terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Uma tristeza infinita



Sinopse: Após o fim da Segunda Guerra Mundial, um jovem psiquiatra francês é convidado a trabalhar num isolado hospital suíço, mudando drasticamente de vida. Entretanto, nem assim ele consegue fazer as pazes com os próprios fantasmas. Por meio das conversas com os pacientes, o médico começa a explorar as fronteiras da loucura - e seus próprios limites. Em uma narrativa introspectiva e brutal, Antônio Xerxenesky nos faz encarar os traumas do passado, assim como o atávico medo do futuro.

No ano de 1952, quando o mundo, principalmente a Europa, tenta juntar os seus cacos para retornar ao ritmo de vida normal, o jovem psiquiatra Nicolas se muda junto com sua esposa Anna para uma pequena vila nas montanhas suíças.

O motivo é um hospital psiquiátrico que recebe pessoas traumatizadas com o fascismo, com os traumas da guerra e sentimento de culpa em relação ao seu papel durante todos os últimos anos. O diferencial do lugar é de tentar evitar ao máximo tratar os seus pacientes com tratamentos que mais lembram tortura, como o eletrochoque, estando de acordo com a linha de pensamento de Nicolas, que acredita no poder da psicanálise.


Enquanto a paisagem transmitia imobilidade, os ruídos apontavam para um movimento incessante.


Entre os internados que são encaminhados a Nicolas estão um homem que serviu na Normandia e fala o mínimo possível e já tentou o suicídio usando uma de suas medalhas de guerra. Já Mary vive em melancolia, rói as unhas e não consegue dormir, uma mulher que trabalhou em Los Alamos e agora sonha com as vítimas que as bombas atômicas atingiram.

Mas também Nicolas apresenta sinais de melancolia, e ao repassar os seus últimos anos nem sempre se sente à vontade. A soma de tudo faz o ambiente ficar ainda mais pesado e assim Anna arruma um emprego em Genebra, para ter um pouco de alívio e ao mesmo tempo conciliar o seu casamento.


É física. Essa tristeza. É insuportável. Não aguento mais. Eu só preciso da sua ajuda.


Os personagens

O casal Nicolas e Anna são o centro da narrativa, mas é através deles que entramos em contato com diferentes pacientes, médicos, enfermeiras e moradores da região.

E isso é o bacana, ao mesmo tempo que eles abrem a janela para discussões interessantes sobre ciência, religião, psiquiatria, melancolia, depressão, histeria e culpa, ambos são muito humanos.


Seria a melancolia também contagiosa, transmissível como o vírus da gripe?


Sendo muito fácil observar como Anna tenta equilibrar os maus momentos de Nicolas, que não são novidades em sua vida, ao mesmo tempo que busca algo que a impulsione e não o faça abandonar. Ao dedicar-se para a sua carreira, ela diretamente se dedica ao próprio relacionamento, não deixando espaço para que a melancolia também a invada.

Já Nicolas vive com sombras do passado, em alguns momentos questionando a sua sorte, por ter passado ileso durante os anos mais críticos da guerra. Assim como é curioso ele se ver nas descrições dos próprios pacientes, absorvendo e vivendo as suas próprias visões. Sendo nítido que ele também precisava de alguém profissional para conversar, já que é muito mais fácil ter uma visão de fora do que quando se está no centro dos acontecimentos.


A sua má vontade com a ciência é chocante para um suposto homem de ciência.


A escrita de Antônio Xerxenesky

Usando a narrativa em terceira pessoa Antônio Xerxenesky coloca o leitor lado a lado na vida de Nicolas, acompanhando toda a sua rotina e pensamentos sem que o mesmo se sinta distante dos personagens.

A escolha do período do inverno em um lugar distante, onde a civilização parece estar a quilômetros e os atrativos são mínimos, combinam com a alma dos pacientes, que em muitos momentos se entregam totalmente nos braços de suas próprias tristezas.


Não era absurdo pensar que nunca seriam felizes de novo daquela maneira.


Tristezas que encontram eco no psiquiatra Nicolas, cujos sentimentos e dúvidas não são estranhas para quem já se interessou pelos mistérios da mente ou para quem compartilha, seja convivendo ou vivendo, esta mistura de medo e busca constante por si mesmo.

