acaba provocando no leitor de hoje a realizar um paralelo entre duas épocas um tanto sombrias da nossa história.

Todos temos dois lados, um bom, um ruim. Pior do que um robô, o senhor é um homem pela metade, torturador de presos.


Ao mesmo tempo que mexe com uma das áreas do mundo intelectual, ao qual ele mesmo passou a fazer parte em 1961, revelando como ocorre a eleição para imortal na ABL, com suas visitas, etiquetas, presentes e conversas para ganhar a simpatia de quem pertence ao seleto grupo.

Misturando realidade e ficção em uma narrativa em terceira pessoa bastante fluída, com alguns plots que despertam ainda mais a vontade do leitor de descobrir quem será o eleito a ocupar a cadeira do poeta boêmio.


O que eu achei de Farda, fardão, camisola de dormir

Confesso que este é apenas o segundo livro que leio de Jorge Amado. O primeiro foi Capitães de areia, ao qual gostei muito, e por indicação da minha mãe, comprei Farda, Fardão, camisola de dormir.

Achei divertida a mistura de sátira e história encontrada na narrativa, também gostei de ver o funcionamento da ABL na candidatura de seus imortais.

Os livros sobram por toda parte: amontoados no chão, em cima das cadeiras, abertos na pesada mesa de trabalho.


A politicagem de tratamento, visitas, presentes e interesses tanto dos que apoiam como os que não se agradam, me passaram o sentimento de que a obra produzida pelo candidato não se encontra em primeiro plano.

O que fica muito bem disfarçado pelo perfil dos dois candidatos que eles tiveram que aceitar de livre e obrigada vontade. E que dão todo o toque humorístico na narrativa.

Penosa, deprimente, desgastante, a campanha eleitora aproximava-se do fim da primeira etapa: os dois meses durante os quais os candidatos podiam se inscrever.


As mulheres são figuras importantes na história também, utilizando influência e poder de sedução para que a cadeira do seu amado poeta não seja ocupada por alguém que foge completamente do que ele defendia.

E ao falar de liberdade e censura, assuntos que nunca saem de moda, Jorge Amado me levou como leitora a dar uma volta ao passado com reflexões e riso.

Para quem iniciara a campanha sem opositor e com promessa de eleição unânime, o panorama da batalha se revelou flutuante e nebuloso.


No geral achei a escrita bastante fluída, o que faz com que a leitura seja rápida. Confesso que até o final da segunda parte me peguei perguntando se seria só aquela disputada entre os dois candidatos, mas a virada de chave é sensacional, o que me deu mais curiosidade de seguir na segunda parte.

E a curiosidade aqui é que ele se inspirou em uma votação real para criar uma narrativa cheia de intrigas, planos e reviravoltas. Uma homenagem com toque de crítica ao seu próprio meio.

Se não fossem as eleições, quem haveria de ligar para um velho como eu, embaixador aposentado, cobrando do Itamaraty uma miséria por mês, em moeda fraca? Ninguém, meu caro.


Eu já quero ler outros títulos dele, e deixo este como sugestão para quem quer um livro para se divertir, ao mesmo tempo que reflete sobre vários assuntos.


Farda, fardão, camisola de dormir
Jorge Amado
Companhia das Letras
2009 - 259 páginas
Publicado originalmente em 1979


sexta-feira, 6 de junho de 2025

Apolo - Diários perdidos dos jovens deuses

 


Sinopse: O filho ensolarado de Zeus, Apolo, só quer se dedicar à lira e à poesia, mas a diversão vai ter que esperar. Estranhos acontecimentos desafiarão o deus do sol fazendo com que os dias se tornem tristes e apagados.



Apolo faz parte da coleção Diários Perdidos dos Jovens Deuses, encontrados durante uma escavação arqueológica realizada próxima a cidade grega de Arácova.

Durante o período da guerra contra os Titãs, também chamada de Titanomaquia, os jovens deuses Apolo, Atena, Hermes, Ártemis, Hefaistos, Ares e Afrodite são enviados por Zeus para estudar na escola Museion, dirigida pelas nove musas no Monte Parnaso.

Eles haviam descoberto diários perdidos dos jovens deuses da Gré cia Clássica.


Em uma mistura de conflitos tipicamente adolescentes e mitologia grega, o jovem Apólo se depara com as primeiras grandes escolhas e a dificuldade de lidar com as suas consequências.


