terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Menino Mamba-Negra



Sinopse: ÁDEN, IÉMEN, 1935. Uma cidade vibrante, viva, cheia de perigos ocultos. E lar de Jama, um garoto de dez anos que se vê sozinho no mundo após a morte inesperada de sua mãe. Para chegar na Somália, terra natal de seus ancestrais nômades, o menino cruza o Mar Vermelho. A guerra está no horizonte e as forças fascistas italianas que controlam parte da África Oriental estão se preparando para a batalha, mas Jama não pode descansar até descobrir se o pai, ausente de sua vida desde que ele era bebê, está vivo em algum lugar. Assim começa uma jornada épica que levará Jama ao norte através de Djibouti, Eritreia e Sudão, países devastados pela guerra, até chegar ao Egito. De lá, a bordo de um navio transportando refugiados judeus recém-libertos dos campos de concentração, o garoto segue através dos mares para a Grã- -Bretanha. Esta história da longa caminhada de um garoto em busca de liberdade também é a história de como a Segunda Guerra Mundial afetou a África e seu povo; uma história sobre sentir-se deslocado e, no fim, encontrar-se novamente.

Em novembro/21 foi o mês temático das caixinhas da TAG, onde os assinantes receberam afronarrativas. Pela minha assinatura da TAG Inéditos eu recebi Menino Mamba-Negra da escritora Nadifa Mohamed - nascida em Hargeisa, Somália - que usou a ficção para contar um pouco das aventuras do próprio pai.

Quando Ambaro estava grávida, aos dezessete anos, ela acabava se separando da caravana devido a sua lentidão. Um dia, cansada demais para seguir caminhando, sentou em uma velha árvore, e enquanto sua respiração normalizava, sentiu algo em suas costas, seguindo em direção ao umbigo. O que parecia ser uma mão se revelou uma mamba enorme, cobra venenosa e muito rápida, que se enrolou em torno da sua barriga. Sem se mexer, Ambaro viu a cobra pousar a cabeça em sua barriga e ouvir a batidas do coração do seu bebê. Depois de um tempo juntos, a cobra simplesmente a deixou, e assim ela passou a chamar o filho de Goode, que significa mamba-negra.


Conto a você esta história para poder transformar o sangue e os ossos de meu pai - e seja qual for a mágica que a mãe dele costurou debaixo de sua pele - em história.


Mas Ambaro e seu Goode - oficialmente conhecido como Jama - tiveram que abandonar a família, indo os dois para um lado e o marido para outro em busca de recursos financeiros para uma vida melhor. Morando de favor na casa de parentes distantes, eles são constantemente constrangidos e destratados.

Por trabalhar doze horas por dia, Jama passa rolando pelas ruas do Áden, sem ir para a escola e brincando com outros meninos. Mas a morte inesperada da sua mãe é o primeiro ato para o seu caminho mudar. Se em um primeiro momento a tia-avó o resgata e o leva de volta para Hargeisa na Somalilândia, mas um novo incidente o faz sair em busca do pai.


Meninos do mercado dos mais diferentes tons, credos e línguas se reuniam na praia para brincar, tomar banho e lutar.


E assim passamos a seguir a vida de Jama de outubro de 1935 até setembro de 1947, em uma jornada por Djibouti, Eritreia, Sudão, Egito e Londres, onde é possível acompanhar a presença de soldados em território africano, os efeitos devastadores da guerra e a reconstrução quando tudo chegou ao fim.


Os Personagens

Jama é o personagem principal da história, mas isso não significa que os outros apenas orbitem ao seu redor, pois apesar de todos os percalços, ele teve vários anjos em sua vida.

Mas é através das suas lembranças que conhecemos o amor de Ambaro e Guure, os pais de Jama, cujos perfis eram muito diferentes dos seus clã, a ponto de Ambaro desafiar a família para se casar com Guure.


Me perdoe, meu bebê serpente, e não viva a vida que eu vivi, você merece coisa melhor.


Já Abdi e Shidani são tio e sobrinho com pouca diferença de idade, crianças que se aventuram nas ruas de Áden com Jama e mais tarde o reencontro em um acampamento militar. Dupla que ganhou o meu coração e o deixou pesado na inútil luta nas montanhas de Eritreia.

Entre os que ajudam, compartilhando um pouco de sua história, estão Jinnow, Idea e Amina, Jibreel e Lorenzo, entre outros, alguns bons, outros que não são exatamente flor que se cheire, mas que de certa forma permitiram a sobrevivência ao longo caminho do menino que vira homem em meio aos obstáculos.


Nenhuma pessoa morre de verdade enquanto há outras que se recordam dela, que têm afeto por ela.


Há também outros personagens de presença marcante que não irei nomear justamente para não estragar a expectativa de leitura, pois mesmo para os mais curiosos é necessário deixar alguns elementos surpresas.

Mas o fato é que ninguém aparece à toa, todos representam um povo, uma determinada situação, um momento da história, enriquecendo ainda mais o relato. Seja por um capítulo ou aparecendo e desaparecendo conforme o vento levava Jama.


A narrativa de Natifa Mohamed

Natifa Mohamed não é somente a escritora, mas também a narradora da história que nos conta, ou como ela diz o griô do seu pai. E com razão, pois a autora a colocou no papel para contar ao mundo as aventuras e desventuras não só do pai-herói, mas também das comunidades que ele percorreu.

Não um herói de espada e capa, ou romântico que arranca suspiro das donzelas. Mas de um menino que sobrevive à miséria, a violência, a humilhação, as perdas afetivas, e mesmo assim segue em busca dos sonhos, do destino dourado prometido e tantas vezes repetido pela sua mãe.


O ar exalava uma corrupção, um aroma misturado de sordidez, suor e fezes de cabra.


E o seu olhar é gentil e poético, as vezes terno em meio a dor. Pois onde a fome e morte se unem o sofrimento pulsa mais forte que as batidas do coração.

Ao mesmo tempo ela nos dá uma visão dos costumes, da existência de hierarquia mesmo entre os mais pobres, a divisão em clãs, as crenças, alguns rituais, as festas e as comidas.


À sua frente, havia as maiores montanhas e colinas que já vira, subindo além das nuvens.


Somado a isso temos uma forte crítica ao colonialismo europeu no continente africano, assim como uma visão forte do comportamento dos vencedores após a guerra com os colonizados e as vítimas do regime nazista.


O que eu achei

Eu gostei muito do livro, me senti viajando junto com Jama pelas estradas, o frio na espinha em cada situação complicada, mesmo sabendo desde o início que ele iria sobreviver, afinal Natifa nos revela logo de início que é o pai quem lhe conta as histórias.

Também achei ele bem escrito, fluído, do tipo que desperta a curiosidade em saber como ele se livrou de determinada enrascada, o que aconteceu após algum incidente, o que Jama havia feito a seguir. 


Queria encostar na barba por fazer do pai, traçar o único rosto que tinha semelhança com o seu.


E talvez por isso a única coisa que me incomodou foi o final, pois como a história termina em 1947 e pelos agradecimentos e local de nascimento da própria autora é possível ver que outras mudanças aconteceram na vida de Goode, o que me deixou com o sentimento de que deveria haver uma continuação.

Fiz uma pesquisa rápida e a princípio não encontrei, mas se alguém souber, por favor, deixe o título nos comentários.


Achava tudo interessante agora, fascismo, comunismo, anarquismo, só conseguia confiar no que era claramente idiota.


E como não poderia deixar de ser, eu naturalmente recomendo a leitura. Com certeza irá agradar quem quer saber mais sobre a África, para quem gosta de uma aventura baseada em histórias reais, para quem fica mais esperançoso ao ler superações, para quem gosta de acompanhar relatos extremamente humanos.

Menino Mamba.Negra
Black Mamba Boy
Nadifa Mohamed
Tradução: Marina Della Valle
TAG - Tordesilhas
2010 - 284 páginas

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quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Partes de uma casa



Sinopse: Coletânea de contos organizada por Rafaela Pechansky, com prefácio de Itamar Vieira Júnior. João Maia, 237 - Carol Bensimon Solange - Jeferson Tenório Sem saída - Marília Garcia Não me olha, não diz nada - Natália Borges Polesso Basta a cada dia o seu próprio mal - Miguel Del Castillo A porta da rua - Caetano W. Galindo Luan Ângelo - Amara Moira.

Enviado em 2021 como mimo do kit que tinha o livro O pássaro secreto, foi feito com exclusividade para a TAG enviar aos seus associados, tendo como base o contexto vivido durante a pandemia de COVID-19 cuja frase Fique em casa foi muito usada principalmente em 2020.

