terça-feira, 28 de julho de 2020

Sul da fronteira, oeste do sol



Sinopse: Na primeira semana do primeiro mês do primeiro ano da segunda metade do século XX, ao protagonista, que também faz o papel de narrador, é dado o nome de Hajime, que significa começo. Filho único de uma normal família japonesa, Hajime vive numa província um pouco sonolenta, como normalmente todas as províncias o são. Nos seus tempos de menino faz amizade com Shimamoto, também ela filha única e menina brilhante na escola, com quem reparte interesses pela leitura e pela música. Juntos, têm por hábito escutar a coleção de discos do pai dela. Mas o destino faz com que os dois companheiros de escola sejam obrigados a separar-se. Os anos passam, Hajime segue a sua vida. A lembrança de Shimamoto, porém, permanece viva, tanto como aquilo que poderia ter sido como aquilo que não foi. 


O livro de julho da TAG Curadoria sempre tem algo de especial, pois é a edição de aniversário da empresa. Sem curador, a obra Sul da Fronteira, oeste do Sol é um livro inédito no Brasil do escritor japonês Haruki Murakami. O projeto gráfico ficou muito bonito e a história é uma mistura interessante de simplicidade com profundidade.

Hajime nasceu em um Japão pós-guerra, filho único, vive em um subúrbio de classe média e se sente incomodado com os adjetivos dados aos filhos únicos, em uma época que a norma era cada casal ter entre dois ou três filhos. Filhos únicos eram raros, e por isso sua conexão com uma menina chamada Shimamoto foi muito fácil, pois ela também era filha única.

Naquele mundo, reinava a inabalável crença de que os filhos únicos são crianças mimadas pelos pais, franzinas e terrivelmente egoístas.

Logo descobriram vários gostos em comum, inclusive pela música, quando se encontravam na casa de Shimamoto era hábito escutarem os Lp's do seu pai, um deles era o de Nat King Cole, que tem uma faixa chamada "South of the Border", e assim a música que fala sobre a fronteira com o México teve os seus horizontes ampliados e se tornou a primeira parte do nome deste livro.

Mas Hajime precisou se mudar de cidade e escola, e embora a distância entre eles não fosse grande, ele achava que não seria mais bem aceito na casa do seu primeiro amor e as visitas foram se tornando escassas até não acontecerem mais. Seguindo o fluxo da adolescência ele acabou fazendo novos amigos e com o tempo a sua primeira namorada, chamada Izumi. Essa relação será caracterizada por descobertas e mágoas.

E acho que mantive, por muito tempo, um pedaço do meu coração vazio, destinado especialmente para ela.

Estas duas meninas acabam ocupando a sua mente anos depois, com quase quarenta anos, casado e com duas filhas, Hajime parece ter a vida perfeita, mas um vazio que o faz querer outro tipo de vida, e essa angústia que aflige o mundo interior irá trazer a segunda referência do título: "oeste do sol" se refere à histeria siberiana provocada pela paisagem desértica.

A história de Haruki Murakami é narrada em primeira pessoa, a escrita é fluída e muito rápida, tornando a leitura  muito fácil, mas nem por isso simples. Principalmente quando uma linha tênue parece separar a realidade da fantasia.

Que fora uma espécie de fenômeno físico, magnético, e que eu sequer sentira que a estava traindo.

Através de seus personagens muitos questionamentos surgem, do que escolhemos para fazer em nossas vidas, oportunidades, machismo, o papel da mulher, desejo de viver e vontade de morrer. E por isso sua leitura se torna profunda, e o leitor precisa mergulhar para perceber além da superfície.

Um exemplo é o comportamento machista do personagem, que sente dificuldade em dar voz as mulheres de sua vida. Aqui é necessário lembrar que estamos lendo sobre uma cultura diferente, em uma época distante, onde as mulheres caminhavam atrás de seus maridos. Não estou defendendo o personagem, que em alguns momentos não é um exemplo de simpatia, mas sinalizando que aqui, mais do que nunca, precisamos abrir a mente e lembrar que não estamos lendo sobre os dias atuais.