Além disso, ele trata de uma forma muito gentil as questões éticas do pós-guerra, como aceitar ou não pessoas simpatizantes do nazismo e do fascismo, quanto há médicos judeus e outros que não conseguem se imaginar ajudando quem ajudou a matar muitas pessoas – as vezes da sua própria família - sem um pingo de humanidade.


Depois de ver a maldade humana expor seu rosto de um jeito tão escancarado, me parece quase impossível retornar a qualquer espécie de normalidade.


O que eu achei....

Eu que não conhecia o escritor, que por sinal é meu conterrâneo, gostei muito deste primeiro contato com a sua escrita, que é fluída mesmo com todo peso melancólico que as palavras carregam entre as páginas.

A melancolia está no título, na clínica, nos pacientes, na casa do Nicolas, no atalho pela floresta, no pequeno bar e as vezes parecia transpassar as páginas e apertar o meu peito, sentindo um pouco da mesma dor.


Ele era um receptáculo para ideias radicais, como todo jovem que se depara com um mentor disposto a se aproveitar da imaturidade alheia.


O que também achei interessante é que o livro traz inúmeras referências da psiquiatria, matemática, física e literatura, sem ficar pedante ou chato. Existe um fluxo natural na existência deles, principalmente nos diálogos, ao qual me peguei ora curiosa ora surpreendida com algumas das colocações.

Um livro que pode mexer com os mais sensíveis, principalmente neste período tão difícil, ao mesmo tempo que pode nos ajudar a refletir sobre o que realmente incomoda.


Por que era tão difícil se levantar, começar o dia? O que havia de tão apavorante fora daquele quarto?


Ficando a dica para quem curte ficções com psicanálise, que envolvem o pós guerra, ou que simplesmente querem ter uma visão diferente das reações causadas pela melancolia. E claro, para quem gosta de ler.


Uma tristeza infinita
Antônio Xerxenesky
Companhia das Letras
2021 - 250 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Partes de um corpo



Sinopse: Coletânea de contos organizada por Rafaela Pechansky, com prefácio de Socorro Acioli. Claudia Tajes - Bile nº 5; Giovana Madalosso - Melanomas; Antonio Prata - Bourbon; Jarid Arraes - Engolir o amor; Tati Bernardi - O dedão de Carolina; Jessé Andarilho - Braço direito; Mel Duarte - Daquela que te alimenta as memórias.

Assim como Partes de uma casa, seu primo Partes de um corpo foi o mimo do kit enviado junto co o livro Gostaria que você estivesse aqui para os associados da Inéditos no mês de maio/21. Feito com exclusividade para a TAG enviar aos seus associados, indica como base comum o corpo e teoricamente deveria acontecer dentro do contexto vivido durante a pandemia de COVID-19.

Quem faz a apresentação dos contos no prefácio é a escritora Socorro Acioli, que compartilha a lembrança ao ver o título do livro de um texto de Gógol chamado O nariz. Fazendo um pequeno resumo não só dos contos, mas também do ato de ler e dos leitores, seu prefácio é bastante agradável e dá o clima de expectativa certo para iniciar a leitura.


Pensar em um nariz como personagem é, no mínimo, uma possibilidade instigante.


Bile Nº 5

Eu adoro os textos da escritora gaúcha Claudia Tajes, como  A Vida Sexual da Mulher Feia já resenhado aqui no blog, então sabia que tudo poderia acontecer.

Confinado em seu apartamento há dois anos para se proteger da pandemia, um casal primeiro observa os vizinhos até direcionar os olhos para o próprio umbigo. Se no início eles se distraiam, agora o tédio dos dias iguais os consome, assim como a encefalopatia hepática consumia a parte do fígado retirado do marido e que agora é conservado em um vidro e exposto na estante.


Dois anos de confinamento obedecidos dia após dia. Sem abrir uma janela.


Narrado em terceira pessoa, Claudia Tajes usa o antes e agora na pandemia, com um toque de sem noção que pode causar as mais diversas reações conforme o espírito do leitor. 


Melanomas

Utilizando a narrativa em primeira pessoa, a autora Giovana Madalosso nos apresenta uma mulher com mais de sessenta anos que recebe um pedido inusitado da filha de seu vizinho no elevador: auxiliar o homem no autoexame para ver se encontrava sinais de melanomas, doença da qual já quase havia morrido uma vez.