Afinal como Itamar Vieira Júnior nos lembra no Prefácio, os últimos meses tornou a casa sinônimo de proteção, mesmo quando nela há desigualdade social, transformações que precisam ser compreendidas, memórias , dúvidas, barulhos, silêncios e as nossas próprias loucuras.

Repasso abaixo cada um dos contos para compartilhar com vocês um pouco mais dos sete contos e as minhas impressões.

João Maia, 237

Quem abre a coletânea é a escritora gaúcha Carol Bensimon, no seu conto um homem carrega o fardo de no final da adolescência dirigir alcoolizado e sofrer um grave acidente, ao qual ocasionou a morte do caroneiro Leonardo.

Os rapazes haviam se conhecido em uma festa e se descobriram vizinho, Leonardo tinha ganhado uma guitarra elétrica e já planejava o primeiro show em um palco que ficaria no próprio jardim. 

O fim deste sonho marca a vida do motorista sobrevivente no restante dos seus dias.


Ele já era a parte mais sombria da noite dessa pessoa.


Sabe aquele detalhe que pode te estragar a leitura? Pois então, foi o que aconteceu comigo neste conto, quando logo no início a autora liga o acidente a passagem do Trensurb - como é chamado o trem metropolitano que liga Porto Alegre e cidades próximas - às 03 da manhã. Só que o trem não funciona de madrugada, duas horas a mais e eu não teria este desconforto.

No geral achei que o conto não tem nada demais, e faltou uma relação mais direta com a parte da casa, talvez se o acidente fosse ele entrando no jardim e atingido o rapaz no palco improvisado, a ligação pulsasse mais. É uma história morna, mas rápida de ler. 

Solange

O carioca Jeferson Tenório usa a dependência de empregada, um aposento que nem todas as casas possuem, para tratar justamente de desigualdade social.

Aqui existem duas histórias paralelas, começa com Léa uma fisioterapeuta recém separada que precisa equilibrar a nova rotina com o filho pequeno e as lembranças do marido que ainda estavam espalhadas pela casa.

É ela quem encontra a personagem do título, vivendo em um quarto minúsculo sem janela, trabalhando sete dias por semana, em um trabalho escravo que roubou até o seu nome.


Em cima da cômoda, porta-retratos vazios, onde antes havia fotos de sorrisos e felicidades com o ex-marido.


Quando comecei a leitura deste contou achei que se tratava de uma mulher tentando se reerguer após a separação, na sequencia o foco muda para a situação de trabalho escravo e preconceito.

Terminei a leitura com a sensação de que faltava algo, como se o conto fosse mais o resumo do que viria a ser um romance longo, com os detalhes mais bem trabalhados. Não consegui formar uma opinião sobre o que achei da história, ela é interessante, mas fiquei pensando se o foco fosse a própria Solange, talvez em uma narrativa em primeira pessoa, o conto teria ficado mais redondo.

Sem saída

É na cozinha da bisavó que a poeta Marília Garcia buscou inspiração para misturar memórias e isolamentos em um dos contos que mais gostei.

Foi o isolamento que mudou a sua ideia original, como ela explica logo no início, quando viu a si mesma presa em uma cozinha com suas lembranças, um chaveiro da bisavó e os espaços em branco que a mente queria preencher.

E nestas lembranças ela acaba comparando o tempo atual com outro período onde enfrentou um confinamento diferente com um ponto em comum entre os dois, já que em ambos ela enfrenta uma gravidez de risco que lhe impede de se locomover livremente.


Seria uma história com muitas lacunas naquilo que parece o mais significativo: como ela viveu, o que pensava, o que aconteceu.


É um conto sobre confinamento - seja individual quando somente ela não podia sair da cama ou coletivo quando todos devem ficar em casa -, sobre histórias de família, relações superficiais, e as lacunas dos que preferiram esquecer.

Como eu disse no início, eu gostei, é muito fácil se identificar com algum dos sentimentos descritos ou de se sentir viajando entre as ruas de Portugal e Brasil. 

Não me olha, não diz nada

Outra gaúcha dá sequência a coletânea, e por ter lido recentemente A Extinção das Abelhas - já resenhado aqui no blog - mesmo que não identificasse que era a Natalia Borges Polesso, pelo estilo era fácil de adivinhar.

Em plena início da pandemia, quando tudo está fechado e se recomenda ficar em casa, Karina resolve fazer um encontro em seu apartamento e convidar pessoas próximas, que por sua vez resolvem convidar outras pessoas próximas, transformando o evento em uma festa.

Quando tudo foge do seu controle, ela simplesmente foge para o banheiro e se tranca lá, e entre limpezas do local e cochilos, ela acaba refletindo sobre as suas escolhas, tendo um gato como juiz.


Ela poderia não ter comprado tudo aquilo, mas foram tão bem recomendados.


O conto é introspectivo, onde a personagem usa o gato para colocar muitos dos pensamentos que há tempos martelavam sua mente, mas ela não arriscava a olhar de frente.

Como um fio de lã, um pensamento vai puxando a outro, misturando sentimentos, lembranças e emoções. Algo que depois de começado nem o álcool gel consegue impedir de se propagar.

Basta a cada dia o seu próprio mal

Um conto que me deu um arrepio na espinha, é assim que defino a história do carioca Miguel Del Castillo.

Heitor vive em um futuro pós pandemia, mas segue medindo a saturação de oxigênio, limpando tudo com álcool, evita sair na rua e quando sai é de máscara e na chegada a roupa vai direto para a máquina de lavar.

Um homem que simplesmente não consegue retornar ao ritmo no chamado de normal mesmo após as vacinas finalmente conseguirem pôr fim aos dias de isolamento. E isso acaba impactando em sua vida familiar e na social de forma devastadora.


Recorda-se bem da apreensão naquela noite de 2020, quando a saturação do filho caiu para 89%.


Por seguir todos os cuidados ainda nos dias de hoje, pois na minha casa ainda temos quem espere a vacina, já havia me pegado pensando em como seria romper esta bolha de proteção com a mesma despreocupação de antes.

Então quando li este conto, confesso que bateu um medo enorme de ficar como o Heitor e ter dificuldade de voltar a fazer as malas e voar as tranças pelo mundo. Então posso dizer que foi definitivamente a história que mais mexeu comigo.

A porta da rua

São as batidas na porta que dá acesso à rua que nos fazem entrar no conto de Caetano W. Galindo, no que parece um primeiro momento preocupante e depois se revela muito mais sensível.

Quem escuta essas batidas é Denise, que após a separação e com o filho adulto já tendo a própria vida, está vivendo sozinha na casa da sua infância. 

Logo após as batidas, segue-se uma voz chamando pelo nome de um homem, e isso desmorona as defesas da personagem trazendo lembranças do passado e muitas mágoas.


Ainda não se sentia em casa, de novo entre as cores e os volumes daquela casa.


Relacionando a porta com os laços familiares, o autor construiu um conto bastante sensível, em uma realidade não incomum na nossa sociedade. Ao qual é muito fácil sentir todas as emoções que inundam a personagem e compreender todos os seus momentos de dúvida e medo.

Luan Ângelo

Curiosamente é em tom de comédia que a coletânea se encerra no conto de Amara Moira.

Na história uma adolescente que tem o seu quarto no sótão, resolve comprar pênis artificiais para satisfazer o desejo que possui desde a infância de ser um menino.

Entre treinamentos para colocá-lo na cueca que mantém escondida da mãe e as tentativas de usá-lo para fazer xixi, a forma como os seus pais irão tomar conhecimento dos objetos é no mínimo inusitada.


Conheceram-se há poucos minutos e já eram como que parte um do outro.


Achei bacana a opção por encerrar a sequência de contos de forma mais leve, onde é impossível não escapar pelo menos um sorriso.

O que eu achei

No geral eu gostei, como pode ocorrer em qualquer coletânea, alguns contos atraíram mais o meu interesse do que outros. E apesar da nota citando o contexto da pandemia, a maior parte dos contos parece se passar antes deste período tão pesado, pelo comportamento dos próprios personagens.

Então sim, como diz o título, a base de tudo é uma casa. E de modo geral é possível caminhar por esta casa imaginária, cujos cômodos vão mudando de forma conforme memórias e ações são estimuladas a cada história que se alterna.

O que sem querer me fez olhar em volta e pensar o que me dizem cada espaço da minha própria casa. Que lembranças, desejos e planos futuros elas despertam na minha mente enquanto aguardo tudo passar.

Para quem ficou curioso, infelizmente o livro não está à venda nas livrarias, sendo, por enquanto, uma exclusividade dos associados da TAG.