Repeti muitas vezes o mesmo processo: criar uma teoria e depois desistir dela.

Sobre ter empatia com o personagem, se Hajime for colocado em um tribunal virtual dos tempos atuais, ele será massacrado. Mas o personagem de Haruki Murakami é extremamente humano em seus questionamentos existenciais, e não, isso não o torna bom e muito menos justifica o seu egoísmo, mas em alguns momentos ele pode criar alguma identificação com o leitor, trazendo uma memória de infância, os primeiros amores, um emprego que não levava a nada, até mesmo a vontade de jogar tudo para o alto e recomeçar uma vida totalmente diferente.

A mistura destes sentimentos está simbolizada em paisagens aos quais Hajime compartilha enquanto conta a sua história, podendo ser um deserto como sinônimo de sua eterna solidão. Ou através da água, que marca presença no nome da primeira namorada Izumi, cujo significado é "nascente de água", através da chuva que marca as cenas de espera, ou através dos rios em movimento.

O vazio continuava sendo apenas um vazio.

E são estes questionamentos que trazem as maiores dúvidas sobre o que é realidade e o que é fantasia na vida de Hajime, em uma espécie de jogo, Murakami coloca elementos nas situações em que muitas vezes eu não sabia se era para dizer sim, isto está acontecendo, ou não, você está na versão literária japonesa do filme O Clube da Luta.

Como extra na leitura, há muitas referências musicais para quem curte montar uma playlist enquanto lê, há também referências cinematográficas e biográficas, já que Murakami e sua esposa Yoko tiveram um bar de jazz chamado Peter Cat.

Eu, que nunca havia lido nada de Murakami, adorei a história e o estilo de escrita. Uma leitura que ficou ecoando na minha cabeça mesmo após concluir a última página, onde exerci a liberdade de responder por conta própria os pontos de interrogação que ficaram.

Sul da fronteira, oeste do sol
Kokkyo no Minami, Taiyo no Nishi
Haruki Murakami
Tradução: Rita Kohl
TAG Curadoria - Alfaguara
1992 - 229 páginas

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A Rede de Alice



Sinopse: Neste romance histórico hipnotizante, duas mulheres - uma espiã recrutada para a Rede de Alice, esquema real que ocorreu durante a Primeira Guerra Mundial, e uma universitária americana que busca sua prima ao final da Segunda Guerra - são unidas em uma história de coragem e redenção.

Para escrever este livro sobre mulheres, Kate Quinn foi buscar inspiração em um real esquema de espionagem montado em 1915 chamado A Rede de Alice. Composto em sua maioria por mulheres, o grupo de oito pessoas coletava informações sobre tropas e ocupações alemãs na Bélgica, França e Holanda para os ingleses durante a I Guerra Mundial.
A primeira pessoa que encontrei na Inglaterra foi uma alucinação.

Na versão de Quinn, a Europa tenta colar os seus cacos em 1947 após o final da 2 Guerra Mundial quando a jovem Charlie faz escala na Inglaterra com a mãe. A estudante de matemática está sendo levada a Suíça para um compromisso especialmente delicado para uma família americana endinheirada: realizar o aborto de uma criança sem pai.

Mas a escala não é por acaso, pois o pequeno problema como Charlie chama o seu bebê não é a maior das suas preocupações, contrariando tudo o que dizem as investigações do seu pai, que acredita que a sua prima francesa Rose está morta, ela tem esperanças contrárias e quer descobrir a verdade. Sua certeza é tanta, que ela enxerga a prima em todos os lugares, tornando a busca uma obsessão para ela. Afinal, ela acabou de perder o irmão, ao qual se culpa por não ter conseguido salvar, e isso acentua a necessidade de reencontrar a sua companheira nas melhores memórias da infância.

Uma dama não joga baralho.

