sexta-feira, 8 de novembro de 2024

A voz que ninguém escutou



Sinopse: A voz que ninguém escutou é a de Maria que decide fugir da miséria e violência levando dois filhos para a capital na esperança do tão desejado emprego. É a voz de Inácio, um menino sequestrado e escravizado por um fazendeiro inescrupuloso, em busca de uma família para si. É a voz de Inês, a filha da empregada doméstica que sobrevive nos fundos da mansão de um poderoso banqueiro vivenciando cotidianamente as diferenças de classe, sonhando com um Brasil mais justo. É a voz de Vânia uma jornalista que acaba de assistir à tragédia de sua mãe e após uma grande revelação tenta reconstruir sua história ao mesmo tempo em que encontra novas formas de amar. É a voz deste que escreve estas palavras. É a voz de um país que esqueceu de lembrar do passado.

No mês de setembro/2024 a TAG não foi curadoria e enviou o vencedor do prêmio kinder de literatura de 2024 chamado A voz que ninguém escutou do escritor carioca Renan Silva. O mimo chamado de kit biblioteca era composto de pequenas fichas destacáveis e post-its.



Não suportando mais viver uma relação abusiva e uma vida de miséria, Maria decide abandonar o marido e os filhos mais velhos, fugindo com os dois mais novos, Inês e Inácio, para a cidade do Rio de Janeiro.

No caminho uma ida ao banheiro lhe custa caro, já que o motorista do transporte clandestino ao qual ela está viajando vende Inácio para um fazendeiro que explora crianças, levando-o para longe, antes que a mãe tenha tempo de resgatá-lo.

Sirene rodopiando como carrossel. Sons de alerta e um eco interminável.


No Rio de Janeiro Maria encontra um emprego como empregada doméstica em uma casa de família rica, onde Inês irá conviver com as diferenças sociais ao mesmo tempo que terá oportunidade de estudar, e fazer uma sólida amizade com a filha do casal.

Tudo em um Brasil que vive a construção de Brasília e o início da ditadura militar, onde o resultado de tudo cabe em uma ambulância em 2005 em que Vânia, uma jornalista, leva a mãe Inês em estado grave para o hospital.


A escrita de Renan Silva

A voz que ninguém escutou é o primeiro livro do historiador Renan Silva. Na narrativa foi optado em utilizar na maior parte do tempo a voz em terceira pessoa, mas em alguns momentos surge a voz em primeira também, ambas para acompanhar quatro personagens: Maria, Inês, Inácio e Vânia. Todos membros da mesma família.

O livro acompanha a vida destas pessoas de 1945 a 2005, dividido em duas partes, a primeira aborda trabalho escravo, sequestro de crianças, violência familiar, poliamor, assédio sexual, questões lgbt, exploração de trabalho doméstico, diferenças sociais, construção de Brasília, ditadura entre outros assuntos.

Os filhos foram concebidos com pouco tempo de espera entre um e outro. A exceção era justamente aquela que agora vinha ao mundo.


Na segunda parte temos uma mistura de tempo mais próximo ao presente com o passado, já que Vânia começa a investigar o que levou a mãe em um ato tão extremo e acaba se dividindo em entender o passado da mãe e a busca de sua própria identidade, ao mesmo tempo que sua vida parece ser uma espécie de espelho da vida da mãe.

A quantidade de assuntos abordados seria o suficiente para criar uma saga familiar, mas por estar tudo compactado em quase trezentas páginas, pode levar o leitor a dois sentimentos. Agradando aquele que gosta de ler versões resumidas, e por outro lado angustiando o que deseja uma história mais arredondada.


O que eu achei de A voz que ninguém escutou

Para quem assiste o programa Masterchef do Brasil, a frase "menos é mais" utilizada pelo Fogaça para opinar sobre os pratos de alguns participantes, consegue resumir o sentimento que tive ao ler este livro.

E aqui faltou aquele editor amigo para dizer vamos focar mais nisso, quem sabe no lugar de colocar mais personagens vamos trabalhar mais esta cena? Que tal melhorarmos a passagem de tempo e tiramos a parte dos 50 tons de ditadura, já que as cenas de sexo parecem um Ctrl c + Ctrl v e o seu detalhamento não acrescenta em nada a história?

O menino percebeu o silêncio absoluto que reinava no interior da carroceria do caminhão. Tinha pelo menos mais cinco crianças além dele.


Pois na minha opinião a ideia do livro é muito boa, e seu início é envolvente e estimula a curiosidade, mas a narrativa vai decrescendo, a ponto que a primeira parte é muito melhor que a segunda. Sendo um daqueles casos em que a execução deixa e muito a desejar. 

Assim como a parte gráfica, que faz os leitores imaginar que os integrantes da família são negros, mas na descrição de Vânia ela é uma mulher branca. Falha de continuidade ou de quem elaborou a capa? Eis uma das perguntas que ficaram após a finalização do livro.

Às vezes, fantasiava invadir a biblioteca, gritar com o patrão, chamá-lo de lixo, ameaçar ir até a polícia.


Uma coisa que me incomodou muito na leitura é que ela parecia didática, não havendo uma narração da cena para que eu visualizasse o que estava acontecendo, mas um parágrafo explicando resumidamente os acontecimentos.

O que torna tudo muito rápido, e em alguns momentos, inverossímil, como a sequência em que Vânia busca os papeis da prisão da mãe no período da ditadura.

Os brasileiros começaram a se acostumar com a possibilidade de escolher livremente o presidente. Já era a quarta vez após o Estado Novo.


Outro ponto foi a mistura de eventos dos anos 80 e 90, como por exemplo acontecimentos do período Sarney (remarcação mais do que diária dos preços) que é citada na era Collor - que ficaria muito mais forte se tivesse sido relacionado ao ato mais traumático do seu governo: o confisco das poupanças. Tudo em um parágrafo que mistura presidentes, Senna, Mamonas e Sílvio Santos.

O livro cita o diário de Inês, mas a narrativa se perde na forma como a história é conduzida, parecendo um resumo do resumo feito pela filha Vânia, que talvez fosse um personagem que não precisaria estar ali.

