Sinopse: Mimi e Bird são um casal indígena: ela Blackfoot, ele Cherokee. Os dois viajam pela Europa seguindo a rota dos cartões-postais enviados por Leroy Bull Shield, tio de Mimi, depois dele ter sido retirado da sua reserva indígena para se tornar atração em um show de faroeste. Ao partir, Leroy havia levado a bolsa Crow, um importante artefato da família, e é com o argumento de recuperá-la e descobrir o paradeiro do antepassado que Mimi e Bird justificam suas andanças pelo mundo. Uma aventura tão insólita quanto profunda, em que íntimo e político se encontram, e que nos faz pensar não apenas sobre o envelhecimento, o companheirismo e o amor, mas também sobre a violência física e simbólica contra indígenas e refugiados.
No mês de Abril/2022 eu recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria o livro Indígenas de Férias do premiado autor canadense Thomas King, indicação da também escritora Margaret Atwood, que tem entre os seus títulos O conto da aia. O mimo foi uma placa em rosa claro com uma frase e um desenho incompleto do rosto do escritor Fiódor Dostoiévski (este mimo tinha autores diversos e os assinantes receberam de forma aleatória).
A História
Blackbird Mavrias, Bird para os íntimos, é um fotojornalista aposentado, nascido nos Estados Unidos, é filho de um pai Cherokee e de uma mãe de origem grega. Ainda nos EUA, ele conhece a canadense Mimi Bull Shield, Mimi para quem se aventura pelas páginas, com raízes ancestrais Blackfood.
Sua estada pela Europa não é a primeira vez, após o especialista em questões indígenas parar de escrever, eles começam a seguir, após ouvir inúmeras histórias da mãe de Mimi. Bernie não se cansa de falar sobre o tio Leroy, que após ser expulso do lugar que vivia junto a família, foge levando uma bolsa Crow, também conhecida como medicine bundle, uma espécie de sacola onde são guardados itens familiares capazes de conectar a pessoa a sua ancestralidade, utilizado em rituais indígenas.
A gente não começa conversa nenhuma. Mas a gente poderia.
Conforme este tio se perde pelo mundo, envia postais para a família, e são estes postais que Mimi utiliza para convencer Bird, um homem nada apaixonado por viagens, a refazer o caminho do ancestral e quem sabe descobrir mais sobre o que aconteceu com ele.
E o último destino desta viagem é a cidade de Praga, local onde mais do que pontos turísticos, o leitor é levado ao vai e vem entre o passado de Bird e o seu presente, além de ser apresentado aos seus demônios pessoais.
A escrita de Thomas King
Em uma história que mistura tradições, a busca pela própria identidade, memórias, dúvidas e fantasmas, tudo com pitadas de autobiografia, fatos reais, além é claro da pura ficção, a narrativa escolhida foi a em primeira pessoa, onde toda a perspectiva é nos dada por Bird.
Entre pontos turísticos e caminhadas, Bird nos apresenta a desesperança em relação as questões indígenas após trabalhar quarenta anos tentando fazer alguma diferença - e neste momento é impossível não se perguntar o que Bird acharia dos acontecimentos recentes na Amazônia -, onde ele traz entre suas memórias alguns fatos reais como a morte de um indígena por frio em 1984 e as escolas residenciais no Canada onde cerca de 150 mil crianças indígenas foram levadas para aprenderem a cultura do país.
Portanto, estamos em Praga, a noite chegou e nós estamos perdidos.
E se alguém imagina que as férias de um casal de indígenas são muito diferentes de qualquer casal branco padrão, irá se enganar completamente, pois exceto pela sua busca por pistas do tio Leroy, seus passeios e escolhas gastronômicas demonstram que a nossa ancestralidade não tem mais influência do que os nossos hábitos cotidianos no estilo de viagem.
Algo que já não ocorre na narrativa, já que a repetição de palavras e frases, sim, o Portanto estamos em Praga parece seguir ecoando muito tempo após finalizar a última página, remete a repassagem de histórias e culturas de forma oral, uma técnica em que o ouvinte grave o que ouviu e depois repasse com facilidade.
Portanto, estamos em Praga e, enquanto caminhamos de volta para o hotel, a neblina toma conta da paisagem.
Aliás, este Portanto estamos em Praga também é usado como um recurso bem interessante de retorno ao presente. Toda vez que Bird se perde em lembranças ou assistindo as discussões de seus demônios, a frase surge para retornar a todos ao momento atual. As vezes soando de forma blasé, outras de puro tédio ou desinteresse, já que para o viajante em questão tudo o que se vê também é encontrado em Guelph, local onde fica a sua casa no Canadá.
A única coisa que não ficou em casa e é uma constante na narrativa são os demônios de Bird. Eugene, Kitty, Didi, Desi e Chip podem ser velhas conhecidas de vocês, leitores do blog, embora elas estejam disfarçadas por nomes e possuem até uma descrição física, já que são quatro demônios que interagem entre eles nos momentos em que Bird baixa a guarda e está mais vulnerável.
