Existe uma frase que diz para o leitor não julgar um livro pela capa. No caso de Luxúria da escritora norte-americana Raven Leilani, nem a capa nem o título. Pois ao contrário do que um leitor desavisado possa imaginar, não se trata de um livro sexy e muito menos recheado de cenas quentes.
A História
Edie é jovem, órfã e divide um apartamento que é uma pobreza só. Enquanto sonha em fazer um curso de artes e faz as suas pinturas em casa, ela trabalha em uma editora. E entre as revisões de livros entra em sites de relacionamento ou tem casos relâmpagos com os seus colegas, sem distinção de cargo. É quando conhece Eric, um homem mais velho, branco, classe média, que foi autorizado pela esposa a ter casos.
Mas o alinhamento dos astros não está a seu favor, e simultaneamente ela perde o emprego e recebe o aviso de sua colega que está indo embora. Sem dinheiro para pagar o aluguel sozinha, ela se vê sem eira nem beira, entrando para o serviço de entregas. E em uma delas ela encontra Rebecca, a médica legista esposa de Eric, que resolve ajuda-la levando Edie para a sua casa.
Da primeira vez que transamos, ambos estamos de roupa, sentados diante das nossas mesas em horário comercial, mergulhados na luz azul da tela do computador.
E assim, esposa, marido, amante e filha adotiva começam a dividir a rotina enquanto tentam encontrar os seus próprios papeis dentro da inusitada situação.
A escrita de Raven Leilani
Utilizando a narrativa em primeira pessoa, toda a visão que temos da história é do ponto de vista de Edie, sendo ele recheado de referências musicais, filmes, séries, games e mundo jovem, o que podem deixar alguns leitores perdidos e buscarem serem salvos pelo Google.
Ao usar um título facilmente associado ao erotismo, a escritora entrega ao leitor uma história recheada de violência, pois Edie foi criada de uma forma a não saber lidar com o amor, e assim não tem nenhum - nem o próprio -, o racismo também é presente, principalmente na figura da adolescente Akila, a menina negra adotada por brancos que aguenta toda a pressão de morar em um bairro branco, frequentar uma escola de brancos, apenas para não ser devolvida mais uma vez.
Eu, por outro lado, tenho uma consciência aguda de todas as maneiras como posso morrer.
Por focar na rotina desta estranha família que se forma de maneira um tanto repentina, Raven Leilani tem uma história linear, com alguns momentos de atração e repulsa entre os personagens, mas sempre vivendo o momento presente, e sabendo muito pouco o que os outros personagens realmente pensam.
Em relação a parte profissional, a história de Edie na editora me lembrou muito um livro já resenhado aqui no blog chamado A Outra Garota Negra, só que neste segundo caso o foco está todo no meio empresarial. Em Luxúria, é uma etapa rápida da vida da protagonista, uma pitada para trazer a questão da diversidade dentro das empresas.
Eu e a menina que mora comigo estamos sustentando uma família de ratos há seis meses.
Outro detalhe interessante na escrita da história é que os homens são meros coadjuvantes, não havendo muito interesse sobre a sua presença ou suas opiniões, mesmo Eric é apenas uma forma de aproximar Edie e Rebecca.
O que eu achei...
Não gostei nem desgostei de Luxúria. Achei a história interessante, mas realmente não me cativou. Inicialmente achei a leitura bastante arrastada, pegando um ritmo e assim, mais fluidez, quando já havia passado das primeiras cinquentas páginas. Mas mesmo assim não foram raras as vezes que eu parei a leitura sem finalizar um capítulo, algo que eu normalmente evito fazer.
Em contrapartida ele poderia ser facilmente uma história real, onde pessoas perdidas se encontram na internet e por um período da vida se tornam uma espécie de família.
Sou boa, mas não boa o bastante, e isso é pior do que só ser ruim.
Mas isso é o eco que a leitura deixou em mim, e como ele tem como base assuntos bem relevantes, como racismo, diferença de classes - o casal é classe média e Eddie muito pobre -, passando pelo que as mulheres abrem mão no seu casamento até o próprio empoderamento feminino, ficando a dica para quem se interessar.
Afinal, gosto não se discute, muito menos o literário, e ao contrário de mim, ele pode muito bem ganhar o seu coração.
Luxúria
Luster
Raven Leilani
Tradução: Ana Guadalupe
Companhia das Letras
2020 - 229 páginas
Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.
Divagando com Spoiler
Esta parte aqui é para quem já leu o livro e quer saber um pouco mais da opinião de quem já finalizou a leitura. Então se você não gosta de saber nenhum detalhe a mais, não siga a leitura. Caso contrário, fique à vontade para descobrir quais foram os ecos que a leitura me deixou após eu fechar a última página.
