Sinopse: Nesta estreia literária que se tornou um fenômeno mundial, acompanha a formação de uma criança que cresce num bairro operário devastado pela heroína, na Madri dos anos oitenta. Com crueza e poesia, Alana S. Portero cria um romance sobre as alegrias e os conflitos envolvidos na experiência de uma pessoa que decide experimentar livremente o gênero. A partir da sua escrita terna e feroz, caminhamos entre mitologias diversas, construídas com santos católicos, divas pop, travestis e referências literárias.
No mês de outubro/2024 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação da escritora Carla Madeira o livro Mau hábito da escritora espanhola Alana S. Portero. O mimo foi uma ecobag para garrafinha de água.
Nas décadas de 1980 e 1990, artistas como Madonna, Rick Astley, Whitney Houston, U2 explodiam nas paradas de sucesso. Fazendo a trilha sonora de crianças e jovens espalhados pelo mundo inteiro, que externavam ao cantar as músicas muitos dos sentimentos que guardavam.
Vi uma geração inteira de rapazes cair como anjos em estado terminal. Adolescentes com a pele cinza, faltando dentes, cheirando a amoníaco e urina.
Inclusive em Madrid, que vivia uma transição política - após a ditadura de Franco estavam retornando a democracia -, cultural - sendo celeiro de novos talentos -, social - com uma sociedade mais aberta e tolerante -, além de um grande desenvolvimento urbano que mudaria a cara da cidade.
E é no meio destas transformações que uma criança, vivendo no bairro operário de San Blas, se depara com o primeiro desafio de sua vida: não se identificar com o gênero que nasceu.
A droga foi a última fora de execução sumária de dissidentes de um regime que encontrara a forma de se perpetuar.
Imitando a postura de seus parentes do sexo masculino em público – a forma de um primo sentar, de um tio comer e do pai de se expressar -, é no banheiro e ouvindo música que ela tenta se transformar no que gostaria de ser, invejando os grupos de mulheres que se juntam para conversar e fazer compras, em uma aliança muito mais antiga do que o imaginado.
E é essa criança que narra Mau hábito, compartilhando cada fase de sua vida, da infância, passando pela adolescência até a vida adulta. Onde divide com o leitor suas dúvidas, sua própria aceitação, seus amores e horrores em uma escrita sensível e delicada.
A escrita de Alana S. Portero
Mau hábito é o romance de estreia da escritora espanhola Alana S. Portero, que assim como a narradora da sua história, é uma mulher transgênero que nasceu em um bairro operário de Madrid. Iniciou a carreira no teatro e hoje ocupa um papel de destaque na literatura espanhola contemporânea.
Em Mau hábito a narrativa ocorre em primeira pessoa, onde experiências e pensamentos são compartilhados com o leitor, tendo características de um romance de formação, já que a história se inicia ainda na infância e prossegue por cerca de trinta anos.
Era insuportável, e se alguma vez a violência extrema teve uma rotina cômoda foi naquela casa.
O ambiente escolhido é uma mescla de cuidados familiares, criação de laços com quem compartilha as mesmas vivências e a violência em um bairro mais pobre, que pode vir tanto na forma física quanto na psicológica.
Trazendo à tona assuntos como drogas, aids, preconceito, primeiro amor, e a cultura popular, seja por música, moda, cinema e bairros. Ao mesmo tempo que mostra de forma sutil a transformação de uma cidade após um período de muita restrição.
No mundo das portas abertas, não havia espaço para o rebolado nem para o choro, só para os machões.
Tudo em uma escrita bastante sensível, que encaminha a personagem da história de forma gentil, mesmo nas situações mais difíceis, sendo muito fácil para o leitor sentir carinho e vontade de ajuda-la.
O que eu achei de Mau hábito
Estive em Madrid em 2015 e ler Mau hábito foi dar um passeio por algumas ruas, além de me permitir fazer um antes e depois entre o que estava escrito e o que eu vi durante a minha viagem, ao qual curiosamente pegou o dia da parada gay na cidade.
Como fã das músicas dos anos 80 e 90 adorei as referências musicais, não raro ficava com algumas das músicas citadas na cabeça (Papa don't preach), e me sentia no quarto da personagem com vontade de dançar junto.
Meu pai era assim. Sempre nos dizia a verdade, sem muitos rodeios, e considerava que tínhamos direito às respostas.
Também achei que a escrita me permitiu entender um pouco do sofrimento sentido por quem sofre de disforia, termo utilizado pela própria autora, me fazendo refletir que se já é difícil para muitos lidar com o espelho quando inicia o processo de envelhecimento, o quão duro deve ser em momento nenhum da vida se sentir bem na própria pele.
Existem vários eventos marcantes na história, que tem personagens secundários muito interessantes como as vizinhas Margarida e Peruca, o grupo de travestis que me lembrou o livro O parque das irmãs magníficas, o dono do bar Antônio com suas memórias em forma de fotos de quem foi vítima da aids, o primeiro amor Jay e o conhecido torcedor de futebol ao qual é bom manter distância.
Cibele era a guardiã dos emasculados, dos hermafroditas e dos eunucos, a mãe dos que renunciavam à masculinidade grotesca e abraçavam a ferocidade das mulheres.
Aliás, achei muito interessante a abordagem sobre o assunto, pois em um momento havia o primeiro amor sem consciência do risco, e depois a lembrança do vírus na época mortal que estava sempre à espreita.
Mas é justamente quando este personagem cujo nome só aparece uma vez parece estar se encontrando que ocorre uma virada e surgem os poucos pontos que me incomodaram na leitura.
Acabei entendendo isso, as dobras da memória são traiçoeiras e podem soltar lembranças tão vivas que corremos o risco de ficar presas em lugares que prometemos nunca mais pisar de novo.
Pois como acompanhamos a vida da personagem por um longo período, eu senti falta de uma conversa franca com a família. O motivo é justamente por ser uma família amorosa, estruturada, cujos pais explicavam dúvidas sem preconceito ou enviesados.
E para mim foi um sentimento que ficou latente mesmo após encerrar a leitura, pois em todas as partes que entrava mãe, pai e irmão, era possível sentir como eles eram uma base. Como eles pareciam saber que havia algo diferente pelo cuidado que todos tinham com a personagem, e como talvez essa conversa tenha feito falta para ela não ser tão perdida.
Tudo que tinha a ver com minha identidade, quando ensaiava as possibilidades de contá-la, soava como a confissão de um crime ou de um pecado imperdoável.
Como há uma passagem de tempo, também senti falta de explorarem a mudança na mentalidade da sociedade madrilena, como foi a mudança de tornar todas as ruas mais seguras para todos, não sendo mais necessário se esconder ou frequentar apenas bairros específicos.
Mas no geral gostei da história, concordo com o adjetivo que a minha mãe usou de ser um livro delicado, ao qual a escrita torna fácil compartilhar o misto de sentimentos da criança/jovem que acompanhamos crescer.
Eu me esforço muito para me adaptar ao que se espera de mim, interrompo meus sonhos me dando uma bofetada.
Uma coisa que eu achei muito legal na edição da TAG, e ficou na torcida para ter na edição comercial também, é a playlist da autora para o livro. No meu livro, fica na última página.
Ficando a dica de leitura para quem curte romances de formação, que fazem o leitor caminhar pelas ruas de outras cidades, que gostam de refletir sobre a sociedade, ou que simplesmente gostam de ler uma boa história.
Mau hábito
La mala costumbre
Alana S. Portero
Tradução be rgb
TAG - Amarcord
2024 - 231 páginas
Publicado originalmente em 2023