Partes de uma casa
Vários autores
TAG - Experiências Literárias
2021 - 179 páginas

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Risque esta palavra



Sinopse: Em versos meditativos e arrebatadores, Ana Martins Marques, uma das vozes mais celebradas da literatura brasileira contemporânea, cria uma espécie de inventário de experiências afetivas. Com clareza, inquietação e extrema habilidade, mapeia os encontros e desencontros, a paixão e o luto, e prova que "quase só de palavras/ se faz o amor".

Confesso que não sou de ler poesias, não tenho um motivo concreto para isso, apenas é um gênero que nunca consta na minha lista de compras. Então assumo que o Risque esta palavra ficou um tempo me esperando, até que decidi um dia que iria ler um pouco a cada dia, e me surpreendi positivamente com o que encontrei, tornando a leitura muito mais rápida do que a planejada inicialmente.

A autora mineira Ana Martins Marques divide suas palavras em quadro partes, usando itens, situações e vícios que estão presentes no nosso dia-a-dia, sendo muito fácil se identificar com alguns dos poemas.

A Porta de Saída

Os poemas desta parte são relacionados com o tempo, a morte e a ausência. Ora como um enfrentamento, ora como questionamento, e enfim como aceitação. O que eu mais gostei foi o chamado História, onde o passado está no tempo de cada coisa, seja dos cabelos, das calças ou da poça d'água.


As casas

coloridas

estão alegres sem motivo.


Postais de parte alguma

Itens de viagem ganham um novo significado para falar das relações humanas, sejam elas as possíveis ou as idealizadas. Segue-se o contato com o mar em um jogo de expectativa e realidade, só discordo do poema Parte Alguma, sim, nos levamos na bagagem, mas se não ficamos escondidos dentro dela, não voltamos iguais.


A terra prometida a um

será no entanto entregue

a outro


Noções de Linguística

Já no primeiro poema temos a relação da mãe como pessoa e como língua, em um bonito retrato sobre a evolução do filho de nenê até a sua independência. 

E depois disso temos as diferenças línguas que nos fazem sentir estrangeiros, assim como uma espécie de brincadeira de quem é o narrador. Até chegar no silêncio que também se comunica.


em breve a língua será a mãe

mais do que você é a mãe


Esta foi a minha parte favorita do livro, ao qual concluía os poemas com várias reflexões. E achei muito interessante a referência ao tradutor, que ao realizar as trocas de palavras para o português acaba também se tornando um poeta.

Parar de Fumar

Uma ocupação para as mãos, uma auto sabotagem, uma forma de fugir do momento, uma desculpa para se isolar sem se sentir sozinho. Por não ser fumante, acabei substituindo muitas vezes esse item que não é um objeto pelo chocolate.


O que fazer agora

com as mãos

cegas?


Na ansiedade é possível fazer a mesma transferência de sentimentos, ambos utilizando as mãos e a boca. Ambos gerando questionamentos, embora um não tenha a mesma maleficência do outro.

O livro

Gostei deste contato com uma poesia que conta pequenas histórias, mistura lendas e dilemas, aflições e desejos, que tocam de forma sutil a alma e depois podem vir a ocupar o pensamento.

É o retrato do cotidiano, o questionamento da poesia ter tanto valor e ao mesmo tempo não ser valorizada, podendo os livros do gênero ficarem em um cantinho da estante próximo ao chão.  

Ao mesmo tempo que desafia o leitor a encontrar poesia em tudo, pois ela está intimamente ligada as nossas ações, reações, frustações, júbilos, saudade e solidão.

Deixo assim a sugestão, para quem gosta de poesia ou para quem, como eu, ainda não havia descoberto os seus encantos.


Risque Esta Palavra
Ana Martins Marques
Companhia das Letras
2021 - 114 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Cai o pano



Sinopse: Aceitando o convite de seu velho amigo, Capitão Hasting reencontra Hercule Poirot em Styles, a casa de campo onde os dois resolveram seu primeiro caso. No entanto, não foi apenas o lugar que mudou com os anos. Acometido pela artrite e abatido, Poirot já não é mais o mesmo. Quando o detetive belga anuncia que um dos aparentemente inofensivos convidados de Styles é um assassino, algumas pessoas ficam em dúvida. Será que os instintos dedutivos de Poirot finalmente o abandonaram? Cabe a notre ami descobrir a identidade de um dos seus mais desafiadores inimigos e provar que, embora o tempo tenha alterado as regras do jogo, suas células cinzentas e o coração de ouro de Hasting continuam os mesmos.

A grande dama do romance policial Agatha Christie encerra a carreira do detetive belga Hercule Poirot, um dos seus personagens ícones no livro Cai o Pano, que teve como tradutora a grande escritora brasileira Clarice Lispector.

Na história o Capitão Hasting atende um chamado do seu velho amigo, mas nada o havia preparado para encontrar Poirot em uma cadeira de rodas e extremamente limitado, tendo toda a sua movimentação física dependente de um auxiliar.


Quem nunca sentiu uma súbita pontada ao reviver uma velha experiência ou a sentir uma emoção antiga?


Mas ao contrário do que diz na sinopse da contracapa, a revelação de que há um assassino entre o pequeno grupo de convidados é revelado somente ao Capitão Hasting, que inicialmente dúvida da sanidade mental de Poirot, mas ao ouvir sobre cinco casos que estariam relacionado ao suspeito, ele passa a mudar de ideia.

Só que Poirot não irá lhe revela o nome do suspeito, ao qual chama de X, pois para que Hasting seja seus olhos e ouvidos de forma eficiente e sem correr riscos extremos, não pode revelar no seu rosto tão transparente a desconfiança sobre nenhuma pessoa.


Na minha opinião, nada é tão triste quanto à ruína pacientemente forjada pela idade.


A narrativa de Agatha Christie

Apesar de ser o livro de despedida de Hercule Poirot, toda a narrativa em primeira pessoa é feita pelo capitão Arthur Hasting, que relata os seus diálogos e próprias observações, só havendo a voz de Poirot através de uma carta.

Uma curiosidade que o escritor Raphael Montes relata na apresentação do livro é que a história foi escrita originalmente em 1940 devido ao medo que Agatha Christie sentiu de morrer durante a segunda guerra mundial e consequentemente deixar o seu personagem sem um desfecho, e assim o romance ficou trancado em um cofre até ser publicado em 1975, um ano antes do seu falecimento.


Porque um assassino, meu amigo, é mais vaidoso do que qualquer outra criatura do mundo.


Naturalmente a história foi revisada e atualizada, mas mesmo assim traz um retrato da sociedade da época, principalmente nas opiniões emitidas pelos personagens sobre o comportamento um dos outros.

Fechando assim um ciclo, já que o primeiro livro em que ele aparece é justamente O misterioso caso de Styles, cuja referência ao assassinato é citada diversas vezes no local que agora é um pequeno hotel.


Por que os piores tipos de homem são os que mais agradam e interessam às mulheres mais simpáticas é um problema acima do meu entendimento.


Os personagens

O hotel agora pertence ao casal Luttrell, ele um aposentado do exército que possuía excelente mira e era respeitado por seu batalhão, ela uma mulher de personalidade forte, que não raro lhe chama a atenção na frente dos outros, causando assim um constrangimento no ambiente.

Devido ao tamanho do hotel o grupo que ali se encontra é bem pequeno. Além de Hercule Poirot e Arthur Hasting, estão hospedados no local Judith, a filha independente de Hasting, cujo relacionamento com o pai não é muito afetuoso, e em cada conversa ela parece estar com as pedras na mão para contesta-lo.


O que é o mal? O que é bem? Essas concepções mudam de época em época.


Judith não está ali para fazer companhia ao pai, mas trabalhando como assistente de Franklin, um homem muito dedicado as suas pesquisas e que se sente preso a esposa Barbara, que se diz sempre doente para ser o centro das atenções e conta com o atendimento constante da enfermeira Craven, mas é sumariamente ignorada pelo marido.

Quem atende o seu desejo é o rico vizinho Boyd Carrington, um homem há muitos anos apaixonado por Barbara, cujo arrependimento é não a ter pedido em casamento quando teve chance e agora visita o hotel frequentemente para conversar com os hospedes e fazer companhia a ela.


Seu problema é a sua preguiça mental. Você gosta de jogar e adivinhar. Não gosta de usar a cabeça.


Completando o quadro estão Curtiss, o assistente temporário de Poirot, que liberou George para tratar de assuntos familiares. O admirador de pássaros Stephen Norton que flutua entre comentários inofensivos e sem noção, o mulherengo Allerton e Elisabeth Cole, uma mulher que mudou o seu sobrenome para se afastar da sombra negra que paira sob a sua família.

O que eu achei...

Um livro que combina perfeitamente com o verão que está chegando, e não por oferecer sombra e água fresca, mas por ser leve e instigante. Conforme os capítulos vão passando, eu me pegava junto com o Capitão Hasting tentando adivinhar quem daquelas pessoas poderia ser o suspeito X.