E é justamente ao observar este outro corpo que ela começa a voltar os próprios olhos para si, gerando mudanças inesperadas.


Além de a minha memória ser boa, a minha vida não era uma profusão de compromissos a ponto de eu esquecer algum.


Não é um conto sobre a pandemia, mas sobre como uma situação faz uma pessoa rever fatos, analisar situações e até mesmo se abrir para viver novas experiências.


Bourbon

O escritor paulista Antonio Prata também foge da pandemia e combina bebida e parte íntima masculina para que o seu narrador nos conte o encontro de Sandra e Luiz.

Não vou detalhar para não entregar a história para quem não leu, mas na minha opinião o conto começou com um bom ritmo, engraçado, com um belo toque de ironia.


Não há mais o que fazer, não há mais como se esconder, é preciso jogar a toalha.


Mas infelizmente ele vai decaindo no desenrolar do longo diálogo, lembrando aquelas discussões chatas de Twitter cujo final é muito louco.


Engolir o amor

A autora cearense Jarid Arraes escolheu o estômago como forma de contar a relação filha e mãe que Ciça vive, que opta pelo jejum e a reza como forma de salvar a mãe da doença que a consome.


Morrer como, morrer de morrer, de morte matada ou morte morrida?


Conforme a doença evolui, mais a filha se exige enquanto apenas assistimos suas reações. Foi o conto que me deixou com uma pergunta não respondida no final.


O Dedão de Carolina

A escritora paulista Tati Bernardi escolhe o polegar de sua personagem para contar sobre a sua vida, desde quando era bebê e usava este dedo para substituir o seio materno, ou na infância quando folhava as páginas dos livros rapidamente.

E como os nossos próprios polegares, ele acaba participando das primeiras escolhas na juventude, o desafio da aprovação em uma universidade até a sua vida adulta.


Seria um dos maiores atores do país, lotaria mais de mil lugares a cada apresentação, e o público o aplaudiria de pé com gritos de "bravo!".


Eu particularmente achei muito interessante o viés utilizado, a narrativa em terceira pessoa me permitiu acompanhar Carolina e o seu dedão como se fosse um filme e fiquei pensando o que se passa debaixo das unhas dos meus próprios polegares.


Braço Direito

Usando uma expressão muito conhecida nos meios corporativos, o escritor carioca Jessé Andarilho coloca o braço direito na posição de comando da organização chamada corpo humano.

E como não poderia deixar de ser há conflitos, reclamações, revoltas, confusões, desencontros e necessidades de muitos acordos para gerenciar uma das máquinas mais perfeitas que conhecemos.


Havia muita coisa para ser discutida enquanto Esquerdo e Direito travavam uma queda de braço para decidir quem tomaria a frente na resolução dos problemas.


Eu achei a analogia com o mundo corporativo muito interessante, e indo além do mundo empresarial, outros chavões populares são usados, assim como política e humanidade se misturam no texto, me fazendo lembrar de uma piada de infância onde o cérebro e outra parte do corpo também disputavam pelo comando do corpo humano.


Daquela que te alimenta as memórias

A autora paulista Mel Duarte escolheu a boca como parte do corpo, mas durante o texto todo, assim como no título, faz parecer que é a memória.

Utilizando a narrativa em primeira pessoa a boca resolve ter uma conversa séria com a pessoa que a possui, trazendo lembranças antigas, amores e situações, em um retorno ao passado que tenta trazer a personagem ao presente.


E eu não vou perguntar se tá tudo bem, porque eu sei que não tá.


Eu particularmente achei o texto bem chatinho, muito bla bla bla e pouco tempero em um conto que tinha potencial.


O que eu achei

No geral não achei ele melhor que as Partes de uma casa, os contos são mornos e em sua maioria não abordam a pandemia como é indicado no início, aliás, em muitas ela é nitidamente esquecida, onde os personagens moram em um mundo anterior a 2019.

Eu fiquei com a sensação de o fato de terem sido encomendados de certa forma houvesse impedido de acessarem a alma de quem escreve, e assim, interferindo na minha reação como leitora. O que me fez recordar que muitos autores não aceitam trabalhar com temas previamente propostos, como se apenas a liberdade absoluta fizesse uma história fluir.