Os ideólogos da nova capital pensavam que as diversas classes sociais poderiam viver em conjunto, em superquadras nas Asas Norte e Sul. Na prática, isso não ocorreu.


Em compensação nada é dito sobre os outros filhos de Maria, assim como um período de tempo de Maria, Inês e Inácio e termina de forma fraca, sem maiores impactos. Então sim, as páginas gastas com Vânia poderiam ter sido ocupadas principalmente como Inês e Inácio.

O que me fez finalizar a leitura com a ideia de que a mesma precisava ser refinada, tanto nas vozes utilizadas como no foco. Pois perde-se páginas em sequências que não acrescentam nada e se passa voando pelas que poderiam tornar a história mais rica.

O andar cada vez mais curvado e as constantes reclamações de dores nas costas também eram as marcas de vinte anos de trabalho ininterruptos.


Fazendo uma contrapartida, já que não, eu não gostei da escrita do livro, a minha mãe já gostou, pois como cita jovem guarda e outros momentos da época de 60 e 70, fez com que ela buscasse as próprias memórias daquele período, que ao contrário dos personagens, são lembranças felizes. Um poder especial que os livros possuem de resgatar nossa própria história pessoal enquanto acompanhamos outras.

Como livro é igual a gosto, e cada um tem o seu, e naturalmente pode haver outros leitores que assim como a minha mãe possam gostar da narrativa, fica a dica de um livro brasileiro que aborda a história de uma família nordestina em meio a um dos períodos mais tumultuados da história do Brasil.


A voz que ninguém escutou
Renan Silva
TAG - José Olympio
2024 - 302 páginas

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Encontro com Rama



Sinopse: Após a terrível colisão de um meteorito contra o continente europeu, líderes mundiais e cientistas criaram um sistema de monitoramento para evitar que essas catástrofes voltassem a acontecer. Quase cinquenta anos depois, a humanidade acompanha, alarmada, a chegada de um novo objeto de proporções inimagináveis que avança na direção de nosso Sol. Uma expedição é enviada para explorar o que se imagina ser um meteoro colossal, mas que se revela uma sofisticada construção, repleta de enigmas que desafiam a mente e os conceitos humanos.



A humanidade se espalhou pelos planetas do sistema solar após um evento catastrófico que tirou algumas cidades do mapa no ano de 2077. Mas principalmente investiu em sistemas de vigilância espacial para detectar e lidar com possíveis ameaças e assim evitar a ocorrência de eventos semelhantes, chamado projeto SPACEGUARD, a guarda espacial.

Um dia o que muitos achavam que era um meteoro no radar é identificado como um gigantesco objeto cilíndrico, cuja perfeição geométrica desafia a todos da vigilância. Cruzando o Sistema Solar em velocidade constante, lhe é dado o nome de Rama e uma expedição humana é enviada para uma melhor verificação.

Após o choque inicial, a humanidade reagiu com uma determinação e uma unidade que teriam sido impossíveis em qualquer época anterior.


Quando os astronautas conseguem entrar no objeto imenso e de origem desconhecida, se deparam com um mundo silencioso e artificial, cuja complexidade indicam uma tecnologia muito superior à humana, despertando uma mistura de curiosidade, prazer, receio e o sentimento de estar vivenciando algo único.


A escrita de Arthur C. Clarke

O inventor e divulgador científico inglês Arthur C. Clarke foi um dos escritores mais influentes no século XX no gênero ficção científica. Seu interesse por ciência, astronomia, inovação e tecnologia ecoam na página dos seus livros, dando verossimilhança em suas narrativas.

Encontro com Rama é um exemplo disso, e não é à toa que se tornou um dos marcos da ficção científica e inspirou outros escritores. Ao descrever uma estrutura complexa, com detalhes técnicos da espaçonave alienígena, Clarke convida o leitor a ter um novo olhar sobre como podem ser as civilizações vizinhas.

Um objeto de quarenta quilômetros de comprimento, com um período de rotação de quatro minutos - onde isso se encaixava na ordem das coisas astronômicas?


Pois em sua narrativa em terceira pessoa é possível encontrar um universo extremamente rico não apenas nos detalhes do ambiente interno e externo a espaçonave Rama, mas também filosófico, já que quando a equipe se depara com algo totalmente novo, a cada descobertas novas perguntas existenciais vão surgindo, conforme o perfil do personagem que está sendo acompanhado.

Tudo isso em uma linguagem incrivelmente fluída, onde os capítulos - todos nomeados - convidam a seguir em frente em uma história que consegue colocar o leitor junto da equipe de expedição.

O encontro, tão esperado e tão temido, finalmente ocorrera. A humanidade estava prestes a receber seu primeiro visitante das estrelas.


Uma curiosidade, no título original é utilizada a palavra francesa Rendezvous, que pode servir para enfatizar a natureza planejada e importante de um encontro, mas também pode sinalizar um encontro com o destino e mistério. Combinando perfeitamente com a história narrada.


O que eu achei de Encontro com Rama

A primeira coisa que chamou a minha atenção é que o livro escrito em 1972 informa em sua primeira página uma bola de fogo cruza o céu da Europa às 09h46 da manhã do dia 11 de setembro de 2077. E para quem viveu o 11 de setembro do início dos anos 2000, é impossível não vir esta primeira lembrança.

A segunda coisa foi a forma como a humanidade se espalhou pelo universo solar até o ano de 2130, quando ocorre o encontro com Rama. Gerando situações curiosas, como um dos personagens que possui duas famílias, uma no planeta Terra e outra em Marte. Será um sinal que os homens evoluem em tecnologia, mas não em seus hábitos?

Embora estivessem tomados por uma sensação de confiança e contido entusiasmo, após algum tempo o silêncio quase palpável de Rama começou a pesar sobre eles. 


A terceira coisa foi o nome da nave de expedição: Endeavour, uma referência ao navio carvoeiro que deu a volta ao mundo entre 1768 e 1771 comandado pelo capitão James Cook.