E quando o primeiro assassinato ocorre, e isso não é um spoiler quando estamos falando de um romance policial de Agatha Christie, eu continuava sem ter certeza de nada, pois todos podiam ter um motivo, e assim eu ficava trocando de suspeito página a página.


Um homem que já matou uma vez matará outra e outra e outra e outra.


Eu que não lia nada da autora desde a adolescência, adorei este mimo que veio da renovação da minha assinatura da TAG, pois havia esquecido de como Agatha Christie consegue nos confundir.

E assim deixo a dica dessa leve despedida que te provoca a desvendar e se surpreender com os acontecimentos, na envolvente escrita da rainha dos policiais.


Cai o Pano
Curtain
Agatha Christie
Tradução: Clarice Lispector
TAG - Harper Collins
1975 - 223 páginas

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

A história de Shuggie Bain



Sinopse: Glasgow, 1981. A cidade está morrendo. A pobreza, aumentando. A esperança, desaparecendo. Agnes Bain sempre esperou por mais. Ela sonhava com coisas grandiosas: uma casa com entrada particular, uma vida confortável. Quando seu segundo marido, um taxista mulherengo, sai de casa, ela e os três filhos se veem presos em uma cidade mineradora dizimada pela política da então primeira-ministra Margaret Thatcher. Enquanto Agnes se entrega cada vez mais ao álcool em busca de conforto, seus filhos tentam salvá-la. Porém, um a um, vão desistindo porque precisam salvar a si mesmos.

No mês de outubro/21 recebi pela minha assinatura da intrínsecos o livro premiado em 2020 pelo Booker Prize A história de Shuggie Bain, onde o autor escocês Douglas Stuart mistura ficção e vivências pessoais em um livro pesado e intenso. O mimo foi um caderno de memórias que eu achei meio bobo, mas como vira e mexe tem livro extra na caixa, eu nem me importo.

Na cidade de Glasgow, na Escócia, Wullie e Lizzie mimaram sua única filha Agnes, dando a ela o que eles não tiveram. E a garota cresceu sempre querendo mais, a ponto de arrancar todos os dentes naturais e troca-los por uma dentadura de dentes perfeitos.

Seu primeiro casamento foi com um católico que trocava os bares na sexta por um retorno cedo para casa, onde entregava todo o seu salário para a esposa, algo que o tornava fraco na visão de Agnes. Com ele teve dois filhos, Catherine e Leek, e poderia se dizer que tinha uma vida confortável.


Naquela manhã a mente o abandonara e deixara seu corpo vagando lá embaixo.


Mas isso não foi o suficiente para Agnes, que trocou sua vida estável por um taxista protestante e mulherengo chamado Shug, que por falta de uma boa situação financeira a fez retornar junto com o novo parceiro para a casa dos pais, onde tiveram um terceiro filho chamado Hugh, mais conhecido como Shuggie, personagem que dá nome ao título do livro.

Como não existe nada que não possa piorar, Shug se cansa das bebedeiras e cenas da esposa, mas como ainda a considera muito bonita e não deseja que outros homens se aproximem, larga Agnes e as três crianças em um bairro afastado de tudo, um lugar que já teve dias melhores antes da mineradora que empregava os homens da região entrar em decadência.


Queria sentir um pouco da inveja de estranhos, dançar com homens que a conduziam com orgulho e intimidade.


E enquanto a mãe se afunda ainda mais no alcoolismo e os irmãos mais velhos buscam uma forma de fugirem dali, Shuggie precisa cuidar dela enquanto enfrenta bullyng e abusos físicos e psicológicos.

Douglas Stuart nos apresenta uma Glasgow em pedaços nos anos de 1981 a 1992, a crise econômica impacta em um grande desemprego e não raro a população se apega as bebidas, gerando situações de alcoolismo generalizado nas regiões mais pobres.


Ficara orgulhoso ao ver o filho enfileirando as mulheres e soletrar o nome de cada uma delas foneticamente.


Na casa de Agnes não é raro faltar comida e ter latas de cerveja escondidas pela casa. O que a faz ter relacionamentos abusivos, onde o egoísmo e machismo dos homens sobressaem as suas próprias vontades e em relação aos seus filhos, que crescem abandonados a sua própria sorte.

E quem aparentemente mais sofre este impacto é justamente Shuggie, que tenta protege-la enquanto ele mesmo é violado de diferentes formas. Sendo perseguido pela sua maneira mais educada e feminina, como se isso o transformasse em um alvo ambulante. Trazendo a tona novamente a maldade infantil com o que é diferente e uma questão já antiga que questiona quem é que disse que todas as crianças são inocentes?


Era a cara que os cachorros protestantes sempre tinham, como se fossem muito amados, muito bem alimentados, o centro das próprias vidas.


E é realmente complicado cobrar inocência em meio a pobreza, a sujeira, a mesquinharia, o abandono e o vício. Pois os papeis de vítima tanto dentro de casa quanto na rua se alternam o tempo todo, assim como os discursos que vão do machismo, da disputa entre protestante x católicos aqui representados por dois times de futebol - Celtic e Rangers que possuem o título de maior rivalidade do mundo -, além das falas cheias de preconceito com qualquer um que foge do estereótipo padrão.

Cenário que pode chocar os mais incautos já que se trata de uma visão muito diferente que se tem da Europa e baseado em fatos reais, já que todas as empresas fechadas, todo o desamparo social, realmente aconteceram durante o governo da primeira-ministra Margareth Thatcher quando administrava o Reino Unido com sua mão de ferro.


Depois rezou para Deus torná-lo normal como presente de aniversário.


Finalizei a leitura com o coração apertado, pois não foram raras as vezes que senti vontade de abraçar as crianças e jovens que pelas páginas caminharam perdidos em busca de melhores expectativas. 

Mas esta nuvem de tempestades que parece contrastar com o belo tom escolhido para a capa do livro não me impediram de gostar, e muito, da escrita do Douglas Stuart e de sua A história de Shuggie Bain. Ficando a indicação de leitura, principalmente para quem gosta de livros mais tensos.


A história de Shuggie Bain
Shuggie Bain
Douglas Stuart
Tradução: Débora Lansberg
intrínseca
2020 - 528 páginas

Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado é pago integralmente pela autora.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Casa de Alvenaria - Volume 1: Osasco



Sinopse: Neste primeiro volume, Carolina narra os meses em que morou em Osasco, entre agosto e dezembro de 1960. Por meio deste testemunho precioso, acompanhamos a repercussão de seu primeiro livro, as viagens de divulgação e o contato frequente com a imprensa e com os políticos. Dessa narrativa do cotidiano, e entremeadas às contradições de seu tempo, emergem digressões e reflexões que permanecem mais atuais do que nunca.

Casa de Alvenaria faz parte dos conjuntos de diários de Carolina Maria de Jesus, que é considerada uma das maiores escritoras brasileiras do século XX. Mineira de nascimento que morou quase toda a vida em São Paulo, alcançou sucesso nacional e internacional ao revelar como era a sua vida morando na favela no livro Quarto de despejo. Sucesso que desagradou seus vizinhos e a fizeram ir junto com os seus três filhos para Osasco, em uma casa alugada provisoriamente até ela ter condições de comprar sua própria moradia.

Em plena divulgação e atendendo a um pedido do repórter Audálio Dantas que descobriu a sua escrita e passou a ser seu agente literário, ela passou a escrever um diário de sua nova vida, agora morando em uma casa de alvenaria, com comida na mesa e muitas viagens.


Ela diz: agora nós somos ricos porque temos o que comer até encher a barriga.


O volume um se refere justamente a este tempo que Carolina e seus filhos moraram em Osasco, narrando o período de 30 de agosto de 1960 até 20 de dezembro de 1960, véspera de natal.

Eu desconhecia a escrita de Carolina, ainda não li Quarto de despejo, e a primeira coisa que me chamou a atenção foi a desenvoltura em escrever tendo frequentado apenas dois anos a escola regular, e tendo se desenvolvido através da leitura, em muitos casos, através dos livros encontrados nas casas em que trabalhava. Tornando-a autodidata.


Pensei: ah dinheiro... invenção diabólica e enigmática que escraviza o homem e liberta o homem.


O diário que começa com a saída conturbada da favela, logo nos mostra uma Carolina ora deslumbrada ora exausta com sua nova vida. É recorrente ela comentar com os outros que tem dinheiro, e isso acaba atraindo todo o tipo de pessoa na sua porta, tentando tirar algo dela.

É gente querendo comprar casa, comprar carro, montar um negócio. E ao ver os valores em reais é fácil para o leitor identificar que sim, ela estava muito melhor de vida do que na época da favela, mas longe de ser rica para atender a todos os urubus que batiam em sua porta.