A escrita de Rosana Rios e Antônio Schimeneck

A coleção Diários Perdidos dos Jovens Deuses busca apresentar com uma linguagem atualizada os deuses do olimpo em uma visão jovem, que mistura dramas familiares, amizades, paixões, rivalidades e o amadurecimento de cada um.

No caso de Apolo, uma das divindades mais conhecidas da mitologia grega, é buscado associar junto com os seus dramas adolescentes as características que o fizeram deus da luz e do sol, da música e da poesia e da profecia.


Os raios solares me aquecem, me dão forças, alimentam minha mente com frases alegres e versos amorosos.


Suas relações familiares com os pais Zeus e Leto e sua irmã gêmea Ártemis também são exploradas, sendo uma espécie de pequena introdução aos adolescentes nestas relações um tanto complexas.

O que faz com que a coleção seja adotada em algumas escolas para os alunos do ensino fundamental e também seja utilizado em atividades de leitura que envolvam o público infantojuvenil.


O que eu achei de Apolo

Este livro caiu em minhas mãos justamente por ter se tornado uma leitura obrigatória para a minha filha, e como ela ficou com uma péssima impressão do Apolo, eu resolvi ler também.

Com capítulos que levam o nome das estações do ano e narrativa em primeira pessoa, a escrita é realmente voltada para o público jovem, me fazendo recordar o tempo que eu lia os livros da Coleção Vagalume. Tem aventura, emoção, conflitos, tudo resolvido de forma rápida, para não afastar o leitor.

A maioria me saúda com respeito. Alguns ficam com medo. Gosto de ser recebido assim... Sou o deus da Música e o melhor arqueiro da terra!


Mas acabei em concordar que algumas posturas do jovem deus são realmente problemáticas, o que poderia abrir discussões riquíssimas em sala de aula, ao invés de apenas uma prova. 

Começo pela perseguição de Apolo a ninfa Dafne, enquanto ele se imagina namorando ela, a guria vive fugindo dele, por mais que a irmã, a deusa Ártemis, peça para ele se manter afastado. A forma como Dafne termina, sem nenhuma consequência para Apolo pode servir de paralelo ao assédio sofrido pelas mulheres nos dias atuais.

Tinha a sensação de que os ventos riam de mim; era como se as más notícias tivessem atraído mais frio para o Parnaso.


Outro ponto é a morte de Hyacintus, o humano que em uma brincadeira com o deus grego perde a vida. E mais uma vez não vemos uma consequência, além da breve culpa, de Apolo. Nos dias atuais seria muito fácil fazer um paralelo entre as pessoas mais simples e os poderosos. Onde muitas vezes em situações críticas, como já dizia uma música, uns são mais iguais que os outros.

Então acredito que sim, para ter uma ideia dos mitos gregos e até para explorar o comportamento dos mesmos em um paralelo com os dias atuais, pelo menos o livro do Apolo pode render boas conversas sobre não apenas a mitologia, mas também pelo aspecto comportamental.


Apolo - Diários perdidos dos jovens deuses
Autores: Rosana Rios e Antônio Schimeneck
Editora ama livros
2024 - 104 páginas

terça-feira, 27 de maio de 2025

O perigo de estar lúcida


Sinopse: Com base na sua experiência pessoal e na leitura de inúmeros livros sobre psicologia, neurociência, literatura e memórias de grandes escritores, pensadores e artistas, Rosa Montero oferece aqui um estudo fascinante sobre as ligações entre criatividade e instabilidade mental. E o faz compartilhando curiosidades surpreendentes sobre como nosso cérebro funciona na hora de criar, decompondo todos os aspectos que influenciam a criação e reunindo-os diante dos olhos do leitor enquanto escreve ― como uma investigadora pronta para combinar peças avulsas para solucionar um caso misterioso. Ensaio e ficção andam de mãos dadas nessa exploração das conexões entre o criar e a loucura. 



Em A Louca da Casa, a escritora espanhola Rosa Monteiro já havia listado aos leitores o conjunto de ingredientes que levam um autor a conquistar a mente de quem vira suas páginas de forma a não largar o livro até chegar à última página.

Em O perigo de estar lúcida ela explora ainda mais a relação um tanto complexa entre a criatividade e a instabilidade mental. E exemplos de escritores famosos com seus fins nada felizes não faltam para nos fazer refletir sobre este sofrimento.

Isso é algo que acontece com frequência: você vai crescendo e um belo dia descobre que aquilo que acreditava firmemente na infância era uma falácia ou uma bobagem.