Mas como vocês já devem ter percebido na parte sobre a escrita, o livro realmente me envolveu. Os capítulos curtos, a forma como são finalizados com um gancho convidando a continuar, fizeram com que a leitura fosse muito rápida.

As coisas não eram o que pareciam ser; havia algo muito, muito estranho num lugar que era simultaneamente novo em folha - e tinha um milhão de anos.


Principalmente pelos sentimentos despertados. Na etapa que eles entram na nave alienígena eu já fiquei em agonia, me lembrando do filme alien. Quanto mais eles avançavam, ou quando havia momentos de tensão, mais eu queria seguir na leitura para descobrir o que iria acontecer.

Encontro com Rama é um sci-fi que explora a curiosidade científica, o de se arriscar pelo desconhecido, a superação do medo em busca de uma descoberta, de nem sempre encontrar respostas para as perguntas que vão surgindo.

Esse era um mundo estéril, segundo os testes mais sensíveis que o homem poderia aplicar. Mas agora acontecia algo que não podia ser explicado pela ação de forças naturais.


O livro também explora o lado político, em um sistema que a humanidade se dividiu entre planetas, explora o fato daqueles que acham ter o direito de tomar decisões em nome de todos, baseado na velha crença do bem versus o mal, de heróis contra vilões.

E embora o lado pessoal dos personagens seja pouco explorado, em Encontro com Rama isso não atrapalha, pois só são detalhados o que mais tem relação com a narrativa, não deixando pontos de interrogação ou necessidade de mais, já que complementa o suficiente para manter a fluidez.

Treinamento era uma coisa, realidade era outra, e ninguém podia ter certeza de que os antigos instintos humanos de autopreservação não dominariam durante uma emergência.


Eu gostei muito de Encontro com Rama, achei que a leitura estimulou a minha curiosidade, já que sempre tive interesse no assunto de outros seres fora do sistema solar, e ao mesmo tempo ela reafirma o fato de que os anos vão passando, mas a evolução na forma de pensar parece estar longe de acompanhar os avanços tecnológicos.

Ficando a dica para quem gosta de histórias de ficção científica, de histórias com questionamentos existenciais e claro, para quem não resiste a uma boa leitura.


Encontro com Rama
Rendezvous with Rama
Arthur C. Clarke
Tradução: Susana L. de Alexandria
TAG - Aleph
2023 - 288 páginas
Publicado originalmente em 1972


segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Serafim Ponte Grande



Sinopse: Ao longo de 203 fragmentos, Oswald de Andrade toma como inspiração os procedimentos da colagem para criar uma obra radical, situada entre a ficção, as anotações, as memórias, a sátira e a poesia. Definido por Haroldo de Campos como "romance-invenção", o livro, publicado originalmente em 1933, foi recebido como escandaloso e se estabeleceu como um acontecimento singular na nossa literatura. A transformação industrial de São Paulo serve como pano de fundo para um retrato implacável das aspirações burguesas. Em meio ao moralismo, ao tédio e à infelicidade do casamento, os personagens de Serafim Ponte Grande não conseguem conter suas ambições comezinhas, sua obsessão pelo dinheiro e seus impulsos sexuais.



Serafim Ponte Preta é uma espécie de anti-herói. O protagonista que dá título ao livro é um funcionário público corrupto e desiludido, cujo estilo de vida se divide entre a busca desenfreada por dinheiro e pela insatisfação conjugal. Um homem comum que realiza uma busca desenfreada por prazeres e pela incapacidade de se adaptar às convenções sociais.

Casado com Lala, uma mulher inicialmente resignada que vive um casamento infeliz, já que ela não é uma personagem secundária só na história, como na própria vida do protagonista.

A obra de ficção em minha vida corresponde a horas livres, em que estabelecido o caos criador, minhas teorias se exercitam com pleno controle.


Já Pinto Calçudo, o secretário do anti-herói, é presença frequente nos encontros e desencontros de Serafim com políticos corruptos, amantes, amigos e inimigos, e inclusive em uma viagem que parece resgatar as viagens realizadas pelo próprio autor, Oswald de Andrade, nos anos de 1920.

Tudo ambientado de uma forma a levar os leitores de qualquer época para uma viagem ao passado, sob as perspectivas de quem só se preocupa com o seu cotidiano.


A escrita de Oswald de Andrade

O autor e pensador paulista Oswald de Andrade foi uma das personalidades da Semana de Arte Moderna de 1922. Formado em direito, seguindo os ritos das famílias ricas e tradicionais, acabou direcionando-se a sai paixão que era a literatura. 

Viajante frequente para a Europa, viu seu estilo de vida mudar com a crise econômica de 1929. Gerando uma mudança não só no ritmo com que levava seu dia-a-dia, mas também na criação de Obras como Serafim Ponte Grande, que é uma crítica a sociedade tradicional do período.

O caminho a seguir é duro, os compromissos opostos são enormes, as taras e as hesitações maiores ainda.


Serafim Ponte Grande pode causar um estranhamento inicial no leitor ao passar pelas suas páginas e ver que não temos um romance padrão. Motivo pelo qual a obra é considerada uma grande inovação. 

O escritor Oswald de Andrade utiliza uma mistura que inclui tanto a linguagem formal da época quanto a popular, ao mesmo tempo que relaciona citações eruditas e termos técnicos. 

Parece que Deus quer ver no primeiro dia deste ano inteiramente evoluída a minha transformação psíquica, tantas vezes ameaçada pelos acontecimentos.


Essa babel linguística mistura poemas, micro contos e capítulos inteiros, não sendo muito explicativa, embora pareça respeitar uma linha do tempo para contar as diferentes facetas da sociedade brasileira, especialmente a paulistana, do período do modernismo.

Recheado de ironia e humor, os caminhos tortos do seu protagonista levam a situações inusitadas e algumas vezes beiram ao irreal. Ao mesmo tempo ele também se utiliza da literatura como base de referência, completando a visão cultural da época.

Nada mais incômodo do que esse negócio de ter filhos sem querer.