Não me preocupei com as confusões porque a humanidade é tão nojenta que é melhor silenciar-se diante de certas atitudes.


Também pela sua escrita se nota o racismo pulsante, seja através da empregada branca que sente raiva de ter uma patroa negra e se nega a beber em um copo da sua casa, seja de um homem que corrigi as vírgulas da sua dedicatória, seja nas mesas chiques em que ela se senta nos conceituados restaurantes ou nos hotéis em que se hospedou na época. Ou até mesmo em sua nova vizinhança, onde os filhos são espancados durante a sua ausência, em uma clara rejeição de sua presença no local.

Em contrapartida ela é vista como um amplificador de voz para negros e pobres, que com frequência pedem para que ela inclua determinado relato em seu diário, com a expectativa de que o fato seja conhecido e reconhecido por aqueles que tem algum poder e assim solucionado as questões que vão da fome, da falta de condição básica ao fechamento de uma banca de livros.


O mundo é bom só até os trinta anos. E Jesus morreu com trinta e três.


Como qualquer ser humano, Carolina também expõe suas contradições, como alguns comentários machistas e generalistas - embora ela seja facilmente um exemplo de mulher independente que toca a vida sem um marido do lado -, ou as vezes que exagera no que acredita saber, como no caso da visita aos doentes de câncer em que diz já existir remédio. 

Mas o que mais me chocou durante a leitura foi o agito que transformaram a vida dela, como uma boneca de pano ela é jogada de um lado para o outro, podendo estar em três estados em um mesmo dia. Ninguém pergunta se ela está de acordo com a agenda, se precisa se organizar com os filhos, que devido à mudança nem estão mais frequentando a escola. 


A minha vida está confusa. Eu não tenho tempo para ler, e eu tenho tantos livros.


O trabalho de divulgação do seu livro Quarto de despejo foi no mínimo extenuante, onde além das sessões de autógrafos, havia encontro com empresários, políticos, entrevistas na TV e publicidade. Não sendo raro ela sentir o impacto do sono e do cansaço.

Para o leitor é acompanhar um pedaço da história do Brasil sob o olhar de Carolina, que opina livremente sobre o que admira e o que discorda no comportamento apresentado pelos poderosos. Opinião esta que a faz temer um pouco a publicação do novo diário, pois se o primeiro gerou pedrada, os agora criticados podem lhe atirar balas.


Comparando os políticos da atualidade com o saudoso Dom Pedro, ele foi mais distinto.


Um livro para quebrar a bolha de quem vive longe da pobreza e entender como o país funciona para quem não tem nada, para admirar toda a persistência e superação que Carolina atinge usando uma caneta, para refletir como tudo é mais amplo que o nosso umbigo.

Deixo ao final uma observação, a edição da Companhia das Letras mantém a grafia original da autora, isto é, não fez nenhuma correção gramatical. Como sei que alguns leitores se incomodam com isso, optei em incluir esta informação, embora ache que em nada desabone o livro, pelo contrário, torna Carolina ainda mais viva para os leitores.

Casa de Alvenaria - Volume 1: Osasco
Carolina Maria de Jesus
Companhia das Letras
2021 - 220 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Crônicas de Petersburgo


Sinopse: Há muitas maneiras de ler este livro. Uma delas é reconhecer no texto que Dostoiévski redigiu na juventude alguns traços de estilo - a dicção veloz, a mescla de registros, a análise psicológica aguda - que mais tarde se tornariam marcas inconfundíveis do autor de Crime e Castigo. Outra é simplesmente se deixar levar pelas mãos do escritor, que apresenta ao leitor sua cidade.

Eu nunca havia lido nada do famoso escritor russo Fiódor Dostoiévski, então quando o livro Crônicas de Petersburgo foi oferecido como mimo para renovar a minha assinatura anual da TAG Curadoria, meus olhos imediatamente brilharam.

O livro é relativamente curto, e começa com o Prefácio da tradutora e professora de Língua e Literatura Russa Fátima Bianchi, para depois seguir uma apresentação do almanaque O Trocista e cinco crônicas do ano de 1847, todos escritos pelo autor.

Prefácio

Fátima Bianchi compartilha com o leitor toda uma explicação sobre o autor Fiódor Dostoiévski, da sua inspiração inicial em Balzac, o que motivou o escritor ser um seguidor da Escola Natural, as obras escritas, até o surgimento de dívidas que o obrigaram a ceder e a escrever sob encomenda.

Tudo com referências bibliográficas complementares, o que auxilia os mais curiosos a pesquisarem mais.


Com a reputação quase destruída, ele abandona todos os trabalhos iniciados e passa praticamente o ano inteiro de 1847 desaparecido da vida literária.


O Trocista

Projeto literário de Nikolai Nekrássov, O Trocista era para ser um almanaque humorístico, mas este foi censurado antes de ter a chance de ser publicado. como recordação ficou a apresentação realizada por Dostoiévski, que praticamente transforma a publicação em uma espécie de pessoa, ao qual pela descrição desperta a vontade de conhece-la. 


E eis que já julgaram e condenaram, senhores; condenaram sem ouvir! Esperem, ouçam!


Crônica 13 de abril de 1847

O texto escrito em parceria provável com Aleksei Pleschêiev por não ser assinada começa falando dos impactos da mudança de estação pela cidade de Petersburgo, até chegar a comentários sobre literatura e ópera, onde ocorre um certo deboche nas tentativas da sociedade local em imitar a Europa e finaliza com uma forte crítica aos filantropos.


Mas a época do amor e a época da poesia não chegam ao mesmo tempo, diz o poeta, e graças a Deus que é assim.


Crônica 27 de abril de 1847

Como um fio de lã puxado por um gato, a crônica começa falando da primavera, depois dos moradores de Petersburgo e a aqui perturbadora pergunta Quais são as novas?, passando pela citação de um personagem que irá aparecer em dois contos seus no ano seguinte até os detalhes de uma novela que ele está lendo, tudo com muita ironia e pequenas observações sobre a sociedade.


Mas eis que enfim saiu o sol e essa novidade, indiscutivelmente, vale mais que qualquer outra.


Crônica 11 de maio de 1847

Na primavera a fofoca vestida de novidade é aceita alegremente entre os moradores de Petersburgo, que somadas aos gastos desnecessários de uma pobre sociedade rica, formam a tônica de um texto crítico as classes mais altas.


Ao fato de que, num momento tão solene, o homem de Petersburgo toma consciência de toda a sua dignidade, de toda a sua importância, e faz plena justiça a si próprio.


Crônica 1 de junho de 1847

Com a proximidade da chegada do verão começa o abandono da cidade, e aqui Dostoiévski começa a lista sobre o que poderiam fazer os que ficam, seguida de uma reflexão da visão negativa dos estrangeiros em relação a Petersburgo, o que desencadeia os motivos pelo fato de eles ousarem ser diferente, as mudanças de mentalidade até chegar aos avanços científicos e literários, além de comentar sobre a vontade de todos expressarem suas opiniões.


Há moradores de Petersburgo que não saem de seu quarteirão há uns dez anos ou mais e só conhecem bem o caminho para a repartição onde trabalham.


Crônica 15 de junho de 1847

A última crônica é uma série de divagações sobre os moradores da cidade de Petersburgo, da sua relação com o trabalho, retornando a fuga no verão, a preguiça, a tristeza e os que sonham. O incrível nesta crônica é que várias das descrições podem ser aplicadas as pessoas no dia de hoje, indicando que temos uma evolução muito mais material do que humana.


Sempre despetalamos e despedaçamos a flor para sentir melhor o seu perfume, e depois ainda nos queixamos quando, em vez do aroma, só experimentamos um inebriamento.


O que eu achei

Eu gostei bastante deste livrinho curto, que me despertou o desejo de ler outros livros de Dostoiévski, pois me agradei muito da sua escrita direta, com pitadas de ironia, opinião e história. 

Através das suas crônicas me senti caminhando na rua de Petersburgo observando de perto a sociedade de 1847, e fiquei curiosa em saber como é a cidade hoje, o que ela poderia guardar das visões do autor, o que mudou, o que segue igual, o que foi valorizado e o que terá sido esquecido.

Um livro de leitura rápida que pode dividir tranquilamente o tempo de leitura com um romance mais denso, sem que o leitor em questão se preocupe em misturar as histórias.

Ficando a dica para quem tem vontade em conhecer os escritos de Dostoiévski, para quem gosta de literatura russa, e naturalmente para quem curte viajar sem sair do lugar.


