terça-feira, 19 de maio de 2020

O Bom Filho



Sinopse: Certa manhã, Yu-Jin acorda com um estranho cheiro metálico e um telefonema de seu irmão perguntando se está tudo bem em casa.
Yu-Jin logo se depara com um corpo deitado em uma poça de sangue no elegante duplex onde mora com a mãe. Ele não consegue se lembrar muito da noite anterior. Mas tem a leve recordação de sua mãe chamando seu nome. Ela estava pedindo ajuda? Ou implorando por sua vida? Assim começa a busca frenética de Yu-Jin para descobrir o que aconteceu e finalmente desvendar a verdade sobre si mesmo e sua família. Um thriller psicológico chocante, O Bom Filho explora os mistérios da mente e da memória e a violência que habita onde menos se espera.

Eu nunca havia lido nada da literatura coreana, e o livro da escritora You-Jeong Jeong foi uma ótima surpresa. Narrado em primeira pessoa por Yu-Jin, o livro é composto de quatro grandes capítulos, com títulos que dão uma pista do que será encontrado. Com uma escrita envolvente, ela desperta no leitor a vontade de ler uma página a mais para descobrir o que aconteceu.

Nada disso era realidade, tampouco resquício de um sonho.

Na história temos Yu-Jin, um rapaz jovem de vinte e cinco anos que vive com a sua mãe viúva e seu irmão adotivo. Ainda na infância viveu uma tragédia que matou seu pai e irmão mais velho, e vive uma relação conflituosa com a tia, que o trata para controlar as convulsões provocadas pela epilepsia; e com sua mãe, que controla todos os seus passos e decisões, como se ele ainda fosse uma criança.

Parecia uma alucinação produzida pela mente de um louco.

Tudo começa com um cheiro intenso de sangue, em sua mente cenas estranhas, e ele logo pensa ser o preço cobrado por não estar tomando os seus remédios. O telefonema do seu irmão completa a função de acorda-lo. É quando ele se dá conta do sangue que o rodeia, e quando resolve seguir o rastro, é o corpo da própria mãe que ele encontra.

Eu sabia tanto sobre ela quanto ela sabia sobre mim.

A partir daí vamos acompanhar três dias na vida de Yu-Jin, em que ele busca desvendar o crime, recuperar a sua memória e de bônus desvenda segredos sobre si, incluindo o que o afastou de sua maior paixão, transformando a história em um quebra-cabeça psicológico. 

Eu precisava descobrir o que havia acontecido, mesmo que isso abrisse as portas do inferno.

A cada questão respondida, uma nova interrogação é apresentada. E para isso vamos retornar para momentos da infância do personagem, que neste caso são revelados pelo diário materno, onde Yu-Jin é o foco. 

Há pessoas que não podem ser amadas.

A história ocorre na costa ocidental da Coreia do Sul, em uma cidade chamada Gun-do, próxima a capital Seul. E foi inspirada em uma história real que chocou o país. E embora a autora seja comparada a Stephen King, O Bom Filho me recordou a escritora Lionel Shriver e o seu arrepiante Precisamos Falar sobre o Kevin.

Situações que antes pareciam isoladas começaram a se combinar.

Utilizando a narrativa em primeira pessoa é interessante observar que, ao contrário de outros narradores similares, Yu-Jin não está tentando nos enrolar, mas tentando ordenar os pensamentos confusos enquanto compartilha os acontecimentos com o leitor, como se falasse consigo mesmo.

A escrita de You-Jeong Jeong é envolvente, e impulsiona a curiosidade do leitor em descobrir as respostas junto com Yu-Jin, e se surpreender junto com o narrador quando elas são encontradas. Não foram poucas as vezes que me peguei pensando se era o que eu achava que era ou se havia alguma surpresa, ou de finalizar um capítulo e pensar: Gente! Que coisa...

Para quem gosta de suspense, como eu, a leitura é mais do que recomendada.

O Bom Filho
You-Jeong Jeong
Tradução: Jae Hyung Woo
TAG – todavia
2016- 285 páginas

terça-feira, 12 de maio de 2020

Ponto Cardeal



Sinopse: Dentro de um carro, num estacionamento, Mathilda retira com cuidado a maquiagem do rosto, o vestido apertado, o sapato de salto altíssimo. Veste um abrigo de ginástica e então já não é Mathilda, mas Laurent, marido de Solange e pai de dois filhos. Quando percebe que incorporar uma persona feminina uma vez por semana já não é mais suficiente, decide completar a transição. E abrir o jogo para a esposa e os filhos é só o começo dessa busca por sua verdade interior.