O que torna a escrita bastante atemporal e um livro relativamente rápido de ser percorrido.


O que eu achei de Serafim Ponte Grande

No mínimo diferente. Inicialmente me pareceu uma espécie de diário, onde uma frase ou parágrafos podem definir o dia do protagonista Serafim. Na sequência uma espécie de crítica política e desilusão com a vida que se leva no Brasil.

O que me fez pensar que Serafim é muito louco como narrativa e também como personagem. Mas apesar de misturar poemas, romance e formatos diferentes, no decorrer da leitura comecei a achar chato e repetitivo.

Por cem becos de ruas falam as metralhadoras na minha cidade natal.


Como eu li antes O Guarda-roupa modernista, em vários momentos levantei a hipótese de ser uma sátira do que o próprio autor tenha vivido em suas várias idas a Europa, fato depois confirmado por um dos autores dos textos adicionais sobre o livro. Mas sendo sincera, eu não achei graça.

E assim eu acabei fazendo um paralelo com a geração de hoje que acham os programas humorísticos das décadas de 80 e 90 enfadonhos, pois foi exatamente o que ecoou em mim ao ler as desventuras de Serafim.

Esta noite, mais do que nunca, sinto-me só , brava e reganhada! Só verto sorvetes de sangue pelos olhos, pelos lábios e pela boca. Nem tenho mais coragem, nem fé, nem nickel!


Pensando em um aspecto histórico, imagino que o livro tenha horrorizado os mais conservadores de sua época com sua linguagem direta, utilizando um personagem que não leva absolutamente nada a sério. E sim, provocado graça anos depois, quando muitas coisas da sociedade já estavam sendo questionadas.

No geral nem gostei nem desgostei de Serafim Ponte Grande, embora tenha achado o início promissor e o final muito bem executado, a etapa das viagens foi o que quebrou o ritmo da minha leitura, já que achei a correria do personagem atrás dos rabos de saia muito repetitiva, o que acabou deixando as críticas, que tinham um contexto mais interessante, perdidas em segundo plano.

Sob as árvores soltas do verão, debaixo dos balões cativos das lanternas. A orquestra mistura falas, altifalantes, serrotes e gaitinhas.


Mas sim, ele pode ser um livro bem interessante para quem quer ter uma visão da burguesia paulista nos anos de 1920, para quem quer conhecer um dos principais participantes do movimento modernista no Brasil e para quem é curioso e gosta de ler de tudo.


Serafim Ponte Grande
Oswald de Andrade
Companhia das Letras
2022 - 223 páginas
Publicado originalmente em 1933

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Línguas



Sinopse: Nápoles, anos do pós-guerra. Um menino passa horas na janela do apartamento fantasiando ser poeta. No prédio da frente, uma menina se arrisca dançando no parapeito da sacada. Apaixonado, um menino destemido pode se lançar a proezas extremas, como duelos sangrentos e até mesmo falar italiano (e não mais napolitano, a língua da família e da intimidade). Papel fundamental na sua vida tem a avó — que nutre por ele uma adoração desmesurada. Há também um amigo, o arrojado Lello, igualmente fascinado pela menina. Seguindo uma teia de transformações, Línguas conta a história desses três personagens com destinos que ficam inextricavelmente unidos para sempre.

No mês de agosto/24 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação da atriz Maria Bopp o livro Línguas do escritor italiano Domenico Starnone. O mimo foi um caderno pequenino para anotações.



Mimi devia ter oito ou nove anos de idade quando, após ouvir a fábula de Orfeu, passou a buscar nas redondezas de casa em Nápoles a fossa dos mortos. O motivo era resgatar a menina que foi o seu primeiro amor.

Entre os oito e os nove anos de idade, decidi encontrar a fossa dos mortos.


Sem saber o seu nome, ele a chamava de milanesa, já que o seu amigo Lello dizia que ela havia vindo de Milão, norte da Itália onde não se usava dialetos, e sim o italiano. A paixão à primeira vista foi quando viu a menina dançar na sacada do apartamento à frente do seu. 

O encanto gerou duelo entre os amigos e uma eterna lembrança em Mimi, que cresce com a sombra de milanesa em seus relacionamentos. Assim como sua avó, que após a perda do marido, vive como uma espécie de empregada da filha e seus poucos sorrisos e gentileza são reservados ao seu neto favorito Mimi.

Só falava sem freios com ela, que com os outros era muda que nem eu: guardava as palavras na cabeça e as usava no máximo comigo.


Mas é na vida adulta que Mimi irá estudar a própria língua, e começar a entender o poder que ela exerce não apenas na cultura de um povo, mas também em sua autoestima e memórias.


A escrita de Domenico Starnone

O professor e jornalista Domenico Starnone publicou seu primeiro livro aos 42 anos e hoje é considerado um dos autores contemporâneos mais importante da Itália. Seus livros tem como característica a escrita elegante e a profundidade psicológica de seus personagens.

Em Línguas o autor Domenico Starnone convida o leitor a conhecer um pouco da sua cidade - Nápoles - e de sua própria infância, já que a narrativa possui um toque de autobiografia.

Era de domínio público que, quando fazia sol, eu a espiava abobalhado da janela ou passava muito tempo em frente ao portão dela.


Starnone utiliza-se principalmente de três bases para costurar sua história. Começando pela família aqui representada pela avó, figura com a qual os diálogos ocorrem tanto na infância quanto na vida adulta.

A segunda base é a paixão idealizada e impossível pela milanesa, um amor platônico infantil que beira a obsessão. 

Havia décadas não esperava mais nada da vida, nem sequer um docinho, mas a partir de mim ela começoulogo a extrair doçuras de todo tipo.


Completando a pirâmide, está o amigo Lello, o garoto que embarca na imaginação de Mimi ao mesmo tempo que é um rival em todas as disputas.

E são estas três bases que propiciam o escritor discutir sobre a linguagem, não só como forma de escrita, mas também como forma de construir a própria identidade e até mesmo diferença social. Tendo referências fortes ao dialeto local de Nápoles, ao qual Mimi sempre compara ao italiano falado no norte da Itália, aqui representado por Milão.