Sofrimento que pode servir de inspiração artística, ou que busca através da escrita um alívio para as dores pessoais que atormentam o dono das palavras.

Ao utilizar a sua própria vivência compartilhando suas crises de pânico, ela consegue equilibrar as explicações teóricas sobre fatores químicos e situacionais com os sentimentos de quem sentiu na pele. Em um texto que fala de criatividade, envelhecimento, funcionamento do cérebro, escolhas e tempestades.

Os fantasmas de um escritor são aqueles temas ou detalhes que se repetem constantemente em seus livros sem que, de modo geral, ele ou ela tenha consciência disso.


Ao falar sobre a tempestade perfeita, que pode resultar em um surto de criatividade ou em um último ato, ela aproxima a todos que de alguma forma convivem com isso ao mesmo tempo que dá luz a um assunto em que nem todos aceitam conversar pelo preconceito que ainda existe.

O único porém é que o livro pode fornecer alguns gatilhos para quem talvez esteja mais sensível no momento. E mesmo a autora solicitando que se aguente um pouco mais e espere a tempestade passar, talvez nestes casos, a leitura também deve ser deixada para um momento em que os pensamentos intrusivos não tragam ideias que possam nos ferir naquele momento.


A escrita de Rosa Monteiro

A espanhola Rosa Monteiro estudou jornalismo e psicologia, e com suas obras que abrangem desde romances, passando por ensaios, crônicas e literatura infantojuvenil. O que tornou a escritora uma das mais influentes jornalistas e escritoras contemporâneas da Espanha.

Seus livros tem por característica uma narrativa introspectiva, as vezes feministas, frequentemente autobiográfica, e sempre muito sensível, tornando-a envolvente para os leitores.

Se você realmente acha que não sente nada, isso significaria que não ama ninguém. E, se não ama, será que você não é o maior impostor do universo?


E é essa mistura junto com os temas morte, memória, loucura, vida, morte  e arte que são encontradas nas páginas de O perigo de estar lúcida.

Ao misturar relatos de sua própria vida, ficção e um pouco da vida de grandes nomes da literatura como Sylvia Plath, Virginia Woolf e Janet Frame de uma forma direta, simples e sensível, sua escrita nos leva a encarar de frente os desafios psicológicos enfrentados enquanto a arte segue sendo criada por mentes inquietas.

Se você tirasse o córtex cerebral da cabeça e o passasse a ferro, ele poderia chegar a medir meio metro quadrado.


Nos levando a várias reflexões sobre o funcionamento complexo da mente humana, passagem do tempo e sobre o ato de viver.


O que eu achei de O perigo de estar lúcida

Logo no primeiro parágrafo sou remetida para uma memória de infância. Rosa Monteiro tinha um objeto em casa que a mãe precisava esconder para ela dormir. Nas inúmeras casas que eu morei, havia o rosto de um chinês pendurado cujos olhos, independentemente de onde eu estava, pareciam estar me observando. Toda vez que eu ficava sozinha, tirava o objeto e deixava de rosto virado para o sofá, para ter paz.

Seguindo a leitura, parecia estar andando em um caminho aparentemente inocente, criatividade, cérebro que funciona diferente e então o sombrio. As várias vidas que se foram por não conseguirem esperar a tempestade perfeita passar.

Mesmo o romance mais experimenta e desconexo tem um começo e um fim, e domestica de algum modo essa algazarra absurda em que vivemos.


Internações, sofrimentos, obsessões, mulheres subjugadas. Não há ninguém para salvar pessoas de cérebro inquieto? Cujas vozes parecem narrar histórias, teorias e até mesmo pesadelos grande parte do dia? Ninguém para ver os sinais?

E embora eu tenha achado o livro muito semelhante ao Louca da casa, a ponto de precisar dar uma pausa por um breve momento estar achando a leitura enfadonha. Ao final me dei conta que é um livro que mexeu com o meu íntimo. Viver, morrer, envelhecer, sonhar, ter medo da loucura, da depressão ou de simplesmente adoecer. 

Não consigo me enxergar na minha idade real. Não entendo como cheguei a isso. 


Tudo muito próximo neste nosso mundo bastante insano, que parece testar o nosso limite em diversas situações e áreas. Onde resistência e resiliência podem ser exigidas todos os dias até te levar a lágrimas de exaustão.

Exigindo uma coragem extra para a tempestade perfeita passar. Exigindo uma proteção nos olhos para buscar uma luz em meio a escuridão. Exigindo sensibilidade para encontrar uma mão de apoio próxima que perceba sinais e te ajude a esperar por mais um dia. Exigindo uma respirada mais funda ao se dar conta de quanto tempo passou.

