terça-feira, 28 de julho de 2020

Sul da fronteira, oeste do sol



Sinopse: Na primeira semana do primeiro mês do primeiro ano da segunda metade do século XX, ao protagonista, que também faz o papel de narrador, é dado o nome de Hajime, que significa começo. Filho único de uma normal família japonesa, Hajime vive numa província um pouco sonolenta, como normalmente todas as províncias o são. Nos seus tempos de menino faz amizade com Shimamoto, também ela filha única e menina brilhante na escola, com quem reparte interesses pela leitura e pela música. Juntos, têm por hábito escutar a coleção de discos do pai dela. Mas o destino faz com que os dois companheiros de escola sejam obrigados a separar-se. Os anos passam, Hajime segue a sua vida. A lembrança de Shimamoto, porém, permanece viva, tanto como aquilo que poderia ter sido como aquilo que não foi. 


O livro de julho da TAG Curadoria sempre tem algo de especial, pois é a edição de aniversário da empresa. Sem curador, a obra Sul da Fronteira, oeste do Sol é um livro inédito no Brasil do escritor japonês Haruki Murakami. O projeto gráfico ficou muito bonito e a história é uma mistura interessante de simplicidade com profundidade.

Hajime nasceu em um Japão pós-guerra, filho único, vive em um subúrbio de classe média e se sente incomodado com os adjetivos dados aos filhos únicos, em uma época que a norma era cada casal ter entre dois ou três filhos. Filhos únicos eram raros, e por isso sua conexão com uma menina chamada Shimamoto foi muito fácil, pois ela também era filha única.

Naquele mundo, reinava a inabalável crença de que os filhos únicos são crianças mimadas pelos pais, franzinas e terrivelmente egoístas.

Logo descobriram vários gostos em comum, inclusive pela música, quando se encontravam na casa de Shimamoto era hábito escutarem os Lp's do seu pai, um deles era o de Nat King Cole, que tem uma faixa chamada "South of the Border", e assim a música que fala sobre a fronteira com o México teve os seus horizontes ampliados e se tornou a primeira parte do nome deste livro.

Mas Hajime precisou se mudar de cidade e escola, e embora a distância entre eles não fosse grande, ele achava que não seria mais bem aceito na casa do seu primeiro amor e as visitas foram se tornando escassas até não acontecerem mais. Seguindo o fluxo da adolescência ele acabou fazendo novos amigos e com o tempo a sua primeira namorada, chamada Izumi. Essa relação será caracterizada por descobertas e mágoas.

E acho que mantive, por muito tempo, um pedaço do meu coração vazio, destinado especialmente para ela.

Estas duas meninas acabam ocupando a sua mente anos depois, com quase quarenta anos, casado e com duas filhas, Hajime parece ter a vida perfeita, mas um vazio que o faz querer outro tipo de vida, e essa angústia que aflige o mundo interior irá trazer a segunda referência do título: "oeste do sol" se refere à histeria siberiana provocada pela paisagem desértica.

A história de Haruki Murakami é narrada em primeira pessoa, a escrita é fluída e muito rápida, tornando a leitura  muito fácil, mas nem por isso simples. Principalmente quando uma linha tênue parece separar a realidade da fantasia.

Que fora uma espécie de fenômeno físico, magnético, e que eu sequer sentira que a estava traindo.

Através de seus personagens muitos questionamentos surgem, do que escolhemos para fazer em nossas vidas, oportunidades, machismo, o papel da mulher, desejo de viver e vontade de morrer. E por isso sua leitura se torna profunda, e o leitor precisa mergulhar para perceber além da superfície.

Um exemplo é o comportamento machista do personagem, que sente dificuldade em dar voz as mulheres de sua vida. Aqui é necessário lembrar que estamos lendo sobre uma cultura diferente, em uma época distante, onde as mulheres caminhavam atrás de seus maridos. Não estou defendendo o personagem, que em alguns momentos não é um exemplo de simpatia, mas sinalizando que aqui, mais do que nunca, precisamos abrir a mente e lembrar que não estamos lendo sobre os dias atuais.

Repeti muitas vezes o mesmo processo: criar uma teoria e depois desistir dela.

Sobre ter empatia com o personagem, se Hajime for colocado em um tribunal virtual dos tempos atuais, ele será massacrado. Mas o personagem de Haruki Murakami é extremamente humano em seus questionamentos existenciais, e não, isso não o torna bom e muito menos justifica o seu egoísmo, mas em alguns momentos ele pode criar alguma identificação com o leitor, trazendo uma memória de infância, os primeiros amores, um emprego que não levava a nada, até mesmo a vontade de jogar tudo para o alto e recomeçar uma vida totalmente diferente.

A mistura destes sentimentos está simbolizada em paisagens aos quais Hajime compartilha enquanto conta a sua história, podendo ser um deserto como sinônimo de sua eterna solidão. Ou através da água, que marca presença no nome da primeira namorada Izumi, cujo significado é "nascente de água", através da chuva que marca as cenas de espera, ou através dos rios em movimento.

O vazio continuava sendo apenas um vazio.

E são estes questionamentos que trazem as maiores dúvidas sobre o que é realidade e o que é fantasia na vida de Hajime, em uma espécie de jogo, Murakami coloca elementos nas situações em que muitas vezes eu não sabia se era para dizer sim, isto está acontecendo, ou não, você está na versão literária japonesa do filme O Clube da Luta.

Como extra na leitura, há muitas referências musicais para quem curte montar uma playlist enquanto lê, há também referências cinematográficas e biográficas, já que Murakami e sua esposa Yoko tiveram um bar de jazz chamado Peter Cat.

Eu, que nunca havia lido nada de Murakami, adorei a história e o estilo de escrita. Uma leitura que ficou ecoando na minha cabeça mesmo após concluir a última página, onde exerci a liberdade de responder por conta própria os pontos de interrogação que ficaram.

Sul da fronteira, oeste do sol
Kokkyo no Minami, Taiyo no Nishi
Haruki Murakami
Tradução: Rita Kohl
TAG Curadoria - Alfaguara
1992 - 229 páginas

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