Realizando as suas próprias investigações ela chega em um nome e em um endereço. O que a faz fugir da mãe e ir para Londres encontrar Eve Gardiner. A mulher é muito diferente das pessoas com quem está acostumada a conviver: bêbada, com as mãos deformadas e desbocadas, Eve aponta uma arma para a cabeça de Charlie a noite, mas a luz do dia acaba aceitando a oferta do serviço de iniciar as buscas a Rose.

Eve é quem irá levar o leitor através de suas lembranças a 1915, quando é convidada pelo capitão Cameron - personagem baseado em uma pessoa real - para integrar a rede. Acompanhamos o seu treinamento e sua ida a França, quando os desafios da vida de espiã vão exigir o corpo e a alma de Eve, que agora atende ao pseudônimo de Marguerite.

O senhor não precisa do consentimento de ninguém a não ser do meu.

Quem leva estas duas mulheres para percorrer a França é Finn Kilgore, um ex-soldado apaixonado por carros que virou um faz tudo de Eve. Perseguido por suas experiências na guerra, ele também terá a oportunidade de repensar muitas coisas durante a busca de Rose, que acaba se tornando a busca por si para cada um deles.

Dividido em quatro partes, misturando narrativa em terceira e primeira pessoa, conforme a visão que Quinn deseja dar aos seus leitores, A Rede de Alice foi um livro que me encantou. Os obstáculos enfrentados pelas mulheres, começando pela dificuldade de Charlie em sacar o dinheiro da própria conta por não estar acompanhada de um marido, passando pelo desdém de homens que poderiam ter encerrado a primeira guerra muito antes se tivessem acreditado nas informações repassadas por suas espiãs, mostram a força e paciência das mulheres na primeira metade do século XX.

A maioria das mulheres é entediada, porque ser mulher é um tédio.

O livro provoca um misto de sentimentos, principalmente na parte que se refere a Eve e suas companheiras. E isso se torna mais forte ao descobrir que, com exceção da personagem Eve, tanto Louise de Bettignies - a rainha das espiãs - quanto Léonie Van Houtte eram reais. Assim como a tragédia que se abateu na vila de Oradour-sur-Glane, tornando a guerra demasiadamente real para quem nasceu depois dela.

E como um bom livro de espionagem, não poderia faltar um vilão, René Bordelon é um personagem de ficção, mas sua persona sintetiza os aproveitadores e informantes franceses que agradavam os alemães para enriquecer enquanto o restante da população empobrecia. Um homem sem escrúpulos, como muitos que percorreram as ruas na Europa durante as duas grandes guerras.

Somos soldados de vestido, não damas, e precisamos de um maldito cigarro.

E é René que traz a reverência literária mais forte do livro, ao utilizar os poemas de Charles Pierre Baudelaire, o autor parisiense que foi processado por atentado aos bons costumes nos anos de 1800 e um dos percursores do simbolismo e da poesia moderna. Durante a leitura, é muito fácil ter uma relação de curiosidade e ódio pelo poeta, já que ele quase sempre antecede cenas de tensão para Eve.

Um livro forte e envolvente, que leva o leitor pela França referenciando locais, músicas e poesias. E também pelas escolhas de guerra e as cicatrizes que elas deixam no corpo e na alma. O conjunto é uma leitura realmente prazerosa, e para ser ainda mais completa, não deixe de ler as notas da escritora ao final da história.

A Rede de Alice
The Alice Network
Kate Quinn
Tradução: Rogério Alves
TAG - Verus Editora
2017 - 527 páginas

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Antes de Dormir



Sinopse: A memória nos define. Como seria, então, se você a perdesse toda vez que dormisse? Seu nome, sua identidade, seu passado, até mesmo as pessoas que você ama... tudo seria esquecido da noite para o dia. E a única pessoa em quem você confia talvez esteja contando apenas parte da história.

Christine tem o mesmo problema de perda de memória que a personagem Lucy do filme "Como se fosse a primeira vez". Por este motivo todos os dias quando acorda, ela não sabe onde está nem quem é o homem deitado ao seu lado.  Ben, que é o seu marido, colou fotos dos dois no banheiro, já que é o primeiro lugar que ela vai ao se levantar. E todos os dias repassa o diálogo explicando que ela sofreu um grave acidente e esquece tudo o que acontece durante o dia quando dorme. Mas isso não lhe tira a sensação de estar usando roupas de outra pessoa e de não ser a mulher que vê no espelho.