Eu nem lhe agradeci, eram gentilezas contadas, ela mesma não saberia evitá-las.


E como ele fala em identidade, seria impossível não entrar as memórias, principalmente de sua avó, que perdeu o marido ainda jovem, e como um espelho do neto, vive deste amor do passado, cujas histórias ganham novas versões e ganham em Mimi um espectador atento.

Tudo em uma narrativa em primeira pessoa, onde o personagem mistura os próprios sentimentos com a linguagem, as vezes de forma mais técnica, as vezes de forma poética, e na maioria das vezes em um estilo mais fluído, em um livro curto e relativamente rápido de ler.


O que eu achei de Línguas

Na minha humilde opinião a avó é a grande personagem da história. Seja sendo a criada da família da própria filha, seja contando suas histórias e influenciando a imaginação do neto favorito. O fato é que ela inicialmente não é tão velha - está na casa dos cinquenta anos - mas a beleza do passado foi substituída pela tristeza e até uma certa apatia.

O que me fez pensar muitas vezes como foi a sua história? Como ela conseguiu sozinha e jovem criar duas crianças pequenas? E por que ela aceita ser uma sombra na própria família?

Entretanto, não tinha dia em que eu não desejasse caminhar por uma estradinha solitária e, sem nenhum motivo evidente, dar socos e pontapés no ar, me abandonando ao choro nem que fosse por um minuto.


Sobre o Mimi, a verdade é que cada vez que ele falava milanesa, no lugar de imaginar Milão, minha mente era assombrada por um belo bife à milanesa, o que me provocou certa fome durante a leitura.

E sua vergonha da avó, assim como a não retribuição de tanto amor, já que avó inclusive assumia a culpa por suas artes infantis, me apertavam o coração, não havia um beijo, nem um muito obrigado. Seria típico de criança, se ele não conseguisse expressar tamanho sentimento pela menina da janela a frente.

Aprendi faz tempo que até as pessoas que nos amam se esforçam para se retirar de cena e deixar espaço às nossas manias de centralidade.


Menina cuja morte - e isso não é spoiler, já que é revelado na primeira página -, se tornou uma assombração em sua vida, quase como um ponto de referência para os seus relacionamentos românticos.

Em relação a parte da língua, questão da grafia e suas mudanças ao longo dos anos, possuem toda uma explicação, que pode ser um ponto de atenção ou curiosidade para quem gosta do estudo da linguagem, confesso que não me chamaram tanto a atenção.

O momento, na memória, é ocupado apenas pela fotografia, um retângulo de papelão amarronzado com numerosas marcas de rachaduras brancas na imagem.


Exceto que me fizeram pensar que o tema principal da história é na verdade a morte. Temos a morte do amor - seja o vivido, seja o platônico -, a morte de alguns termos da linguagem, a morte de relações, a morte da infância, a morte do nosso eu de ontem. Nem mesmo a memória consegue a imortalidade, já que a mesma também vai se apagando aos poucos.

Confesso que no geral achei a leitura mais ou menos, algumas vezes achei bobinha, outras vezes um pouco enfadonha e em alguns momentos me envolvi. Mas se não fosse o bife à milanesa que criou uma associação permanente, talvez o livro caísse no esquecimento.

Era como se eu perdesse as pernas, senti que elas estavam indo e me deixando apenas o tronco e a cabeça.


Mas isso não significa que a experiência será igual para você, pois o que desencanta alguns apaixona a outros. Então você gosta de histórias que acompanham da infância a vida adulta, primeiros amores inesquecíveis, o que envolve linguagem, narrativas que envolvem memórias, talvez a leitura tenha outro significado pra ti.

Ficando a dica para quem quiser se aventurar e voltar aqui para deixar a sua opinião nos comentários.


Línguas
Vita mortale e immortale ella bambina di Milano
Domenico Starnone
Tradução: Maurício Santana Dias
TAG - todavia
2024 - 141 páginas
Publicado originalmente em 2021

terça-feira, 1 de outubro de 2024

O labirinto dos espíritos



Sinopse: Em O labirinto dos espíritos, Zafón nos conduz ao emocionante desfecho da série que começou com A sombra do vento e impactou leitores por todo o mundo. Personagens novos e antigos povoam as páginas, se entrelaçando em uma despedida grandiosa.

O IV livro da série O cemitério dos livros esquecidos fecha essa tetralogia que mistura a história de Barcelona com uma homenagem aos escritores e livros.



Ele inicia em Madrid nos anos de 1950 e quem guia o leitor é Alicia Gris, uma jovem mulher que ainda na infância sobreviveu aos bombardeiros que arrasaram Barcelona durante a guerra e lhe deixaram dolorosas cicatrizes no corpo e na alma.

Ele fechou os olhos e, um segundo depois, emergiu na vida constatando que o simples ato de respirar era a experiência mais maravilhosa que tivera em toda a sua existência. 


Investigadora sagaz de uma equipe que trabalha nas sombras, ela recebe a missão de localizar o ministro Mauricio Valls, que desapareceu junto com o seu guarda-costas de confiança. As pistas a levam de volta para casa, isto é, Barcelona, onde ela vai se aproximar da família Sempere e reecontrar o homem que ajudou a salvar sua vida, Fermín Romero.

Na família, apesar da paz aparentemente reinar, Daniel não consegue ser totalmente feliz , o enigma de sua mãe Isabella é algo permanentemente presente em sua mente, algo que nem Bea nem Juliàn conseguem distraí-lo. E o fato de tentarem protege-lo o irrita ainda mais.

A caça, a caça de verdade, é um duelo entre iguais. A gente não sabe quem realmente é até derramar sangue.


E conforme as peças são encontradas por Alicia, mais fatos obscuros começam a vir à tona, e o conhecimento destes fatos se torna um fardo perigoso para os que carregam, recordando ao leitor o que realmente tornava a cidade sombria naquela época.

Com o retorno dos personagens dos três primeiros livros e a chegada de novos, a narrativa é um verdadeiro convite a desvendar em definitivo os enigmas tão bem distribuídos por Zafón, com suas alegrias e tristezas, podendo emocionar os fãs da série.


