Sinopse: Mundos de uma noite só é um romance de formação. Mas também de destruição: de uma cidade, de um tempo e, em especial, de nossas mais preciosas ilusões. Assim, somos convidados a acompanhar a jornada de uma mulher que, após encontrar um livro antigo entre as coisas de sua mãe, se vê obrigada a revisitar sua própria história. Multifacetado e de leitura hipnótica, este romance nos revela que, realmente, nada é apenas o que parecer ser. Nem mesmo aqueles que mais amamos.
No mês de março/25 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação da escritora Carola Saavedra - que tem o livro Com armas sonolentas resenhado aqui no blog - Mundos de uma noite só da sua pupila Renata Belmonte. O mimo foi chamado de cápsula de inspiração literária, que nada mais é do que cartões com frases de grandes escritoras.
A menina sem nome, apelidada de Vivinha, cresce com duas mães em uma casa onde há fotografia de belas mulheres da família, ao qual nunca conheceu presencialmente, mas nenhuma referência masculina.
Foi nessa época, quando eu tinha apenas cinco anos, que elas me ensinaram que o amor é apenas um anticorpo do medo.
Uma criança que sofre de uma doença tão não nomeada quanto ela, vê a mulher que chama de mãe passar mais ausente que presente, enquanto Lágrima, sua segunda mãe, lhe presta a assistência no dia a dia.
Em paralelo um manuscrito póstumo chamado Uma valsa para o esquecimento apresenta a Vivinha a história dos Grimaldi desde a época de 1940, e assim ela vai conhecendo não só a família paterna como os seus próprios pais.
Se meus sonhos não se realizavam por que haveria de achar que logo meus pesadelos se tornariam realidade?
Mostrando em forma de uma dupla narrativa como o machismo estrutural funciona naturalmente dentro de uma família por gerações.
A escrita de Renata Belmonte
A baiana Renata Belmonte é formada em direito e iniciou no mundo literário através de um livro de contos. Mundos de uma noite só é o seu primeiro romance e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.
Sua escrita tem como característica explorar temas relacionados a mulheres, como a opressão feminina, a própria identidade e as relações familiares. Algo plenamente encontrado em Mundos de uma noite só.
Como todos os outros, estava ficando velha e cansada. Pior: como todos os outros, começava a colecionar mágoas.
Mundos de uma noite só possui duas narrativas em uma. Para contar a história de Vivinha os capítulos parecem recortes, em uma estrutura não tão linear, que vai pontuando fatos da infância até a vida adulta da personagem.
Já o manuscrito tem uma sequência cronológica mais estruturada, e ao mesmo tempo ele fornece pistas do que acontece na vida de Vivinha, como uma espécie de quebra-cabeça.
Apesar de o marido ter sido um dos fundadores de um partido de oposição, viviam exatamente da mesma forma que os outros que ele tanto atacava.
Um dos recursos utilizados é o da repetição. Há repetições de parágrafos inteiros ou de frases para resgatar uma cena, podendo passar a impressão de erro na publicação, mas é um recurso literário.
Também são utilizadas diversas expressões literárias, como na dedicatória que cita Albert Camus ou de uma frase de Simone de Beauvoir no momento da primeira menstruação.
Já havia escutado minha mãe dizer que era assim: todas as mulheres morrem, pela primeira vez, aos quinze anos.
E existem detalhes na forma como algumas coisas são apresentadas sem precisarem ser ditas, e a falta do primeiro nome das personagens principais representa é u exemplo do apagamento feminino, muito bem representado pela Senhora de Menezes Grimaldi.
Um livro para discutir o universo feminino com e sem firulas durante três gerações em um romance que pode causar reflexões ou confusões na sua linha de pensamento.
O que eu achei de Mundos de uma noite só
Sou fã de quebra-cabeças e livros de suspense. Então ao ler as primeiras páginas, em uma ligação para a minha mãe lhe disse: eu acho que é isso, isso e isso. Minha mãe já havia lido o livro, mas como combinado, ela não me deu nenhum spoiler. E sim, após a confirmação de que o livro terá uma continuação - ao qual não lerei - eu acertei.