Não sei onde estou, nem como vim parar aqui.

Mas ao contrário da comédia romântica, a história já mostra para o leitor no primeiro capítulo  que ele entrou em um suspense, e que as coisas podem não ser bem o que é contado para a personagem central da história. Tudo começa após Ben sair para trabalhar, enquanto Christine tenta se ambientar o telefone toca, do outro lado quem fala é um homem que se identifica como seu médico, ao qual ela tem realizado consultas escondidas do marido.


O Dr. Nash é um neuropsicólogo que está escrevendo um artigo e busca entender o que aconteceu com a memória de Christine, através de exames e dinâmicas, que incluem desde fotos que ele encontra até lugares que ela já teria passado. Sem querer isso acaba abrindo hipóteses para além de um acidente, mas para a possibilidade de a amnésia ser na verdade o resultado de um trauma psicológico. Com isso ele lhe dá um diário, para que ela passe a escrever os detalhes do seu dia, como forma de exercício para tentar recuperar suas lembranças. E é justamente o diário quem traz o primeiro aviso que deixa todos em alerta: Não confie em Ben.

Mas nunca vi você, sinto vontade de dizer.

A narrativa de S.J. Watson está concentrada quase toda neste diário, já que temos um capítulo de início e mesmo os finais se utilizam dele para o desfecho. Dividido por datas, conforme Christine acorda todos os dias, o lê e o abastece com informações, novas imagens e perguntas surgem, fazendo com que ela e o leitor comecem a questionar tanto a história contada por seu marido quanto as próprias lembranças de Christine. Ao mesmo tempo observamos que ela já não está mais esquecendo absolutamente tudo, pequenas migalhas de lembrança em meio a escuridão.

E nisso surgem vários pontos de interrogação. Será tudo imaginação em um esforço de tentar levar uma vida normal? Já que ela é totalmente sozinha e dependente de Ben, e com exceção do médico, parece que não há ninguém que se preocupe com ela. Ou será que ela corre algum tipo de perigo, já que ela não se lembra do dia anterior?

Seu padrão de sintomas não indica que suas memórias estejam perdidas para sempre.

Antes de Dormir é bem escrito e envolvente. As formas como as pontas vão se ligando atiçam o lado de quem gosta de bancar o detetive, ao mesmo tempo que impulsionam ler mais uma página para ver o que irá acontecer. Sim, ele te obriga a ler rapidamente, pois mesmo nos intervalos de leitura você pode se pegar pensando em como completar o quebra-cabeça desta história.

E para quem gosta de ler o livro e assistir ao filme - algo que eu não fiz - ele é estrelado pela Nicole Kidman, tendo Colin Firth como Ben (eu jurava que ele era o Doutor) e Mark Strong.

Alerta de spoiller
Eu não poderia finalizar a resenha sem descrever o que mais me afetou no livro. Enquanto Christine buscava juntar as peças na sua memória, o leitor se dá conta que ela não era sozinha antes de tudo acontecer e ela não saber onde e com que está. Ela tinha profissão, tinha amigos, tinha família. Mas ela acaba largada em uma clínica, e passados alguns meses, ninguém se preocupou com a saída dela, que era uma vítima fácil devido a sua grande fragilidade. Ela não lembrava, e restava a ela apenas acreditar em quem estava ao seu lado. 

Me fazendo pensar que tudo parecia como um castigo pelo seu envolvimento extraconjugal antes da violência que levou anos da sua vida. E confesso que ao mesmo tempo que isso me incomodou, também me fizeram pensar que a história poderia ter um outro lado, sobre o abandono de quem não consegue mais acompanhar o dia-a-dia dos que são próximos.