Para quem ficou curioso, infelizmente o livro não está à venda nas livrarias, sendo, por enquanto, uma exclusividade dos associados da TAG.


Partes de um corpo
Vários autores
TAG - Experiências Literárias
2021 - 179 páginas


terça-feira, 11 de janeiro de 2022

O Palácio de Papel


Sinopse: Em uma manhã perfeita das férias de verão, na propriedade construída em Cape Cod por seu avô, é com certo saudosismo que Elle Bishop absorve cada detalhe ao seu redor. A mesa de jantar da véspera — noite em que ela transou com o amigo de infância na escuridão do jardim enquanto os respectivos cônjuges conversavam na sala — ainda está posta. Em 24 horas, Elle terá de escolher entre esse homem e o marido. Mas, até chegarmos a esse momento crucial, acompanhamos outras fases de sua vida, desde a infância – sempre ao lado da irmã, Anna, dona de uma língua ferina: o divórcio dos pais e seus novos relacionamentos disfuncionais e abusivos; a chegada de Jonas, o menino curioso e mais novo que se transforma em seu melhor amigo e cúmplice; os tormentos da relação com o meio-irmão, Conrad; e o encontro dramático com Peter, o inglês charmoso e sarcástico que se tornará seu marido. Ao longo de um único dia, lembranças de acontecimentos da vida dos pais e avós de Elle expandem o mosaico dos segredos de família com episódios marcantes, trágicos e violentos.

No mês de novembro eu recebi pela minha assinatura da intrínsecos o livro da escritora americana Miranda Cowley Heller O Palácio de Papel. O mimo foram quatro bonitos descanso de copos que remetem a lugares da história.

Eleonor é uma mulher na casa dos 50 anos, com três filhos, casada com um homem que acredita amar, mas ainda apaixonada pelo amigo de infância. Todo este sentimento explode em um dia de verão em Cape Cod, onde os dois se conheceram muitos anos atrás e dividiram mais do que brincadeiras.

Ao ceder os impulsos, Elle revela ao leitor em um período de 24 horas o seu passado, os segredos, tristezas, alegrias e perdas de família. Mostrando ao leitor que não se trata de um simples adultério e muito menos de um romance água com açúcar o que ele irá encontrar.


Um livro de poesia mofado está aberto em cima da mesa.


Os personagens

Elle Bishop é a narradora desta história, e é sob o seu ponto de vista que enxergamos todos os demais personagens. É uma mulher que tenta equilibrar o amor pela família, suas culpas por eventos passados e as escolhas que realizou.

Filha de pais divorciados, ela e sua irmã Anna precisam viver com madrastas, padrastos e meios-irmãos. De temperamentos diferentes, Anna é energia pura, do tipo que não leva desaforo para casa, que mente na cara dura, e que é enviada para um colégio interno a fim de ter espaço na casa para um meio-irmão. Mas isso não separa as meninas, cujo amor é grande.


Pessoas impediam as outras de aproveitar o que elas mesmas não aproveitam.


Wallace é a mãe de Elle e Anna, uma mulher de pensamentos machistas que de certa forma segue os passos da própria mãe Nanette ao sempre favorecer os homens em situação de conflito, e mesmos nos momentos de exceção ela se sente quebrada ao entrar em confronto.

Henry é o pai ausente das meninas, que acabam tendo Leo, o segundo marido de Wallace, como a figura masculina de casa. Junto com ele elas precisam conviver com Conrad, o rapaz ressentido ao qual a mãe e a irmã abriram mão de conviver e o enviaram para o pai, o que obriga o afastamento de Anna para que ele ocupe o seu quarto e aproveite a situação para aterrorizar a então jovem Elle.


A maneira como chorava, com o tipo de amor por um animal de estimação que as pessoas mais cruéis muitas vezes têm.