O homem achava que podia conversar com Deus quando, na verdade, estava apenas murmurando para si mesmo.
Mais conhecidas por autodepreciação, catrastrofizar, depressão, desesperança e sensibilidade extrema, elas são presenças frequentes nos capítulos. Marcando medos, remorsos, arrependimentos, ou aquele sentimento de não ter feito algo a mais no lugar de desistir.
Obviamente, não poderia faltar a desconstrução do estereótipo ao mesmo tempo que se mostra os preconceitos não só com os indígenas, mas com todos os que se acreditam que não deveriam estar ocupando aquele espaço, como é o caso dos imigrantes recém chegados a Europa e encontrados apertados e apartados em uma estação de metrô pelo nosso casal de turistas.
O que eu achei....
Eu achei o livro muito interessante, a história traz vários temas pertinentes, como a busca pela identidade, as tradições, memórias, tudo em meio a descrições de ruas, monumentos e pratos de comida.
Gostei também da descrição da cidade, com direito a um dos tradicionais golpes que tentam aplicar nos turistas. E para quem gosta de viajar, o personagem principal - e narrador - as vezes é muito irritante, pois no lugar de admirar as belezas dos locais ele sempre acha que tem tudo igual na cidade dele, e não precisava estar ali. O que me vez invejar a paciência da Mimi.
Autodepreciação, depressão e desesperança. Um popular e poderoso ménage à trois.
Mas a história pra mim também foi uma leitura bem cansativa, por ser linear. Não existem fatos que movimentam a narrativa, mas uma série de reflexões e dúvidas sobre o que realmente vale a pena, e como isso impacta em trazer à tona os demônios que carregamos escondidos.
Foi o tipo de livro que me faz ter a necessidade de ter uma outra leitura em paralelo, para não desistir da história e também não ler correndo, perdendo assim as suas inúmeras reflexões. Então sim, gostei de Indígenas de Férias, do desejo que ele me despertou em ir a Praga e de rir com Mimi.
Indígenas de Férias
Indians on vacation
Thomas King
Tradução: Davi Boaventura
TAG - Dublinense
2020 - 320 páginas
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Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.
Divagando com Spoiler
Esta parte aqui é para quem já leu o livro e quer saber um pouco mais da opinião de quem já finalizou a leitura. Então se você não gosta de saber nenhum detalhe a mais, não siga a leitura. Caso contrário, fique à vontade para descobrir quais foram os ecos que a leitura me deixou após eu fechar a última página.
Por causa dos demônios aos quais estão em constante movimentação junto de Bird, uma dúvida acabou persistindo mesmo após o fim da leitura: o personagem Oz, que Bird encontrava em todos os cafés da manhã no hotel, era real ou imaginário? E se ele era imaginário, seria um álter ego do narrador? Já que ele acaba recriando a história do tio Leroy?
O problema com os seres humanos é que nós podemos descrever nossos impulsos. A gente só não consegue explicar o porquê.
E se ele for real, a Mimi era imaginária? Já que os dois nunca se encontravam no café da manhã, seja por Mimi continuar dormindo ou por chegar depois de Oz já ter ido embora. E neste caso Mimi seria o desejo de Bird reencontrar a sua identidade entre os seus ancestrais?
Pois é nítido que a sua desistência do fotojornalismo, principalmente da escrita, vem após em meio a um projeto ele ouvir de uma mulher que a publicação não irá mudar em nada a sua vida, pois ela não traria a sua mãe, uma indígena, de volta. Algo que toca tão fundo o seu coração que o faz desistir de tudo.
Mimi sempre quis visitar Veneza, então procurar pelo seu parente perdido e pela bolsa Crow acabou sendo a desculpa perfeita.
Ou talvez os dois sejam reais e eu esteja apenas vendo pelo em ovo em uma leitura que já possui inúmeras reflexões.
Outra coisa que me surpreendeu muito foi as descrições de algumas situações no Canada. Por algum motivo sempre imaginei o país do tipo comercial de margarina e me surpreendi ao ver relacionados situações que encontramos no Brasil, como pessoas nas sinaleiras pedindo dinheiro. Uma forma de lembrar que não existe lugar perfeito e que a forma de sobrevivência das pessoas possui padrões globais que nem imaginávamos.
Em um campo intitulado Motivo da apreensão, alguém rabiscou uma nota curta, com uma letra cursiva desajeitada: Mãe índia solteira, incapaz de cuidar das crianças.
Uma coisa que achei legal é eles começarem a montar a sua própria bolsa Crow com as lembranças de viagem, e como a ancestralidade de Bird está aflorada, já que ele se incomoda com o material da bolsa.
Falando em incomodar, achei Bird e Mimi um dos casais improváveis que mais combinam, pois a paciência dela em lidar com os sentimentos dele, os ataques de hipocondria - posso estar enganada, mas ele dá toda pinta de ser hipocondríaco - e de como ela consegue convencer ele a sair do casulo apesar da resistência, tornam a personagem fantástica e definitivamente a minha favorita na história.
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