Antes de Dormir
Before I go to sleep
S.J. Watson
Tradução Ana Maria Mesquita
Editora Record  
2011 - 398 páginas

terça-feira, 14 de julho de 2020

Todos os nossos ontens



Sinopse: A intriga centra-se em torno de duas famílias da burguesia italiana, que são apanhadas pela guerra, e relata as interferências dos conflitos internacionais nos comportamentos e relações humanas. Os passos da vida naturalmente associados à alegria, como o casamento e a maternidade, tornam-se mais trágicos que a própria morte. Os sentimentos de amor, ódio ou amizade são afetados. Mas também os gestos mais simples, automáticos, como abrir uma porta, usar um vestido, apanhar um comboio, adquirem sentidos inesperados e dramáticos.

O livro de junho da TAG Curadoria foi indicação do escritor Andrés Barba. A autora Natalia Ginzburg é uma das escritoras nas quais Elena Ferrante, um dos grandes nomes da literatura atual, se inspirou ao descrever o lado mais realista do cotidiano italiano.

Escrevia há muito tempo, deixara de ser advogado para poder escrevê-lo.

Logo de início somos apresentados a família de Anna, quatro filhos, pai viúvo e a senhora Maria, que havia viajado pelo mundo com a avó paterna e agora tomava conta da casa. Da mãe, que morreu após o parto da caçula, nada sabemos além da existência da foto na parede. Na frente, uma casa mais luxuosa, onde um empresário vivia com os três filhos e a esposa.

Queriam derrubar os fascistas, começar a revolução.

O pai de Anna tem pavor de Mussolini, do rei e dos fascistas, e ocupa os dias do filho mais velho, chamado Ippolito, escrevendo o seu livro de memórias. Quando o verão chega, querendo ou não, todos devem acompanhar o patriarca até as Amarenas.

Os quatro irmãos diferem bastante entre si. O filho mais velho é silencioso, já a irmã gosta mesmo é de namorar, o outro irmão parece não querer nada com nada e Anna vive acomodada em uma espécie de preguiçoso abandono.

Sempre que a beijava, seu rosto perdia qualquer traço de desprezo e de arrogância.

A rotina da família começa a mudar justamente com a morte do pai e a proximidade da guerra, que acaba formando laços entre os filhos das duas casas. Quando a mesma estoura, as famílias vão viver diferentes realidades, e quem irá nos fornecer notícias de todos é Anna.

O livro é narrado por uma terceira pessoa que acompanha todas as escolhas da jovem Anna, uma menina que vive por conta, em uma família onde todos parecem cuidar apenas de si. O impacto com a chegada da guerra gera diferentes reações em cada um, entre o medo e o desejo de pegar em armas, cada um dos irmãos opta por seguir o seu próprio caminho e enfrentar ou não os seus medos.

Procuravam também na memória as palavras que dissera. Mas havia dito tão poucas palavras.

A história é dividida em duas partes, onde temos o Norte com suas cidades destruídas e rebeliões, e o Sul, onde temos camponeses sendo saqueados e controlados, vivendo com medo de soldados alemães. Em comum na Itália inteira está a fome, a destruição e o envio de homens para lutar.

A forma de escrita de Natalia Ginzburg me transportava para uma cozinha, onde uma nona fazia pão em um fogão a lenha e me contava a antiga história dos moradores das casas que ficavam no fim da rua. As vezes em frases longas, de perder o fôlego, outras de forma objetiva e com impacto.

Nunca lhe passara pela cabeça desejar um filho, mas visto que tinha um sobrando aceitava-o.

São anos na vida de pessoas comuns, únicas em suas personalidades e sonhos, com defeitos e qualidades, tentando sobreviver em uma situação extrema chamada guerra. Existe solidão, perda, fome, morte, vida, frio, dúvidas e reflexões. Há também atos que podem ser considerados covardes, heroicos, de generosidade e até mesmo de avareza. É o ser humano vendo a rotina de seu cotidiano ser quebrado, para depois os cacos serem juntados pelos que sobraram.