Não importa o quão maluco você pareça: sempre há um punhado de gente no mundo que sente, pensa e age como você.


Motivo pelo qual eu gosto tanto da escrita da Rosa Monteiro, ela consegue ao contar as histórias de grandes nomes da literatura mostrar a humanidade de sentimentos tão complexos da nossa mente. Sem julgamentos, somente com fatos e uma gentileza com aqueles que mereciam um abraço.

Ficando a indicação para quem gosta de livros que tratam de temas psicológicos, sobre a arte da escrita, sobre autores de renome, ou que simplesmente gostam de ler.


O Perigo de estar lúcida
El peligro de estar cuerda
Rosa Montero
Tradução: Mariana Sanchez
todavia
2023 - 270 páginas
Primeira publicação em 2022

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Mundos de uma noite só

Sinopse: Mundos de uma noite só é um romance de formação. Mas também de destruição: de uma cidade, de um tempo e, em especial, de nossas mais preciosas ilusões. Assim, somos convidados a acompanhar a jornada de uma mulher que, após encontrar um livro antigo entre as coisas de sua mãe, se vê obrigada a revisitar sua própria história. Multifacetado e de leitura hipnótica, este romance nos revela que, realmente, nada é apenas o que parecer ser. Nem mesmo aqueles que mais amamos.



No mês de março/25 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação da escritora Carola Saavedra - que tem o livro Com armas sonolentas resenhado aqui no blog - Mundos de uma noite só da sua pupila Renata Belmonte. O mimo foi chamado de cápsula de inspiração literária, que nada mais é do que cartões com frases de grandes escritoras. 

A menina sem nome, apelidada de Vivinha, cresce com duas mães em uma casa onde há fotografia de belas mulheres da família, ao qual nunca conheceu presencialmente, mas nenhuma referência masculina.

Foi nessa época, quando eu tinha apenas cinco anos, que elas me ensinaram que o amor é apenas um anticorpo do medo.


Uma criança que sofre de uma doença tão não nomeada quanto ela, vê a mulher que chama de mãe passar mais ausente que presente, enquanto Lágrima, sua segunda mãe, lhe presta a assistência no dia a dia.

Em paralelo um manuscrito póstumo chamado Uma valsa para o esquecimento apresenta a Vivinha a história dos Grimaldi desde a época de 1940, e assim ela vai conhecendo não só a família paterna como os seus próprios pais.

Se meus sonhos não se realizavam por que haveria de achar que logo meus pesadelos se tornariam realidade?


Mostrando em forma de uma dupla narrativa como o machismo estrutural funciona naturalmente dentro de uma família por gerações.


A escrita de Renata Belmonte

A baiana Renata Belmonte é formada em direito e iniciou no mundo literário através de um livro de contos. Mundos de uma noite só é o seu primeiro romance e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.

Sua escrita tem como característica explorar temas relacionados a mulheres, como a opressão feminina, a própria identidade e as relações familiares. Algo plenamente encontrado em Mundos de uma noite só.

Como todos os outros, estava ficando velha e cansada. Pior: como todos os outros, começava a colecionar mágoas.


Mundos de uma noite só possui duas narrativas em uma. Para contar a história de Vivinha os capítulos parecem recortes, em uma estrutura não tão linear, que vai pontuando fatos da infância até a vida adulta da personagem.

Já o manuscrito tem uma sequência cronológica mais estruturada, e ao mesmo tempo ele fornece pistas do que acontece na vida de Vivinha, como uma espécie de quebra-cabeça.

Apesar de o marido ter sido um dos fundadores de um partido de oposição, viviam exatamente da mesma forma que os outros que ele tanto atacava.


Um dos recursos utilizados é o da repetição. Há repetições de parágrafos inteiros ou de frases para resgatar uma cena, podendo passar a impressão de erro na publicação, mas é um recurso literário. 

Também são utilizadas diversas expressões literárias, como na dedicatória que cita Albert Camus ou de uma frase de Simone de Beauvoir no momento da primeira menstruação.

Já havia escutado minha mãe dizer que era assim: todas as mulheres morrem, pela primeira vez, aos quinze anos.


E existem detalhes na forma como algumas coisas são apresentadas sem precisarem ser ditas, e a falta do primeiro nome das personagens principais representa é um exemplo do apagamento feminino, muito bem representado pela Senhora de Menezes Grimaldi.