Já na vida adulta, quem compõe o triângulo amoroso junto com Elle são Jonas e Peter. O primeiro é o amigo leal e apaixonado de infância, o menino mais novo que a segue por tudo e se torna um homem atraente. Os dois juntos guardam um segredo, e é justamente ao entender as circunstâncias que os afastaram que se compreende o motivo de ela finalmente ceder ao que ficou guardado a tanto tempo. E o marido Peter, o inglês pai de seus filhos que casou com ela mesmo com a desaprovação da família, é quem dá a Elle uma vida tranquila e aparentemente equilibrada, não fosse as mentiras que ela carrega e não tem coragem de revelar.


A escrita de Miranda Cowley Heller

Heller utiliza-se de Elle para contar aos leitores a sua história em primeira pessoa. Usando de diferentes locais, datas e horários são indicados para que se saiba em que momento do presente ela está e em que parte do passado ela irá nos contar.


Quero contar a verdade, implorar para ela me salvar, mas não posso fazer isso.


Dividido em cinco partes, os três primeiros levam o nome de Elle, Jonas e Peter - e aqui vale uma observação, apesar de levar os nomes do amigo/amante e do marido, ao contrário do que eu imaginei ao ler os títulos não temos a visão deles, mas sim a dela em relação a como os conheceu e a convivência. Os dois capítulos que encerram a história tratam sobre o verão que eles estão vivendo e o fechamento com o dia de hoje.

Como o mar, a história vai aos poucos te capturando, até te surpreender com ondas e repuxos que fazem a vontade de virar mais uma página constante. Com uma escrita fluída, Miranda Cowley Heller te convida a descobrir o que virá depois, a confirmar suspeitas e se pegar pensando qual seria a minha atitude se vivesse as mesmas situações. 


Só para ficar claro, nunca vou amar alguém do jeito que amo você.


E para quem ficou curioso, a explicação do título está em detalhes na página 30, de forma direta, fácil e que sim, combina com tudo o que acompanhamos no decorrer da história.

Um pequeno spoiler para dar um alerta de gatilho, se você não tem interesse em saber pule para a parte de O que eu achei: entre as situações relatadas no núcleo em que Elle e sua família está inserida, há descrição de assédio sexual e estupro, eu, que nunca passei por isso, me senti agoniada, então fica o aviso para quem o assunto é ainda mais sensível.


Dentro de mim, no silêncio, estava gritando tão alto que o som preenchia o vazio, um terror que quase não conseguia controlar.


O que eu achei

Como eu tenho o hábito de não ler nada sobre a história, confesso que iniciei a história de Miranda Cowley Heller sem muita empolgação, logo no início parecia ser mais um romance onde o envolvimento adúltero era o tempero das cenas de sexo. Mas conforme a leitura foi avançando, ficou claro para mim que a obviedade estava apenas na superfície da lagoa deste palácio de papel.

É um livro sobre culpa e as escolhas que ela nos leva a tomar, sobre os diferentes tipos de amores, os laços familiares, o desejo de proteger e ser protegido, de se mostrar e se esconder, sobre enxergar e se deixar cegar, sobre união e separação. E todo este somatório acabou me prendendo nas reflexões que a leitura trouxe, fazendo as quatrocentas páginas voarem enquanto eu via Elle crescer e amadurecer.


Eu sempre disse que ia envelhecer, mas você se recusou a acreditar em mim.


Ficando a dica para quem, como eu, gosta de descobrir o que as superfícies mais calmas escondem e refletir sobre ficções cujos assuntos abordados não são raros na realidade, podendo ser encontrado na vizinhança, nas páginas de jornais ou até mesmo em um núcleo familiar.


O Palácio de Papel
The Paper Palace
Miranda Cowley Heller
Tradução: Camila von Holdefer
intrínseca
2021 - 400 páginas

Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado é pago integralmente pela autora.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Clara da Luz do Mar


Sinopse: No dia do aniversário de sete anos de Claire Limyè Lanmè, seu pai decide entregá-la para Gaëlle, a vendedora de tecidos da pequena Ville Rose, no Haiti, para que ela dê a menina uma vida melhor. Neste triste e delicado romance, Edwidge Danticat fala dos misteriosos laços que criamos com a natureza e com aqueles à nossa volta. Como num tecido, as vidas dos moradores do vilarejo se entrelaçam, e cada história revela algo da tragédia de todos eles, mas também seus momentos de força, resistência e esperança.