Ao final da leitura fui tomada de diferentes sentimentos, uma mistura de vazio e tristeza por tudo o que os personagens da história passaram. Uma reflexão de quantos viveram isso, em diferentes condições, e quanto de força foi preciso para recomeçar sem deixar que os fantasmas continuassem a assombrar. Uma dor que começou individual e se tornou coletiva, e jamais pode ser esquecida para que não se repita. 

Todos os nossos ontens
Tutti i nostri ieri
Natalia Ginzburg
Tradução: Maria Betânia Amoroso
TAG - Companhia das Letras
1952 - 327 páginas

quarta-feira, 8 de julho de 2020

A Vida Mentirosa dos Adultos



Sinopse: Em aguardado romance inédito após o sucesso da Tetralogia Napolitana, autora narra os conflitos da adolescência em uma cidade dividida As mudanças no rosto de Giovanna anunciam o início da adolescência e não passam despercebidas em casa. Dois anos antes de abandonar a família e o confortável apartamento no centro de Nápoles, Andrea não se dá conta do que sentencia quando sussurra para a esposa que a filha é muito feia. Essa feiura estética, mas que também indica uma possível falha de caráter, recai sobre Giovanna como uma herança indesejável de Vittoria, a irmã há muito renegada por Andrea. Aos doze anos, a menina vê um rosto no espelho e, embora não compreenda a fundo o peso daquela comparação, sente que algo está irremediavelmente à beira de um abismo. O amor e a proteção oferecidos pelo lar são as primeiras estruturas a desmoronar quando Giovanna decide conhecer a mulher que pode encarnar seu futuro. Os encontros com a tia são o ponto de partida para o embate com inúmeras questões existenciais — é possível pertencer a algum lugar em uma Nápoles de contrastes entre o cinza industrial e sua sociedade rica e instruída? Ou transcender os erros e pecados cada vez mais aparentes de pais outrora perfeitos? Como sobreviver ao despertar do desejo? Ao longo dos anos acompanhamos os percalços da transição da infância protegida de Giovanna a uma adolescência exposta às complexidades daqueles que a cercam, evocando também a possibilidade de levar a vida adulta como nenhuma outra mulher fizera até então. Um romance extraordinário sobre transições, paixões e descobertas.

Com a Covid-19 e o isolamento social, acabei tomando coragem para assinar mais um clube de livros: o da Intrínsecos. E foi com muita felicidade que descobri que o primeiro livro que eu receberia era justamente o novo título da Elena Ferrante, escritora pelo qual me encantei após lera tetralogia napolitana (se você ainda não leu, o meu conselho é leia!). 

Uma família perfeita. Os pais se amam e são companheiros. A filha é obediente, estudiosa e tem no pai a figura de um herói. Mas um dia a borboleta bate as suas asas e tudo se transforma não somente na casa de Giovanna, mas também a sua volta.

O bater de asas aqui é quando Andrea, pai de Giovanna, após saber pela esposa que a filha havia tirado notas ruins afirmou: Não tem a ver com a adolescência: está ficando a cara de Vittoria. Escondida escutando a conversa, ela espera pela defesa da mãe, que não vem.

Nascemos bem-feitas e não devemos desperdiçar isso.

Vittoria é a irmã de seu pai, que assim como os demais parentes paternos é uma desconhecida para Giovanna. A única coisa que ela sabe sobre a tia é o fato da mesma ser sinônimo de feiura e maldade para o seu pai. Em um primeiro momento os sentimentos foram de medo e asco, justamente pelas reações que seus pais tinham em consideração a Vittoria.

Giovanna que já não estava confortável com o início da adolescência, como a menstruação que lhe transmitia a sensação de sujeira, sentiu uma dor muito grande com a comparação, mas como era natural, logo veio a curiosidade e até mesmo um certo desespero em saber como era o rosto da tia.

Ainda hoje tenho curiosidade de saber como nosso cérebro elabora estratégias e as executa sem revela-las a si mesmo.