Crônicas de Petersburgo
Peterbúrgskaia Liétopis
Fiódor Dostoiévski
Tradução: Fátima Bianchi
TAG - editora 34
2020 - 95 páginas



quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Aprender a falar com as plantas


Sinopse: Paula é uma médica neonatologista, imersa no trabalho, que leva a vida sem muito sobressaltos. Até o dia em que perde o companheiro num acidente de trânsito algumas horas depois de receber a notícia de que ele tinha outra mulher. Então Paula precisa lidar com o luto dobrado, a dor da traição e o rancor, tudo isso num apartamento repleto das plantas deixadas por ele. E o rastro de uma mulher vista no hospital é o último laço com um homem que passou quinze anos ao seu lado e deixou de existir de forma súbita e bruta.

No mês de outubro/21 a TAG Curadoria trouxe uma indicação da escritora brasileira Socorro Acioli, que me apresentou a autora catalã Marta Orriols e o seu Aprender a falar com as plantas. O mimo foi um kit de sementes.

Paula é uma médica dedicada com um grande sentimento de proteção em relação aos bebês prematuros que estão aos seus cuidados. Aos 42 anos tem um laço forte com o pai e saudades da mãe que morreu quando ela tinha sete anos de idade.


Estávamos vivos. Os atentados, os acidentes, as guerras e as epidemias não nos concerniam.


Uma verdadeira workaholic consegue conservar três grupos de amigos: os do trabalho, os da faculdade e os que vieram com Mauro, o homem que conseguiu quebrar as suas barreiras sobre morar junto, mas não sobre oficializar a relação ou ter filhos.

Tudo parece estável, dentro de uma rotina, quando ele a chama para almoçar e lhe comunica que a está deixando por outra mulher. Mais tarde ela é surpreendida por um telefonema do melhor amigo de Mauro lhe informando que este foi atropelado e foi encaminhado em estado grave para o hospital. Local em que ela vai ter que equilibrar seus sentimentos junto com as presenças da família do parceiro e da amante até então desconhecida.


A lembrança da morte da minha mãe ficou vinculada para sempre à letra branca de giz sobre o verde da lousa que dividia o reino animal em dois.


E é com estes dois finais abruptos em poucas horas que ela precisa lidar e recomeçar, já que não sabe mais pelo que chora, se pelo fim do relacionamento cujas conversas com a amante agora pode acompanhar em detalhes no celular do falecido ou pela morte do companheiro de longa data.

Dividindo a história em Antes e Depois a escritora catalã Marta Orriols utiliza a narração em primeira pessoa para colocar o leitor dentro da mente de Paula e assim compartilhar suas memórias e sentimentos. E é através dos olhos de Paula que percorremos as ruas de Barcelona enquanto ela corre ou simplesmente comenta as características dos bairros.


Morrer não é místico. Morrer é físico, é lógico, é real.


Um ponto curioso foi a opção dos tradutores em deixar as falas da enfermeira Pili no original, não é nada que atrapalhe a leitura, pois são frases de fácil entendimento, mas confesso que estranhei um pouco este fato.

Aprender a falar com as plantas é um livro sobre o luto, a morte, a solidão e como é difícil recomeçar. Ao mesmo tempo que lança questionamentos como o do porque muitas mulheres abandonam as suas verdadeiras escolhas para se adequar ao desejo dos seus parceiros, de como a morte também pode ser uma libertação para quem fica, se a pessoa estiver disposta a enxergar o que não lhe atendia a muito tempo.


Você estava morto e eu pensei que era um pau-mandado.


É também sobre onde estávamos quando a notícia nos atropelou, nos deixando sem reação e com uma marca invisível e eterna no calendário. De como administrar a dor dos que nos rodeiam, quando não sabemos lidar com a própria. Sobre não tornar santo quem nos magoou, e tentar apenas esquecer e perdoar.

A relação com os que estão a volta também é um assunto abordado na história. Sentimentos como o sufocamento aparecem tanto no presente quando as pessoas ao redor ora parecem querer assistir a sua dor e ora ficam cobrando uma volta por cima. Quanto no passado. ao relembrar as cobranças da família de Mauro em relação a filhos e as ligações persistentes da sogra que desconhece que o seu filho já havia trocado de parceira.


Como se todo aquele ódio e aquela raiva impregnados na minha saliva fossem o que matou ele.


O que ninguém consegue entender é que a sua dificuldade de retomar a vida é dobrada, já que Paula não compartilha a traição de Mauro, pois ela chora pela morte e pela mágoa que o falecido lhe causou. Incluindo questões de comparação com a outra mulher em relação à idade, características físicas e o próprio relacionamento, ficando claro em sua mente que mais do que paixão ele também procurava por um filho.

Tudo isso em uma casa cheia de plantas que eram cuidadas com muito amor por Mauro, mas não chamando a atenção de Paula da mesma forma. Transformando o jardim em um espaço de recordação vivida do parceiro que de qualquer maneira não iria voltar. 


Na realidade, o choro não tem uma função fisiológica concreta, mas é um efeito secundário da estimulação do sistema nervoso.


Em paralelo acompanhamos um pouco dos bebês que estão na neonatal, principalmente de Mahavir, cuja torcida por sua sobrevivência é inevitável. Sendo uma parte bastante sensível da história.

No geral foi uma história que gostei, achei a escrita da Marta Orriols de fácil leitura, embora a história seja bastante triste, pois o tempo inteiro está se falando de administração de perdas enquanto a personagem tenta se reencontrar. E isso a torna muito humana, com atitudes que podem gerar tanto simpatia quanto questionamentos de por qual motivo ela está seguindo aquele caminho.


Deveria ser possível esquecer no mesmo momento em que se toma a decisão de esquecer. Esquecer deveria ser imediato, senão lembrar se torna uma degradação, um ato de resistência.


Ficando a dica para quem gosta da escrita catalã, para quem procura livros cujo assunto é o luto, ou como sempre escrevo, para quem simplesmente gosta de ler.


Aprender a falar com as plantas
Aprende a parlar amb les plantes
Marta Orriols
Tradução: Beatriz Regina Guimarães Barboza e Meritxell Hernando Marsal
TAG Curadoria - Dublinense
2020 - 240 páginas

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Assinatura integralmente paga pelo autor da resenha.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Última Parada



Sinopse: Aos vinte e três anos, August Landry tem uma visão bastante cética sobre a vida. Quando se muda para Nova York e passa a dividir um apartamento com as pessoas mais excêntricas - e encantadoras - que já conheceu, tudo o que quer é construir um futuro sólido e sem surpresas, diferente da vida que teve com a mãe. Até que Jane aparece. No vagão do metrô, em um dia que tinha tudo para ser um fracasso, August dá de cara com uma garota de jaqueta de couro e jeans rasgado sorrindo para ela. As duas passam a se encontrar o tempo todo e logo se envolvem, mas há um pequeno detalhe: Jane pertence, na verdade, aos anos 70 e está perdida no tempo - mais especificamente naquela linha do metrô, de onde nunca consegue sair.

No mês de outubro/21 recebi pela minha assinatura da TAG Inéditos o livro Última Parada, livro norte americano escrito por Casey McQuiston. O brinde foi uma nécessaire pequena.

August é uma jovem adulta criada por uma mãe solo e cresceu sendo orientada para não depender de ninguém. Ela passou grande parte da vida auxiliando na busca pelo tio desaparecido, ao qual a mãe busca informações frequentemente com a polícia que ignora o caso.

Neta de uma família rica, ela não possui contato com os avós, tendo como único laço de sangue a figura materna, ao qual possui uma relação bem conturbada.


O lugar é assim: um misto de familiar e completamente estranho.


Confusa sobre que profissão seguir, já trocou de curso universitário diversas vezes, e nesta busca sobre si, vai parar em Nova York, onde responde um anúncio interessada em alugar um quarto, e mais do que um teto, ela vai encontrar pela primeira vez amigos.

Para complementar a mudança, ela acaba se apaixonando por uma outra jovem no metrô, após esta lhe dar um cachecol para auxilia-la a esconder as manchas do banho de café recém tomado. Seu nome é Jane e ela parece irradiar simpatia.


Foram vinte e três anos de passagem, tocando tijolo após tijolo, sem nunca sentir um laço permanente.


Só que o seu conhecimento de detetive, que ela tanto despreza, logo se demonstrará útil, ao constatar que Jane está sempre com as mesmas roupas e na mesma linha, independente do horário. O que faz surgir a dúvida: o que Jane é?

Em a Última Parada Casey McQuiston utiliza personagens que em sua maioria pertencem a comunidade LGBTQIAP+, mostrando diversos perfis em sua narrativa em terceira pessoa.


A parte dela que diz: não confie em ninguém, muito menos naqueles que tentam entrar nas câmaras de seu coração.


