terça-feira, 4 de agosto de 2020

A Dança da Água



Sinopse: Primeiro romance de uma das principais vozes contemporâneas dos Estados Unidos traz enredo repleto de elementos fantásticos sobre os horrores da escravidão. Por toda a América as plantações de tabaco floresceram e trouxeram riqueza aos senhores de terra durante o século XIX. Quando a bonança começa seu declínio, Howell Walker já vislumbra o próprio fim e sabe que precisará de um substituto para administrar os últimos dias de Lockless, sua propriedade no coração da Virgínia, Estados Unidos. Logo fica claro que seu único herdeiro, Maynard, não tem a menor aptidão para a missão. E mesmo o jovem Hiram, com sua resiliência e memória infalíveis, não poderia fazê-lo, além de filho ilegítimo de Walker, ele é um escravo. No entanto, quando os meios-irmãos se afogam nas águas do rio Goose, a vida de Hiram é poupada por um poder misterioso e até então oculto dentro dele, uma herança materna que se perdera junto com as lembranças da mãe, vendida e levada para nunca mais voltar. Desse breve encontro com a morte brota uma grande urgência: Hiram precisa escapar do lugar que foi seu lar e prisão desde o dia em que nasceu. A dança da água narra toda a atrocidade infligida a homens, mulheres e crianças negros ao longo de gerações, os grilhões da escravidão e o desmembramento cruel de inúmeras famílias, compondo um relato comovente e místico sobre destino e propósito, perda e separação.

O exemplar número 22 do Intrínsecos, e o meu segundo no clube de assinatura, levou ao leitor o primeiro romance de ficção do escritor Ta-Nehisi Coates, considerado uma das vozes negras de maior relevância nos últimos anos. A capa dura azul combina totalmente com o clima fantástico do livro, sendo uma espécie de fábula das memórias que os escravos perdiam enquanto a sua vida é consumida pela submissão imposta pela violência. Os que tem o dom da condução, são os de boa memória, os que não conseguem esquecer, e assim conseguem se transportar através da água para lugares conhecidos e transportar pessoas com as quais possuem relação para lugares que podem ser pertos ou distantes.

Quem nos conta a história é Hiram em uma narrativa em primeira pessoa. Sabemos que ele está nos dizendo o que aconteceu no passado, principalmente quando ele observa a mudança do seu olhar em relação a determinada situação. Um detalhe que pode passar despercebido para quem faz leitura dinâmica.

Eu sempre evitava aquela ponte, manchada com a lembrança das mães, dos tios e dos primos que tinham ido para Natchez.

Tudo começa com uma dançarina sobre uma ponte de pedra que permite carroças atravessarem o rio Goose, no estado da Virgínia. Não é qualquer dançarina, nem qualquer ponte. A mulher envolta a luz azul fantasmagórica é a mãe de Hiram, e a ponte é a que usaram para leva-la embora quando ele ainda era um menino. O que acontece a seguir é o inesperado, em um momento ele e seu meio-irmão branco estão em terra e após a visão, dentro da água. Hiram tem certeza que é o seu fim, escuta os gritos de socorro Maynard e prepara-se quase que alegremente para a morte, mas ele é encontrado em um lugar completamente diferente.

Apesar de Ta-Nehisi Coates utilizar a palavras Tarefas e Tarefeiro, o leitor logo se dá conta que estamos falando do período da escravidão americana. Hiram é filho de uma escrava com o dono da fazenda. Conhecido por sua memória fantástica, o rapaz não consegue lembrar da própria mãe, como uma forma de proteção. Sozinho no mundo, ele primeiro se encanta pela casa do pai, mas é ao se apaixonar por outra escrava e tentar fugir que toda a sua vida muda.

Todas aquelas almas acorrentadas comigo desaparecendo.

E neste momento vamos conhecer os clandestinos que lutavam pelo fim da escravidão através de estratégias e antigas lendas africanas. Em relação aos outros títulos com a mesma temática, achei A Dança da Água mais poética em comparação aos demais títulos que eu já havia lido. Existe o lado doloroso, como a separação das famílias, mas mesmo em decadência a violência física em Lockless fica em segundo plano.

O que temos aqui é a memória, as lembranças de um povo retirado de sua terra, as gerações futuras separadas de seus pais, mulheres subjugadas aos desejos de seus patrões, famílias desfeitas. São as lembranças que permitem os de boa memória se transportarem de um ponto para outro, revendo rostos e situações que o marcaram, em um jogo de amores perdidos.

Eu temia muito que vissem isso em mim, em algum sorriso indevido ou calma improvável.

Na história não acompanhamos a vida inteira de Hiram, mas os acontecimentos que fizeram ele deixar de ser menino para ser um homem. Suas reavaliações em relação a sentimentos e palavras. Enquanto ele aprende sobre dor e amor, o leitor pode aprender sobre uma luta que ainda não acabou. Como o fato de a liberdade trazer responsabilidades, mas não o respeito. E o preço que muitas vezes pode ser a traição daqueles que consideramos amigos.

Entre os personagens, as femininas são muito fortes. Começando com Thena, cujo jeito frio esconde a tristeza por ter perdido toda a da família, mas isso não a impede de abrir o coração para receber o menino Hiram quando este vive a mesma situação. Há também Sophia, uma mulher bonita, que mesmo sendo escrava, tenta escrever o seu próprio destino e quando possível, realizar as próprias escolhas.

Mas liberdade, a verdadeira liberdade, também é um senhor, sabe?

As formas tradicionais de fuga me fizeram recordar outro livro, chamado The Underground Railroad, onde a personagem Cora leva o leitor por diferentes estados e visões sobre a escravidão. A rodovia é a expressão utilizada para definir a rede encontrada por Hiram, onde a clandestinidade move as estratégias dos abolicionistas, nos dando uma visão complementar, ao utilizar na ficção personalidades reais como Harriet Tubman. 

Neste livro duas coisas me incomodaram um pouco, a primeira foram algumas bobeiras na revisão do texto, um exemplo é o capítulo 3, que começa com o personagem dizendo que era o outono dos seus doze anos, para cinco páginas depois dizer que ele tinha apenas onze anos. A segunda mais do que um incomodo foi uma dúvida. Em livros como a Terceira Vida de Grange Copeland a falta de estudo está nos diálogos, algo que não acontece em A Dança da Água. Embora o personagem principal tenha recebido estudo para melhor auxiliar o seu meio-irmão, os diálogos quase sempre corretos me causaram um certo estranhamento. Como eu disse, é um eco de outras leituras, que não atrapalha em nada a leitura desta história.

A luz da estação lançava um brilho fantasmagórico naqueles casarões que, apenas um ano antes, ofegavam com suas últimas energias e sentimentos.

A Dança das Águas é dividida em três partes, e as indagações de Hiram me fizeram percorrer as páginas na mesma rapidez que as águas de um rio, e mesmo com algumas pedras me incomodando ao longo do caminho, o percurso conseguia mesclar doçura e tristeza na dose correta, sem perder a chance de nos fazer refletir. Um livro necessário para auxiliar na compreensão dos reflexos do passado nos dias atuais.

A Dança da Água
The Water Dancer
Ta-Nehisi Coates
Tradução: José Rubens Siqueira
intríseca
2019 - 397 páginas

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