Da busca por fotografias até o encontro cara a cara com a mulher foi um passo, saindo da redoma da classe média napolitana ela conheceu o subúrbio e o dialeto. Ao mesmo tempo que passa a conviver mais com a tia, ela também se isola dos colegas escola. E logo Vittoria faz com que tudo em sua casa mude, fazendo com que verdades sejam reveladas e suas crenças questionadas.

E sim, a tia Vittoria aqui é o segundo personagem desta história, apesar de não sabermos o que ela realmente pensa. Entre bons e maus conselhos, ela sem querer amplia a visão até então limitada que a sua sobrinha tinha da vida. Com uma personalidade forte e dominadora, sua índole não é muito diferente do pai de Giovanna, com a diferença que o segundo se afastou da vida da periferia.

Se a blasfêmia me permite um pequeno avanço que for, eu blasfemo.

Narrado em primeira pessoa e dividido em sete partes, A Vida Mentirosa dos Adultos trata tanto das mudanças de uma menina em mulher, do estilo de se vestir, o reconhecimento da sexualidade, seus questionamentos sobre religiosidade, as amizades, o primeiro amor até a desmistificação dos adultos que a cercam. No caso de Giovanna, mais do que perder o olhar de herói para os pais, as revelações sobre os mesmos são desagradáveis. Entre a mágoa e o amor, os laços são modificados, e ela precisa descobrir quem é.

Mas apesar da juventude da nossa narradora, não pense que o livro é para adolescentes, pois a leitura é bastante reflexiva. Começando pelo posicionamento das mulheres da história, temos mães, esposas, amigas, viúvas e amantes. A devoção das mulheres adultas pelos homens é bem curiosa, um amor que resiste as mentiras, e norteiam o seu modo de vida.

E certamente também me treinou, queria que eu fosse como ele, até eu decepcioná-lo.

Da mesma forma a relação dos homens com as mulheres, que vão do respeito a violência física, do olhar lascivo de um homem mais velho para o corpo de uma jovem, do rapaz que bate na namorada por se sentir pressionado, ao fato de que todos são infiéis.

A escrita de Elena Ferrante é fluída, tornando o livro fácil e rápido de ler. A história possui um bom ritmo, do tipo que algumas vezes você se pega pensando por que raios Giovanna está tendo determinado comportamento, ao mesmo tempo que em outros tem vontade de lhe dizer que é normal sentir tantas incertezas. 

Eu não estudo, sou reprovada e sou uma vadia.

Entre as leitoras femininas, não é difícil se identificar com um ou mais momentos da personagem, seja na mudança de opinião em relação aos adultos, seja as situações vividas em uma fase nem sempre tão fácil chamada adolescência.

Sobre a edição da Intrínsecos, gostei bastante. O livro em capa dura veio na cor rosa, o tamanho das letras assim como a distribuição do texto na página facilita que o leitor tenha como foco somente a história. De mimo mais uma ecobag para a minha coleção. Aprovei, fiz o plano anual para formar a minha opinião definitiva, então agora vocês terão resenhas de dois clubes de livros no blog. Lembrando que nenhum é patrocinado, ambos são pagos na totalidade pela leitora aqui.

A vida mentirosa dos adultos
La vita bugiarda degli adulti
Elena Ferrante
Tradução: Marcello Lino
Editora Intrínseca
2019 – 429 páginas

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Os Sete Maridos de Evelyn Hugo



Sinopse: Lendária estrela de Hollywood, Evelyn Hugo sempre esteve sob os holofotes - seja estrelando uma produção vencedora do Oscar, protagonizando algum escândalo ou aparecendo com um novo marido... pela sétima vez. Agora, prestes a completar oitenta anos e reclusa em seu apartamento no Upper East Side, a famigerada atriz decide contar a própria história - ou sua "verdadeira história" -, mas com uma condição: que Monique Grant, jornalista iniciante e até então desconhecida, seja a entrevistadora. Ao embarcar nessa misteriosa empreitada, a jovem repórter começa a se dar conta de que nada é por acaso - e que as suas trajetórias podem estar profunda e irreversivelmente conectadas.