A premissa da história é bacana, mas a mistura de casos de família com 50 tons de cinza tornou o enredo extremamente enfadonho, e foi só pela curiosidade em saber o que iria acontecer com Jane que me fizeram terminar a leitura.

Para começar existe uma mistura de assuntos que poderiam ser bem mais explorados e passam superficialmente pela história, como relações familiares, o preconceito ao descobrir que alguém não é o que uma pessoa conservadora espera – principalmente quando se trata na relação pais e filhos-, as dificuldades em se relacionar, as dúvidas que assolam quem não consegue se encontrar, o desaparecimento de uma pessoa amada e claro a viajante do passado.


É fácil saber quem você é quando se toma a decisão um dia e nunca mais muda de ideia.


Somado a isso a protagonista August parece ter muito mais treze anos do que vinte e três, perdida e sem rumo, parece não ter foco nem responsabilidade na vida. Jogando tudo na conta de sua mãe, como uma criança birrenta que vive em volta do próprio umbigo.

Aliás, se não fosse August, o livro poderia ser bem melhor. A turma do edifício onde ela aluga o quarto é muito divertida, e os diálogos entre eles garantem momentos de descontração. E tem a lanchonete cheia de histórias no bairro, ao qual a turma se reúne para comer e colocar o papo em dia.


Só sabia que era diferente, e eu e meu pai brigávamos, e minha mãe chorava, e eu me sentia um lixo o tempo todo.


O que já me fez pensar que quem deveria ter encontrado Jane no metrô era o Niko, que é médium, e assim a turma do prédio e da lanchonete poderia ter juntado as peças para desvendar o mistério... sim, eu sei, estou reescrevendo a história. Mas de fato pra mim eles são a melhor parte da narrativa.

Aliás, adorei as festas que eles organizam, e em meio a pandemia, deu mais vontade de sair para dançar em um lugar com música boa e gente alto-astral, assistir aos shows das drags curtindo um drink gelado e espetacular.

Falando em música, são inúmeras as referências musicais dos anos 70, o que pode gerar uma playlist surpreendente para quem gosta de ler escutando música.


Tenho que lidar com as escolhas que fiz, e não tenho como consertar.


Outro ponto positivo são que alguns fatos relacionados são reais, como o incêndio em uma boate gay, que ocasionou em várias mortes, e o apagão em Nova York, que deixou a cidade às escuras.

E antes que venham me jogar pedras alegando que o meu não gostar seria relacionado a algum preconceito, informo que mesmo que o casal fosse hétero eu teria literaturado o livro, da mesma forma que literaturei o já mencionado 50 tons de cinza.


"Às vezes a gente tem que sentir certa coisas justamente porque elas merecem ser sentidas."


E uma das razões é que quando estava prestes a abandona-lo eu apliquei a leitura dinâmica no mesmo, pulando diversas páginas, e ao retornar a leitura não havia me perdido em nada, procedimento que fui adotando durante o resto da leitura e mesmo assim levei cinco dias para finalizar. O que demonstra uma escrita arrastada, ou como dizem na minha terra, com muita encheção de linguiça e pouco conteúdo.

Mas como eu acredito naquele antigo ditado popular que afirma que gosto não se discute, pode ser que você tenha uma opinião completamente diferente da minha. E por isso deixo aqui como dica de leitura, principalmente para quem busca personagens LGBTQIAP+ como principais, curte as referências aos anos 70, adora cenas detalhadas e demoradas de pegação e claro, quer brincar de detetive para descobrir se Jane é um fantasma ou a versão literária de Marty McFly em De Volta para o Futuro


Última Parada
One Last Stop
Casey McQuiston
Tradução: Guilherme Miranda
Tag Inéditos - Seguinte
2021 - 395 páginas

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terça-feira, 9 de novembro de 2021

A extinção das abelhas



Sinopse: Regina foi criada pelo pai, que faleceu quando ela começava a entrar na vida adulta - a mãe fugira com o circo quando ela ainda era criança. As vizinhas, Eugênia e Denise, cuidam dela como podem, oferecendo afeto, dinheiro e uma vida em família que lhe faz falta. O círculo se completa com Aline, filha do casal e amiga-irmã de Regina. Na seara amorosa, seu relacionamento mais estável foi com Paula, professora universitária com quem se envolvera e que nunca quis nada sério. Quando o mundo começa a desabar, na esteira do uso desastrado de pesticidas agrícolas, Regina vê todos a sua volta indo embora, e começa a questionar até que ponto está disposta a enfrentar os próprios medos para se adequar a uma nova realidade.

A escritora gaúcha Natalia Borges Polesso leva o leitor para o futuro em um Brasil pré-apocalíptico, onde narra em paralelo a história da mãe e da filha.

A filha é Regina, uma mulher de 40 anos criada pelo pai deste que ambos foram abandonados pela sua mãe, ao qual desconhece se está viva ou morta. Apesar de formada, ela não encontra emprego em lugar nenhum, precisa pagar para receber a insulina que deveria ser gratuita e acaba se tornando stripper virtual para ganhar algum dinheiro e assim seguir com seus sustento.


As pessoas vão embora, e isso é uma realidade.


Extremamente ansiosa direciona tudo para a comida e leva uma vida relativamente reclusa, salvo Denise e Eugênia que estão sempre prontas para ajudá-la. Mas isso não evita que ela as julgue por terem uma situação financeira melhor. E assim muitas vezes se mostra contrária aos conselhos recebidos, o que gera algumas dificuldades extras em sua vida solitária.

Já a mãe, chamada Guadalupe, divide com o leitor a sua ânsia de buscar por novos mundos, fazendo com que frequentemente ela abandone a todos os que estão à sua volta para recomeçar em outro ponto. 


As pessoas dizem que eu devia parar de fumar, parar de beber, maneirar na gordura, no pão branco, no açúcar, mas como é que se faz isso?


É uma alma livre em relação a laços, sexualidade, padrões, tradições. E talvez por isso não se consiga pensar em julgá-la por ter abandonado uma filha, pois fica claro que aquela é a natureza dela, e impedir isso seria matá-la.

A Extinção das Abelhas é um livro dividido em três partes, nos quais a autora escolheu diferentes formas de contar a sua história, deixando claro o início e o fim de cada fase da narrativa. 


Mas a primeira coisa que ela disse quando me viu foi que, se as abelhas entrassem mesmo em extinção, o mundo ia acabar.


Na primeira parte as últimas frases dos capítulos não possuem ponto final, deixando um link para o título do próximo capítulo ou simplesmente uma ideia não completada, como um pensamento que se perde ou uma conversa interrompida. Não me lembro de ter lido algo parecido antes e achei o recurso muito interessante, pois me impulsionavam automaticamente a seguir com a história.

Na segunda parte os capítulos misturam notícias reais - algumas facilmente verificadas em uma rápida consulta ao Google - com a de um futuro não muito distante e bastante conturbado, com fechamento de fronteiras, lockdown de estados colapsados, cidades que se tornam verdadeiros lixões e a chegada de um segundo sol que impede o anoitecer e assim o sono profundo que nos faz descansar. O que me fez ficar com a voz da Cássia Eller durante toda esta parte cantando a composição O Segundo Sol do Nando Reis em minha mente.


Ser adulta era saber chorar as coisas, saber que não se pode pagar por tudo, que às vezes não se pode pagar e ponto.


Na terceira e última parte os capítulos são de fechamento, contanto ao leitor o destino de Regina e Guadalupe após o colapso total.

Além disso é possível dizer que os capítulos são relativamente curtos, tendo alternados conforme a necessidade o uso de primeira e terceira pessoa complementam a imersão da história.


Eu quis fazer tudo o que me daria prazer verdadeiro, eu acreditava.


Algumas curiosidades da história é que a personagem mora no estado do Rio Grande do Sul, e quase todos os relacionamentos retratados são homossexuais femininos, o que abre espaço para discutir uma maior perseguição as lésbicas neste futuro nem tão distante onde o mundo se tornou o caos, com violência injustificada, estupro de mulheres e dificuldade inclusive de atravessarem as fronteiras de países vizinhos.

Na história também fica claro que todas as vozes são de mulheres, os personagens masculinos são secundários nos assuntos abordados, é um pai, ou empresário, o dono da venda, o cliente, figuras que orbitam ao redor de uma trama onde dores, resiliência e sonoridade são as palavras chaves neste universo feminino.


Memórias de dias em que eu podia me dar o luxo de jogar metade do café fora porque não tinha fome nem preocupações.


Como ocorre em O deus das avencas do Daniel Galera, toda a mudança política no Brasil parece ocorrer após a eleição de 2018. Mas aqui o tempo ocorre depois, já houve outras eleições, e no tempo atual de Regina o presidente da história é um ex-apresentador casado com uma apresentadora infantil - facilmente identificado pelos leitores atuais, que talvez fiquem mais aliviados durante a leitura por saberem da troca de emissora do Faustão.