A indicação do mês de abril da TAG Curadoria foi feita pelo psiquiatra e psicanalista Contardo Calligaris, que indicou a obra da parisiense Léonor de Récondo, romance premiado pelos estudantes France Culture-Télérama. Como tem ocorrido em todos os livros de 2020, o projeto gráfico é muito bonito, atraindo imediatamente os olhos.

Ponto Cardeal conta a história do francês Laurent, que desde criança gosta de se vestir com roupas femininas. Já adulto, ele mente todas as sextas-feiras que irá para a academia, mas na verdade ele muda suas roupas adotando um personagem feminino chamado Mathilda para frequentar um bar. 

Solange sabe, Solange encontra soluções.

No restante do tempo ele vive um casamento tranquilo com Solange, que organiza toda a rotina da família e cuida do casal de filhos adolescentes. No trabalho possui uma amiga que o usa como confidente, que em uma das conversas questiona inclusive o seu casamento perfeito.

Laurent mantém uma rotina comum, casa-trabalho, assim como o seu relacionamento com a esposa, ao qual parece amar. Tudo muda quando os outros membros da família fazem uma viagem e ele fica sozinho em casa. Tendo todo o espaço só para si, ele mistura os itens de Mathilda e de Solange, passando dias vestidos como mulher. E agora, apenas algumas horas de um dia não são o suficiente.

Interiormente eu sou como ela, tenho certeza.

Narrado em terceira pessoa, com letras relativamente grandes e capítulos curtos, é um livro de leitura rápida e bastante fácil, e bastante leve se você não resolver analisar vários pontos no detalhe.

O curador justificou sua escolha por achar que a obra possibilita entender a complexidade de uma experiência que não é vivenciada por muitos. E eu ouso discordar dele e dos estudantes franceses ao achar que a obra explora a questão da transexualidade de uma forma bastante superficial, onde dois pontos acabam tirando a empatia que se pode ter pelo personagem.

Ser homem significava, entre outras coisas, gostar de futebol.

Em contrapartida, um personagem muito interessante chamado Cynthia, que realiza um apadrinhamento das pessoas que não se sentem bem dentro do próprio corpo, é sub aproveitada, não sendo trabalhado com profundidade todas as angustias e dúvidas que devem ocorrer quando alguém resolve mudar radicalmente o seu corpo e o seu nome.

E neste momento para conseguir expor meu ponto de vista, entrarão spoilers, então quem não quer saber detalhes, sugiro abandonar a leitura desta resenha aqui.

Que educação, que valores eu lhe transmiti?

A primeira questão que me incomodou bastante durante a leitura foi a figura da mulher. Laurent utiliza o estereótipo do que uma conhecida minha diria ser de um típico macho escroto patriarcal. Ao ligar o ser feminino com calcinhas de seda, vestidos, salto alto e seios, temos uma visão bastante limitada a apenas o aspecto físico. Muitas vezes me peguei pensando que se fosse possível um transplante de útero, Laurent não aguentaria um mês, e no caso de ter que assumir a maternidade ou ele pediria para ser homem de volta ou iria se livrar da criança.

Já Solange, apesar de ser a pessoa que organiza tudo não acredita na possibilidade de recomeçar, mesmo com toda a estrutura familiar ruindo, ela não quer se separar para não ter que vender a casa. Parecendo surtada, ela arruma um garoto de programa para resolver a questão do sexo, como se fosse a coisa mais urgente entre todos os fatos que ocorrem a sua volta. 

O cuidado havia pulado uma geração, e ninguém tinha avisado Solange.

E enquanto os adultos olham apenas para si mesmo, os filhos do casal ficam jogados sem suporte nenhum. Embora o livro faça uma comparação de atendimento de psicólogos – o primeiro trata como uma doença reversível, e o segundo preta apoio para a transformação de Laurent, nem mesmo o especialista em mudanças de gênero recomendou um acompanhamento para os dois adolescentes. Laurent simplesmente se transformou em mulher e impôs a sua figura aos dois, com isso o filho mais velho se transferiu para um internato e a filha mais nova criou um mantra para se proteger dos olhares dos demais.

A forçação de barra final foi a amiga que vinha de uma família chamada tradicional, que dizia se sentir melhor ali do que com os gritos em casa. Sendo que na casa de Claire o silêncio apenas maquiava o cada um por si.

A vida nos apressa, nos molda, nos empurra, nos mata.

Talvez tudo seja culpa da superficialidade, tudo ocorre rápido demais, de forma egoísta demais, o que no meu caso gerou empatia pelos filhos e não pela figura principal da narrativa. Ao não dar tempo para os filhos, que vivem a fase mais delicada, conturbada e confusa de todas, faltou cuidado, jeito e tempo. Faltou a Laurent ser mulher.


Ponto Cardeal
Point cardinal
Léonor de Récondo
Tradução Amilcar Bettega
TAG – Dublinense
2017- 172 páginas