A escrita de Carlos Ruiz Zafón

Nascido em Barcelona, Carlos Ruiz Zafón foi um renomado escritor e roteirista. Conhecido por sua habilidade em misturar elementos de mistério e romance em suas obras de ficção gótica, ele ganhou destaque internacional justamente com seu romance A Sombra do Vento (2001), livro que abre a série O cemitério dos livros esquecidos.

Zafón faleceu em 2020 - o que aperta o meu coração até os dias de hoje, já que ele está na minha lista de autores favoritos -  e seus livros foram traduzidos para mais de 40 idiomas, tendo vendido milhares de exemplares pelo mundo.

Uma lenda é uma mentira concebida para explicar uma verdade universal. Os lugares onde a mentira e a miragem envenenam a terra são particularmente férteis para o seu cultivo.


Especificamente sobre O labirinto dos espíritos, o escritor optou por uma narrativa em terceira pessoa, o que permite ao leitor uma visão ampla e detalhada dos personagens e da trama, além de sempre especificar em cada nova parte a cidade e o ano que os fatos estão ocorrendo. 

O livro é interligado com os outros volumes da série O Cemitério dos Livros Esquecidos, mas como ocorre nos anteriores, é possível ler o mesmo de forma independente, mesmo eu considerando isso um pecado já que além dos personagens, são os detalhes que fortalecem os laços entre os quatro livros.

Acho surpreendente como sempre procuramos no presente ou no futuro as respostas que estão no passado.


Como ocorreu nos três livros anteriores da série, a narrativa fluída de Zafón se destaca pela sua riqueza descritiva e pela construção de uma atmosfera densa e envolvente, que faz o leitor caminhar por uma Barcelona sombria.

E isto é complementado ao alternar diferentes tempos e pontos de vista, permitindo que a história se desdobre de maneira complexa ao mesmo tempo que se aprofunda nos personagens principais, revelando aos poucos todos os segredos e mistérios que foram guardados ao longo dos quatro livros da trama.

Você decide se quer viver ou apodrecer pouco a pouco, como deixou acontecer com tantos inocentes.


Além disso a intertextualidade e as referências literárias utilizadas ao longo da história são marcantes, refletindo a paixão do escritor espanhol pela literatura e encantando a todos que se entregam a leitura desta série.

Tudo isso utilizando uma linguagem fluída, que convida virar mais uma página, ler mais um capítulo e se apaixonar pela série.


O que eu achei de O labirinto dos espíritos

Foi emocionante realizar a leitura de O labirinto dos espíritos, uma história que homenageia os escritores e os livros, fechando de forma redonda esta série que tanto adoro e fiquei com vontade de reler ao fechar a contracapa.

Como nos três primeiros livros, nos deparamos com a força da literatura em um período que escureceu a hoje iluminada Barcelona, tendo como base a história de um país e todas as injustiças que ocorreram durante a época retratada.

Antes de sair ainda deu uma última conferida no espelho do saguão e se aprovou. Você partiria o próprio coração, pensou. Se tivesse um.


Tornando o livro ao mesmo tempo maravilhoso e doloroso, pois enquanto reforça a importância da literatura, nos lembra da destruição que uma ditadura faz não apenas nos livros, mas também na vida das pessoas, principalmente das crianças atingidas diretamente, cujas vidas são alteradas de forma definitiva.

Gostei da ampliação de locais que a narrativa trouxe, incluindo Madrid e Paris no caminho de alguns personagens. E já me peguei pensando em retornar as cidades só para fazer o roteiro de O labirinto dos espíritos. Pois sim, eu fiquei tão fã de A sombra do vento que quando fui a cidade de Barcelona passei por diversos dos pontos citados no livro, incluindo a rua onde fica a Livraria Sempere.

Você não mente para as pessoas; elas sozinhas se mentem. Um bom mentiroso dá aos bobos o que eles querem ouvir. Esse é o segredo.


E amei que apesar dos livros se completarem de tal forma que não possuem uma ordem certa , O labirinto dos espíritos fecha todas as pontas que os três primeiros deixaram ao longo do caminho, não deixando o leitor com perguntas, tudo de uma forma natural e fluída.

Aliás, para quem já leu os livros da série, uma dica, o Epílogo de O prisioneiro do Céu é um gancho para O Labirinto dos Espíritos.

As pessoas são como marionetes ou brinquedos de corda, todas têm um mecanismo oculto que permite manipular seus fios e fazê-las ir na direção que se deseja.


Então sim, eu indico, recomendo e saliento: quem ama literatura, quem ama livros, precisa entrar neste Cemitério. A chance de você se apaixonar pela escrita do Zafón e se apegar a família Sempere é muito grande.


O labirinto dos espíritos
El Laberinto de los Espíritus
Carlos Ruiz Zafón
Tradução: Ari Roitman e Paulina Watcht
SUMA
2017 - 679 páginas
Primeira versão publicada originalmente em 2016


sexta-feira, 13 de setembro de 2024

A árvore mais triste o mundo



Sinopse: Neste romance arrebatador, Mariana Salomão Carrara — vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura 2023 — se reafirma como uma das escritoras mais talentosas da novíssima literatura brasileira. O centro da trama de A ÁRVORE MAIS SOZINHA DO MUNDO é ocupado por Guerlinda e Carlos, casal que vive com os filhos em uma pequena roça no Sul do Brasil e se dedica ao cultivo do tabaco. Na dura época da colheita, a mãe de Guerlinda é chamada para ajudar nos trabalhos, e sua chegada transforma os já desgastados contornos da rotina familiar.

No mês de julho/2024 a TAG completou uma década de história, e como de costume, foi a curadora na sua edição de aniversário. O livro escolhido para comemoração foi A árvore mais triste o mundo da escritora paulista Mariana Salomão Carrara. E o mimo foi super especial: uma coletânea inédita de contos de Franz Kafka.