Comprei este livro sem prestar atenção na sinopse, mais pela curiosidade do título. E acredito que ele não pegue a verdadeira essência da história, o que pode desinteressar o eleitor mais desavisado. Os Sete Maridos de Evelyn Hugo é uma história de amor, da paixão, de separações, da alegria de sentir o cheiro do cabelo e as dores de não poder revelar para o mundo quem realmente está ao seu lado.

A escritora Taylor Jenkins Reid mistura notas de jornais, a narrativa de Evelyn - que compõe a maior parte do livro - e a história secundária de Monique. Sendo as duas últimas em primeira pessoa. Não há a visão de outros personagens, apenas as duas conversando e retornando ao passado, enquanto este também define presente e futuro.

Tinha ido para Hollywood, mudado de nome, perdido o sotaque e dormido com todo mundo que precisou para conseguir o que queria.

O início da história, quando Evelyn conta como abriu o seu espaço em Hollywood me fez recordar outro livro do gênero, lido durante a adolescência - também conhecido como ontem - chamado Um Estranho no Espelho do escritor Sidney Sheldon, onde o início de carreira de uma atriz depende de diferentes talentos.

Os capítulos do livro são divididos pelos nomes e adjetivos de seus sete maridos. O primeiro nos conta toda a mudança da jovem órfã de mãe que se casa em busca de um sonho, e uma vez em Hollywood tem uma rápida ascensão. Das mudanças de cabelo até o abandono do espanhol - ela é cubana - até a separação e o novo marido, onde ela tem um misto de paixão e conveniência.

Você imagina um mundo em que vocês duas possam sair para jantar juntas num sábado à noite sem que ninguém te julgue.

Quando a história retorna ao presente, temos uma Evelyn que conserva o carisma e o glamour, e a vida particular de Monique, que está em um momento confuso e acaba encontrando caminhos através da biografia de Evelyn.

Adorava a sensação de ter alguém para cuidar de mim, e de ter alguém para cuidar.

Mas ao contrário do que se possa imaginar, o livro não tem nada de fútil. Do estereótipo feminino, passando pela violência física sofrida pelas mulheres, homossexualismo e bissexualismo, até o que você é capaz de fazer por amor.

A penúria era tanta que a gente roubava eletricidade do vizinho de cima.

O amor aqui não são os sete homens que dão o nome aos capítulos, e não, isso não é um spoiller, pois cedo isso é contado no livro. A verdadeira história de Evelyn é o seu amor correspondido por outra estrela do cinema Celia St. James.

O sexo é só um ato. Já a sexualidade é uma expressão sincera de desejo e prazer.

Elas se conhecem no final da década de 1950, em uma época que assumir o relacionamento das duas seria enterrar ambas as carreiras. Se Celia aceita abrir mão de tudo, Evelyn já não quer perder o que lutou tanto para conquistar, e assim elas vivem um relacionamento escondido, marcado por separações, brigas e questionamentos.

Um casamento nada mais é que uma promessa.

A história é muito bonita, existe uma delicadeza na escrita que fazem o leitor torcer pelas duas. Assim como tentar entender e as vezes questionar junto com Monique as escolhas de Evelyn.

Para ela, eu era lésbica nos bons momentos e hérero nos maus.

Já há ligação de Evelyn com Monique faltou algo pra mim, embora semeado desde o início do capítulo, entre a revelação e resolução me incomodou um pouco, não me convencendo como leitora, já que haviam outros bons elementos para justificar a escolha da então anônima jornalista.

Quando a pessoa é conhecida principalmente por ser maravilhosa, não pode haver sofrimento pior do que ser comparada com alguém e levar a pior.

Mas isso não atrapalha em nada a história, e o veredito final é que gostei muito da história e recomendo a sua leitura, cuja narrativa fluída torna fácil e rápida, mas não facilmente esquecida.

Os Sete Maridos de Evelyn Hugo
The Seven Husbands of Evelyn Hugo
Taylor Jenkins Reid
Tradução: Alexandre Boide
TAG – Paralela
2017 – 411 páginas