Eu, que desconhecia a escritora, particularmente achei o livro bem interessante, primeiro por observar, não só na escrita da Natalia Borges Polesso, como em outros livros que surgiram de 2020 pra cá, como a pandemia trouxe à tona uma preocupação mais urgente com o meio ambiente, as diferentes visões de caos onde as diferenças sociais se tornam ainda mais acentuadas, o aumento da fome, do preconceito, do acesso ao básico e naturalmente, as doenças.


Depois da morte das abelhas, repensaram os limites do consumo, mas já não havia muito.


Vejo toda essa literatura como um aviso, de que ainda não é tarde demais para mudar o curso da nossa história e consequentemente do nosso planeta.

Um livro sobre morte, solidão, amor, sobrevivência, relações humanas, preconceito, causa e consequência. Resumindo: um pré-apocaliptico que não é nada inverossímil.


A Extinção das Abelhas
Natalia Borges Polesso
Companhia das Letras
2021 - 307 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Forward



Sinopse: Para alguns, a tecnologia é o prenúncio do fim do mundo. Para outros, é apenas o começo de uma nova era. Renomado escritor de ficção científica, autor dos best-sellers Matéria escura e Recursão, Blake Crouch convidou grandes nomes da literatura contemporânea para traçar histórias audaciosas que mergulham nos desdobramentos que os avanços tecnológicos acarretam à humanidade. De potência criativa memorável, os contos desta coletânea se pautam em temas diversos, como inteligência artificial, colonização de outros planetas, engenharia genética e programação, para nos fazer encarar o que há de mais brutal e profundamente humano em nós e em nossa sociedade. Imersos em tamanhos medos, paixões, sonhos e ambições, vem à tona a complexidade de se estabelecer limites e de realizar escolhas diante da busca pelo futuro que desejamos.

Em setembro/21 recebi pela minha assinatura da Intrínsecos a coletânea de contos Forward, composta de seis histórias de diferentes escritores. Por ser mês de aniversário do clube, vieram de mimo o livro de não-ficção Antropoceno do escritor John Green e duas cartelas de adesivos.

Logo na abertura Blake Crouch conta para o leitor que durante um passeio pelas Montanhas Rochosas ele e sua companheira começaram a debater sobre tecnologias e algumas perguntas começaram a surgir, como se alguém é capaz de prever aonde cada descoberta irá levar? Se as incertezas devem interromper os impulsos de avançar? E qual é a sensação de mudar o mundo?


Quando eu finalmente consegui extraí-la do jogo, ela se tornou um algoritmo capaz de autoevoluir, capaz de aprendizado de máquina caixa-preta.


As perguntas o levaram a escrever um conto e a propor a outros cinco escritores que também dessem a sua visão sobre estas questões. E assim nasceu Forward e as diferentes visões que falam tanto de tecnologia quanto de humanidade.


Summer Frost

E é justamente o conto originado pelas perguntas que abre o livro. Escrito por Blake Crouch, no conto uma desenvolvedora e vice-presidente de uma empresa de tecnologia durante a elaboração de um jogo cria uma inteligência artificial superior. E o que era para ser uma coadjuvante de uma história bastante violenta, vira o projeto da vida de Riley e uma presença no mundo real.


Porque às vezes a vida é tão rica e complicada e surpreendente que nos tira a respiração.


O conto de 80 páginas é dividido em capítulos e tem sua narrativa em primeira pessoa, nos tornando próximos de todas as questões e percepções de Riley, que aos poucos vai colocando tudo o que a cerca em segundo plano para alimentar a inteligência de Max, como ela chama a sua criação.

O curioso neste ponto é que pouco depois de finaliza-lo eu acabei assistindo com a minha filha no Netflix A animação A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas e achei que as duas histórias se conectam muito em relação aos temas abordados. O filme é muito bom, eu recomendo.


Pele de Emergência

A autora de ficção especulativa e fantasia N.K. Jemisin é quem escreve o segundo conto do livro. Aqui os escolhidos foram embora do Planeta Terra acreditando que ela havia chegado ao fim. Mas de tempos em tempos uma espécie de soldado é enviado ao antigo lar para buscar a reposição de células importantes.


O planeta já estava em colapso ambiental completo, em todos os biomas, quando nosso povo fugiu de lá.


E é justamente a visão de um deles que se acompanha no conto, onde com surpresa a pessoa descobre que os que se julgavam especiais na verdade eram os sanguessugas do planeta, e sem eles a Terra se recuperou e criou uma sociedade muito mais equilibrada e igualitária, mexendo com tudo o que ele tinha como verdadeiro.

Este conto é o mais político e aborda assuntos como meio-ambiente, diferenças de classes e gênero, machismo e racismo que levaram ao apocalipse social, e como ao se livrar de todos o planeta voltou a se desenvolver de forma sustentável.


Arca

A autora de Divergentes Veronica Roth nos leva em um planeta Terra em evacuação com a chegada do asteroide Finis, cuja colisão será catastrófica.

São poucos os que restam, eles são cientistas que foram escolhidos por não terem nenhuma família para catalogarem os últimos tipos de flora antes de embarcarem em uma nave.


Não seria então nosso dever desfrutar tudo que as plantas da Terra têm a nos oferecer enquanto for possível?


E é através de Samanta que acompanhamos suas lembranças do passado, as escolhas do que levar na bagagem de seus companheiros e a difícil decisão de deixar o lugar onde as pessoas que se ama estão enterradas, mostrando como nem a morte consegue cortar este vínculo.


Você chegou ao seu destino

Quem assina este conto é o mestre em língua inglesa e escritor Amor Towles que nos apresenta Sam, um homem que está indo até uma moderna empresa de inseminação contratada por ele e sua esposa.

O diferencial nesta empresa é que o casal pode escolher além das características físicas do seu bebê, também a sua personalidade , tendo uma prévia do que o futuro irá reservar para o seu filho na vida adulta.


A ciência diz que nós precisamos de apenas dois minutos para estabelecer impressões duradouras nas pessoas.


Este vislumbre faz com que o pai se depare com o próprio passado e vá parar em um lugar inusitado, onde com a ajuda do álcool os seus pensamentos vão para as mais diferentes direções.

                        

A última conversa

O autor de suspense, terror, fantasia sombria e ficção científica Paul Tremblay nos leva para a situação mais agoniante que qualquer pessoa pode passar: acordar sem saber absolutamente nada sobre o seu presente e passado.


Preto ou branco, isto ou aquilo, certo ou errado, foram os exemplos que ela deu para explicar pensamento binário.


Em um local escuro seu único contato com o mundo é uma voz de mulher que se apresenta, mas não responde a todas as suas perguntas. Um conto em que a agonia e a curiosidade estimulam a virar mais uma página.


Randomizando

O autor de Perdido em Marte Andy Weir fecha a coletânea em Las Vegas. Aqui temos uma mudança tecnológica que pode afetar os computadores utilizados pelos cassinos nos salões de Keno para a geração de números.


Computação quântica é uma coisa totalmente diferente da computação comum.


Só que ao tentarem se prevenir, o que pode acontecer é justamente o contrário, dando a chance de um novo golpe por algum gênio da matemática que renderá a perda de muito dinheiro.


O que eu achei

Gostei bastante da coletânea de Forward, além de ser fã de ficção científica, os estilos bem diferentes do conto não deixam o livro com cara de mais do mesmo, podendo ter a própria tecnologia quanto uma situação o personagem principal de tudo. Além disso as histórias vão de apocalipse a golpes, de projetos militares a clonagem, do amor a solidão.

Alguns dos contos utilizam um pouco de jargão técnico, até para dar mais realismo aos personagens, mas nada que atrapalhe a fluidez da leitura para quem não entende absolutamente nada de informática.

Embora tenha achado o último conto mais fraco em relação aos demais, isso não significa que ele seja ruim, pelo contrário, após muitas reflexões sobre a evolução tecnológica, possíveis fim de nosso planeta e relações humanas, é interessante o livro fechar com uma história leve, que puxa mais para comédia do que o drama, e é facilmente cinematográfico em nossa mente.

Com isso é claro que recomendo a leitura, principalmente para os fãs de ficção científica e os curiosos sobre o quanto a imaginação humana ainda pode influenciar na evolução da tecnologia.


Forward
Blake Crouch, N.K. Jemisin, Veronica Roth, Amor Towles, Paul Tremblay, Andy Weir
Tradução: Braulio Tavares
intrínseca
2019 - 304 páginas

Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado é pago integralmente pela autora.