Um livro para discutir o universo feminino com e sem firulas durante três gerações em um romance que pode causar reflexões ou confusões na sua linha de pensamento.


O que eu achei de Mundos de uma noite só

Sou fã de quebra-cabeças e livros de suspense. Então ao ler as primeiras páginas, em uma ligação para a minha mãe lhe disse: eu acho que é isso, isso e isso. Minha mãe já havia lido o livro, mas como combinado, ela não me deu nenhum spoiler. E sim, após a confirmação de que o livro terá uma continuação - ao qual não lerei - eu acertei.

Mas não irei ler a continuação por ter achado ruim? Pelo contrário, achei o livro bom, mas a graça nele para mim foi justamente terminar em dúvida, pensando se as duas narrativas eram realmente uma ou se era absolutamente tudo inventado, tipo aqueles filmes que no final a pessoa descobre que estava sonhando.

De repente, o que era uma mistura de admiração e medo, passa a ser rancor e um tanto de desprezo pela constatação de sua humanidade.


Só que comecei o meu acho rápido demais, voltemos para o início. A narrativa lembra muito o formato de quebra-cabeças, já que algumas das dúvidas que vão surgindo na parte da Vivinha são respondidas pelo livro encontrado após a morte da mãe.

Existem algumas lacunas que persistem, como a doença da menina, se era algo físico, se era depressão ou uma forma de chamar a atenção da mãe ausente, cuja presença de Lágrima não consegue atenuar.

Como não enlouquecer vendo as mesmas caras, dia após dia, por toda a vida? Como não perder a cabeça presenciando os mesmos acontecimentos, ano após ano?


Na parte do livro póstumo há muita crítica, e elas vão além da hipocrisia familiar, abrangendo também a sociedade e a política. Assim como as traições são recorrentes em diferentes níveis de relacionamento.

Em ambas as partes temos as vivências do universo feminino, da primeira menstruação, gravidez, maternidade, amores, vontade de agradar, amizade entre mulheres e abusos de diversos tipos, em diferentes classes. 

Se é o amor que irá me salvar, para que ele apareça logo, dou início ao meu processo destrutivo.


Além disso, para quem acompanha ou viveu a cultura do século passado, algumas referências irão chamar a atenção. O sobrenome Grimaldi foi um dos itens utilizados na narrativa que me fizeram a associar a easter egg, e sim, encontrei mais de um na história. No caso dos Grimaldi, é o mesmo sobrenome da família que tem o controle do Principado de Mônaco. Lembram da princesa Grace Kelly?

Mas no lugar desses easter egg serem divertidos, é quase como se a autora quisesse me lembrar que apesar de ficção, há muito de realidade no que é contado. Pois o uso de um sobrenome da nobreza europeia em uma que representa a elite política brasileira, nos faz pensar não apenas no poder patriarcal, como nas renúncias femininas e o que se esconde toda a fachada de influência e respeitabilidade.

Algumas coisas são certas nesta vida. A primeira delas é que, em algum lugar do mundo, existe alguém que irá lhe fazer mal, mesmo que não intencionalmente.


O apagamento da mulher, muito bem representado pela falta do nome de Vivinha e da sua avó paterna, chamada sempre de Sra. Menezes Grimaldi, foi para mim a maior evidência disso. Pois a saída das mulheres da sombra das figuras masculinas ainda é recente e não é total. Então foi como um lembrete de que muitas coisas ainda não mudaram, e ainda não ocupamos todo o espaço que temos direito.

No geral apenas um ponto me incomodou: o narrador do livro póstumo. Confesso que foi ele que me levou a dúvida se tudo era "real" ou apenas invenção. E na minha opinião, um diário escrito pela Sra. Menezes Grimaldi teria tornado esta parte mais verossímil.

Eu não pude ter uma infância normal por causa dela. Desejou me transformar num protótipo seu, numa pequena prostitua magricela.


E é justamente esta brincadeira de descobrir se as teorias estão corretas, com a dúvida se tudo é realmente real somada com as inúmeras reflexões sobre o universo feminino, tornam o livro fechado para mim, o que motivou a minha declaração no início de que não, não desejo ler a continuação.

Mas deixo a dica para você ler Mundos de uma noite só e tomar a sua decisão se deseja ou não ler a continuação. Querendo trocar percepções, é só deixar as suas teorias nos comentários.


Mundos de uma noite só
Renata Belmonte
TAG - TusQuets Editores
2025 - 192 páginas
Publicado pela primeira vez em 2020