O casal Guerlinda e Carlos vivem seus dias dedicados exclusivamente ao plantio de tabaco em uma cidade no interior do Rio Grande do Sul.

Contam com a ajuda integral da filha mais velha Alice, uma adolescente que não completou os estudos, e que no pouco tempo livre alimenta suas redes sociais e sonha em ganhar uma competição de beleza.

Excecionalmente, porém, gosto de dizer que reflito muito, reflito tudo, mas reflito muito sobre esta família, que é a família que eu tenho hoje e é a que posso refletir.


Maria, a filha do meio, ainda divide o seu tempo entre frequentar a escola e trabalhar na lavoura. A menina e sonha poder estudar mais para conseguir dar uma vida melhor a família.

Já Pedro, o caçula, é ainda um bebê que aprendeu cedo a importância de ser não tranquilo e quieto e não atrapalhar os pais.

Lavam os pratos em silêncio, que no fim de contas é o mais contagioso que há aqui, o silêncio, passa depressa de uns para os outros.


O casal precisa administrar os efeitos colaterais dos venenos utilizados em suas folhas de tabaco, as dividas enormes que não param de ser geradas pela empresa que compra o resultado da lavoura, a rebeldia da filha adolescente e a falta de dinheiro até para o básico.

Gerando a necessidade de solicitar a ajuda da mãe de Guerlinda no período da colheita, trazendo um novo olhar sobre a apatia de Carlos e as relações familiares.


A escrita de Mariana Salomão Carrara

Dividindo-se entre a defensoria pública e o mundo literário, a autora Mariana Salomão Carrara possui contos, poesias e romances publicados, sendo o último o objeto desta resenha.

Em A árvore mais triste o mundo a escritora separa a história em duas partes e utiliza-se de quatro narradores: a árvore que fica no pátio em frente à casa, o espelho português que fica na sala da família, uma roupa de proteção utilizada para passar o veneno nas plantas e a caminhonete rural da família.

No final sua vida seria melhor sem um espelho, mesmo tão linda, seria mais tranquilo ser como nós da natureza, a flor não sabe de si.


Cada um deles possui uma linguagem própria, e sua visão pessoal de cada integrante da família e de suas reações em relação a situações que eles enfrentam, narrando não apenas o presente como o passado, tudo em primeira pessoa. 

O espelho tem o sotaque e alguns termos da sua origem portuguesa, é o que compartilha os segredos da casa e muitas vezes imagina o que os moradores estão pensando. A caminhonete rural me lembrou o personagem Mate do filme carros pela forma de falar. Já a árvore me fez recordar o maravilhoso livro A ilha das árvores perdidas pela sua conexão com os humanos. E a roupa, com menor participação, é a mais neutra em relação a família, ficando mais focada no efeito que causa na pessoa que a está vestindo.

Mas os humanos me parece que têm uma coisa obscura, que é saber o que é certo, o que é melhor, mas fazer o contrário.


Uma curiosidade é a origem que deu a ideia para a escrita desta história: uma reportagem sobre a epidemia de suicídios em regiões produtoras de tabaco localizadas no sul do Brasil, citando entre as hipóteses os defensivos agrícolas e os grandes endividamentos enfrentados pelas famílias. 

Situação que agora ecoa entre as páginas e convida os leitores a mergulharem em um cenário tenso e complexo desconhecido por todos, deixando claro que os malefícios do tabaco não são exclusivos dos consumidores, mas que a produção de suas folhas também cobra um preço injusto para quem aceita ser fornecedor da matéria-prima.


O que eu achei de A árvore mais triste o mundo

Eu gostei de como a narrativa de A árvore mais triste o mundo foi construída. Na primeira parte temos o ciclo do plantio, onde narradores e personagens são apresentados, assim como a rotina extenuante e os sonhos, principalmente das meninas, como uma preparação para a segunda parte, onde o cansaço e as dívidas passam a gritar, assim como os sinais de depressão de Carlos.

E essa evolução bastante desesperançosa da história permite sentir e sofrer com a família, já subjugada a pobreza pelas empresas compradoras das folhas de tabaco.

Temos um impostor de olhos vazios, que além de tudo agora deixa as cabras livres para destruírem o tabaco com as suas tropelias.


Ao mesmo tempo se identifica facilmente a origem de como eles caíram na armadilha destas empresas, já que o casal não finalizou a escola e não raro assinam documentos enviados pela empresa sem entender na totalidade os efeitos. Deixando explícito a falta de escrúpulos das empresas, aumentando o meu desprezo por este produto que não tem absolutamente nada de bom.

Então não, não é um livro feliz, mas um livro que expõe uma realidade e nos coloca para acompanhar através de inusitados narradores que me provocaram diferentes sentimentos durante a leitura. 

Eles sabem tanto de amor. Era melhor saberem menos, assim acabavam logo comigo.


Como o livro se passa no RS, confesso que sendo gaúcha senti falta de alguns termos mais regionais, já que achei a forma de falar mais parecida com o interior do Paraná e de São Paulo, mas passada as primeiras páginas, este ligeiro incômodo foi passando, me permitindo mergulhar na leitura.

E assim deixo a dica para quem gosta de histórias inspiradas em fatos reais, de livros que compartilham realidades brasileiras, para quem não quer uma história leve e para os tradicionais ratinhos de biblioteca.


A árvore mais triste o mundo
Mariana Salomão Carrara
TAG - Todavia
2024 - 205 páginas


quarta-feira, 4 de setembro de 2024

O cão dos Baskerville



Sinopse: Em O cão dos Baskerville, Sherlock Holmes e o dr. Watson investigam a morte de sir Charles Baskerville, numa história eletrizante que se tornou um clássico da literatura policial. Em meados do século XVII, um lendário cão do inferno matou Hugo Baskerville na charneca da propriedade familiar, em Dartmoor, e nunca mais parou de assombrar a família. Séculos depois, quando sir Charles Baskerville morre em circunstâncias misteriosas, seu herdeiro, sir Henry, recebe uma ameaçadora carta anônima. Alarmado, Henry Baskerville aciona Sherlock Holmes. O detetive encarrega seu assistente, o dr. Watson, de acompanhar sir Henry enquanto se instala em segredo num povoado próximo para descobrir quem teria interesse em eliminar o último dos Baskerville e, assim, apoderar-se de sua herança. 