Creio que um dos motivos que a leitura não me cativou foi a própria protagonista da história, aos vinte e poucos anos ela é o retrato de quem não recebeu as bases adequadas durante a infância, tornando-se uma jovem adulta totalmente perdida, que parece não buscar uma saída para ter uma vida diferente da que vive.
Bate de novo, eu digo, e dessa vez é mais forte.
Ela consegue se relacionar sexualmente com praticamente todos os homens que encontra, o que me fez pensar inicialmente se era uma busca inconsciente pelo trio amor - carinho - atenção, mas em outros momentos, devido a própria criação, ela parece não saber lidar com isso. As cenas em que ela se sujeita por vontade própria a violência física de homens me deixaram na dúvida se Edie gostava ou buscava ser punida por algo que nem ela sabia a razão.
O que é bastante chocante para quem não gosta de nenhum tipo de violência, deixando aquelas interrogações flutuando nas páginas e um certo embrulho no estômago por ela se sujeitar a isso.
Você é a namorada, ela diz, sem ira nem julgamento, o que de certa forma é ainda pior.
Profissionalmente ela acessa sites indevidos em um computador monitorado, o que pra mim enfraqueceu o discurso de cotas de diversidade dentro de uma empresa. Assim como a fúria com o chefe, como se dormir com ele fosse um passaporte de estabilidade.
O sentimento que fiquei em relação a Edie, já que o livro não dá um vislumbre de futuro, é se na convivência com Rebecca e Akila ela conseguiu amadurecer, se aprendeu alguma coisa depois das últimas vivências, ou se ela iria seguir vivendo a vida no ritmo do nada para lugar nenhum.
Sempre há alguma forma de documentar como conseguimos sobreviver, ou, em alguns casos, como não sobrevivemos.
Falando em Rebecca, confesso que ela foi a grande interrogação do livro pra mim, já que não se sabe o que se passa pela cabeça dela, apenas as suas atitudes, que podem ser contidas, solidarias, repletas de raiva, ou de indefinição pura.
Pois é impossível não sentir curiosidade por uma mulher que não só permitiu ao marido buscar outras mulheres como participou da escolha, que se surpreende com a juventude da amante e em um momento tenso a acolhe em casa, mesmo sabendo que ela já dormiu com o seu marido na sua cama, e não tendo nenhuma obrigação disso.
Eu acordo de manhã e por um instante penso que sou uma pessoa mais feliz, mas em seguida me lembro de onde estou.
Tem também a questão da adoção, Rebecca não tem o desejo da maternidade, e cede ao desejo de Eric ao adotar Akila, mas mesmo assim não consegue ver o que atormenta a menina. Ou, aí entra a minha teoria, a escolha de Edie não foi aleatória desde o início, e ela já via na garota uma chave para entender a própria filha?
Pois sim, é Edie que abre a caixa de pandora que são os problemas cotidianos de Akila. Do não saber cuidar os cabelos até a dificuldade de se enquadrar em um mundo que não lhe abraça.
Mas, quando vejo como ela está decidida, a facilidade com que afirma o que lhe pertence, sinto inveja.
Aliás, o que mais mexeu comigo foi a história de Akila, a menina que está no início da sua vida adolescente e já passou por várias devoluções. A cena da festa de aniversário, que ela não desejava ter e os pais insistiram em fazer é emblemática, quando apenas dois colegas comparecem gerando uma situação de constrangimento e o retrato nítido de como ela é isolada na escola.
Mesmo assim é ela que vê Edie como uma ameaça, pois se ela destruir o casamento dos seus novos pais, a chance de ser devolvida é grande, e ela não só quer, como precisa de estabilidade. Ao mesmo tempo é bonito quando ela começa a se enxergar em Edie, uma referência em um mar de pessoas tão diferentes.
Você deveria agradecer, ela diz, a luz da TV lhe iluminando o rosto, você tem todo o tempo do mundo.
Tudo isso até o choque de ambas serem paradas na porta de casa pela polícia, sendo humilhadas só por estarem em um bairro que na cabeça dos ignorantes elas não deveriam pertencer. E aqui temos o racismo pulsante e escancarado, doentio e vergonhoso, ao qual ainda não inventaram vacina ou remédio para curar.
Ficando assim a grande interrogação de como aqueles meses impactaram na vida das três mulheres, se tudo continuaria igual ou elas teriam uma nova visão em relação as suas vidas, tanto do lado profissional quanto no pessoal.
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