Mas não irei ler a continuação por ter achado ruim? Pelo contrário, achei o livro bom, mas a graça nele para mim foi justamente terminar em dúvida, pensando se as duas narrativas eram realmente uma ou se era absolutamente tudo inventado, tipo aqueles filmes que no final a pessoa descobre que estava sonhando.
De repente, o que era uma mistura de admiração e medo, passa a ser rancor e um tanto de desprezo pela constatação de sua humanidade.
Só que comecei o meu acho rápido demais, voltemos para o início. A narrativa lembra muito o formato de quebra-cabeças, já que algumas das dúvidas que vão surgindo na parte da Vivinha são respondidas pelo livro encontrado após a morte da mãe.
Existem algumas lacunas que persistem, como a doença da menina, se era algo físico, se era depressão ou uma forma de chamar a atenção da mãe ausente, cuja presença de Lágrima não consegue atenuar.
Como não enlouquecer vendo as mesmas caras, dia após dia, por toda a vida? Como não perder a cabeça presenciando os mesmos acontecimentos, ano após ano?
Na parte do livro póstumo há muita crítica, e elas vão além da hipocrisia familiar, abrangendo também a sociedade e a política. Assim como as traições são recorrentes em diferentes níveis de relacionamento.
Em ambas as partes temos as vivências do universo feminino, da primeira menstruação, gravidez, maternidade, amores, vontade de agradar, amizade entre mulheres e abusos de diversos tipos, em diferentes classes.
Se é o amor que irá me salvar, para que ele apareça logo, dou início ao meu processo destrutivo.
Além disso, para quem acompanha ou viveu a cultura do século passado, algumas referências irão chamar a atenção. O sobrenome Grimaldi foi um dos itens utilizados na narrativa que me fizeram a associar a easter egg, e sim, encontrei mais de um na história. No caso dos Grimaldi, é o mesmo sobrenome da família que tem o controle do Principado de Mônaco. Lembram da princesa Grace Kelly?
Mas no lugar desses easter egg serem divertidos, é quase como se a autora quisesse me lembrar que apesar de ficção, há muito de realidade no que é contado. Pois o uso de um sobrenome da nobreza europeia em uma que representa a elite política brasileira, nos faz pensar não apenas no poder patriarcal, como nas renúncias femininas e o que se esconde toda a fachada de influência e respeitabilidade.
Algumas coisas são certas nesta vida. A primeira delas é que, em algum lugar do mundo, existe alguém que irá lhe fazer mal, mesmo que não intencionalmente.
O apagamento da mulher, muito bem representado pela falta do nome de Vivinha e da sua avó paterna, chamada sempre de Sra. Menezes Grimaldi, foi para mim a maior evidência disso. Pois a saída das mulheres da sombra das figuras masculinas ainda é recente e não é total. Então foi como um lembrete de que muitas coisas ainda não mudaram, e ainda não ocupamos todo o espaço que temos direito.
No geral apenas um ponto me incomodou: o narrador do livro póstumo. Confesso que foi ele que me levou a dúvida se tudo era "real" ou apenas invenção. E na minha opinião, um diário escrito pela Sra. Menezes Grimaldi teria tornado esta parte mais verossímil.
Eu não pude ter uma infância normal por causa dela. Desejou me transformar num protótipo seu, numa pequena prostitua magricela.
E é justamente esta brincadeira de descobrir se as teorias estão corretas, com a dúvida se tudo é realmente real somada com as inúmeras reflexões sobre o universo feminino, tornam o livro fechado para mim, o que motivou a minha declaração no início de que não, não desejo ler a continuação.
Mas deixo a dica para você ler Mundos de uma noite só e tomar a sua decisão se deseja ou não ler a continuação. Querendo trocar percepções, é só deixar as suas teorias nos comentários.
Mundos de uma noite só
Renata Belmonte
TAG - TusQuets Editores
2025 - 192 páginas
Publicado pela primeira vez em 2020