O Cão dos Baskerville é um dos romances mais conhecidos do detetive Sherlock Holmes, publicado pela primeira vez em 1902, a trama se passa na Inglaterra rural e é marcada por mistério e suspense, em uma atmosfera que consegue se alternar entre o dia e à noite, intensificando as sensações dos personagens.

A história tem como base uma antiga lenda familiar dos Baskerville, que afirma que todos os herdeiros da propriedade Dartmoor estão amaldiçoados. Segundo a lenda, um cão escuro, gigante e espectral teria surgido pela primeira vez ao matar Hugo Baskerville, um homem impetuoso, profano e herege que raptou uma jovem donzela, e o desfecho deste ato não foi um final feliz para nenhum dos dois.

Algumas pessoas, mesmo não possuindo genialidade, têm um poder notável de estimulá-la.


Este mesmo cão teria sido responsável no tempo presente pela morte de Sir Charles Baskerville, o penúltimo herdeiro da família Baskerville. O romance começa justamente com o óbito de Sir Charles Baskerville, encontrado morto em sua propriedade com uma expressão de terror e marcas de patas de cachorro ao redor do corpo. 

O jovem e último herdeiro, Sir Henry Baskerville, recebe uma carta anônima o que se torna um indicativo que ele também está em perigo, e para protegê-lo, o médico de Devonshire o leva até o detetive Sherlock Holmes para solicitar ajuda. 

Também não se pode negar que muitos membros da família tenham enfrentado mortes trágicas: súbitas, sangrentas e misteriosas.


E assim Dr. John Watson, fiel amigo do famoso investigador, acompanha os dois homens até a propriedade familiar e dar início a uma investigação conforme as orientações de Sherlock Holmes , o que irá revelar uma série de pistas e segredos ocultos que despertam a curiosidade do leitor.


A escrita do autor Arthur Conan Doyle

O escritor britânico Arthur Conan Doyle (1859-1930) é conhecido por criar um dos mais famosos detetives do mundo literário: Sherlock Holmes. Formado em medicina, não raro utiliza o seu conhecimento e interesse pela ciência em suas histórias. Além dos romances de Holmes e de seu fiel amigo Dr. Watson, Doyle escreveu outras obras de ficção histórica, aventuras e literatura científica.

Em O Cão dos Baskerville o autor mescla elementos de romance policial com o gênero de horror gótico, utilizando uma abordagem detalhada e metódica, característica mais do que conhecidas nas histórias que envolvem Sherlock Holmes. Há também mescla na escolha narrativa, que utiliza tanto a primeira pessoa quanto a terceira pessoa através dos relatos do Dr. Watson, que ocupa tanto o papel de narrador como o de alguém que compartilha o próprio ponto de vista conforme vivencia os acontecimentos da história.

Todos concordaram que era uma criatura enorme, luminosa, medonha e fantasmagórica.


Para criar uma atmosfera sombria e inquietante, Doyle utiliza a técnica de mesclar descrição de paisagens desoladas, ambientes escuros com a própria lenda do cão. O equilíbrio vem através das análises de Holmes e Dr. Watson que utilizam análises lógicas e dedutivas, e o natural raciocínio analítico.

Tornando o livro O cão dos Baskerville intrigante e bem estruturado, mantendo durante toda narrativa o equilíbrio do mistério tradicional com uma atmosfera gótica que não só envolve, como mexe com a imaginação dos leitores.

É o uso científico da imaginação, mas sempre temos alguma base material na qual fundamentar nossa especulação.


Uma curiosidade, originalmente a história foi publicada em fascículos mensais no periódico Strand Magazine entre os anos de 1901 e 1902.


O que eu achei de O cão dos Baskerville

Este é o segundo livro que eu li do escritor Arthur Conan Doyle, o primeiro Um estudo em vermelho eu já havia achado legal, mas O cão dos Baskerville mexeu mais com a minha curiosidade, o que tornou a leitura fácil e leve.

Começo pelo ambiente, cujo sol torna não só o ambiente externo como a própria casa mais iluminada e agradável, enquanto a noite transforma tudo em um ambiente escuro e cheio de mistérios, perfeito para lendas fantasmagóricas e para quem quer usar o sobrenatural para ações nada gentis.

Se são inocentes, seria uma injustiça cruel e, se são culpados, estaríamos perdendo qualquer chance de desmascará-los.


Cada personagem que entra na história tem um momento só dele, o que para mim os torna mais marcantes. Seja o casal de empregados que cuida da casa da família, seja o prisioneiro foragido anunciado pelas notícias, ou o curioso casal de irmãos que são vizinhos recentes dos Baskerville e logo se tornam amigos dos herdeiros.

No geral achei a história bem costurada, inicialmente encontrei os fios soltos, mas aos poucos, junto com Sherlock Holmes e o caro Dr. Watson, comecei a formar as minhas teorias e impressões, levantando os meus suspeitos até a confirmação nas páginas finais.

Os lambris escuros brilhavam como bronze aos raios dourados, e era difícil acreditar que aquele era realmente o mesmo cômodo que, na noite anterior, enchera nossas almas de tanta melancolia.


Tornando a história bastante agradável de ler, a leveza da narrativa conseguiu estimular a minha curiosidade ao mesmo tempo que me incentivava a virar mais uma página. O que justifica perfeitamente ele estar entre os títulos mais conhecidos das aventuras do famoso detetive.

Ficando a dica para quem gosta de quebra-cabeças literários, onde o leitor gosta de juntar e investigar junto com os personagens, para quem busca uma leitura leve e vira página, e claro, para quem não resiste uma boa história.


O cão dos Baskerville
The hound of the Baskerville
Arthur Conan Doyle
Tradução: Ana Carolina Oliveira
TAG - autêntica
2018 - 238 páginas
Publicado originalmente entre agosto de 1901 e abril de 1902