No mês que celebrou as afronarrativas a TAG Curadoria enviou para os seus assinantes uma recomendação do músico e escritor Kalaf Epalanga, que me apresentou a escritora haitiana Edwidge Danticat e o seu envolvente Clara da Luz do Mar. O mimo foi um livro de contos contemporâneos.

Quando Claire nasceu sua mãe morreu, sendo levada pela família materna e criada por ela até os três anos, quando a responsabilidade da sua criação foi devolvida para o seu pai, o pescador Nozias. 


Mas, com uma menina, tinha tanta coisa que poderia dar errado, tantos erros incorrigíveis que ele poderia cometer.


Ele exerce o seu papel de forma amorosa, ao mesmo tempo que mantém a menina limpa, arrumada e frequentando a escola. Mas Nozias busca uma solução para ela ter um outro tipo de vida, e acaba concluindo que a melhor solução seria que Gaëlle, uma comerciante de tecidos, a adotasse.

Gaëlle já teve duas grandes perdas em sua vida, e embora na primeira vez tenha negado o pedido, aos poucos ela passa a pensar sobre a ideia enquanto se cura da trágica perda da própria filha.


A insistência dela em ficar tinha feito com que ele sentisse vergonha de sua falta de confortos, da pequenez e da natureza precária de seu mundo.


A boa escola frequentada por Claire tem relação ao fato da esposa de Nozias ter trabalhado na funerária do atual prefeito do vilarejo, que conseguiu uma bolsa na escola de Max Pai, um diretor que não aceita o uso da violência física como forma de educar.

Ele vive sozinho após Max Filho ir embora de forma rápida, não deixando maiores explicações para o seu amigo Bernard, um jovem morador da favela que sonha em ter o seu programa de rádio.

Personagens

Clara da Luz do Mar me apresentou personagens extremamente humanos o que me fez sentir diferentes sentimentos por eles no decorrer das páginas, conforme passado e presente foram se interligando, revelando fatos e personalidades.

Claire é o que chamamos de uma menina boazinha, inteligente sofre com a perda da mãe, o que torna a morte uma velha conhecida sua, já que a perda materna não é a única que ocorre exatamente no dia do seu aniversário. É o tipo de criança que dá vontade de colocar no colo e abraçar, para tentar aliviar um pouco a tristeza.


Mas, em outros dias, dias como hoje, ela sentia como se estivesse carregando um ninho de cobras na barriga.


Nozias claramente ama a filha, assim como amou a mãe que possuía o mesmo nome da menina. O que impede o leitor de julgar a decisão de se separar de Claire,  pois fica claro o desejo dele que ela tenha as oportunidades que ele não teve.

Gaëlle também possui uma série de fatos pesados em sua vida, sendo a protagonista de um dos fatos inusitados da história ao mesmo tempo que transmite uma versão materna longe de ser açucarada. Foi uma das personagens que despertou diferentes sentimentos em mim, da empatia máxima até a incompreensão total por suas ações.


Não podemos avançar como bairro, como cidade nem como país a menos que saibamos o que faz esses homens chorar.


Já a dupla de Max’s simplesmente não conseguiram me despertar nenhuma simpatia, por trás de uma fumaça de bom cidadão estão os piores segredos, o que me fez sentir um certo asco dos dois. Não foi à toa que não consegui condenar as atitudes de Louise e Flore, que transformaram a retribuição dos atos dos dois em voz amplificada.

Falando em voz, se tem alguém que esmagou o meu coração foi Bernard, um jovem cheio de sonhos, com ótimas ideias, e se vê metido em um turbilhão ao ter uma delas roubadas.


A ampla audiência do programa preferia fofoca aos crimes reais, a menos que o crime contasse com elementos de fofoca.


A escrita de Edwidge Danticat

Como é citado na sinopse a vida de todos os personagens se ligam de alguma forma, o que eu achei muito interessante, pois a escrita de Edwidge Danticat passa a sensação de se estar assistindo uma novela, com reviravoltas, erros, mágoas e revanches. 

Dividido em duas partes, Clara da Luz do Mar possui oito capítulos, onde o foco da história vai alternando de personagem, permitindo conhecer o passado de cada um e assim entender os motivos da sua situação atual. E cada final pode causar uma surpresa ou suspense do que irá ocorrer nas próximas páginas.


Porque meninos como ele se transformavam em homens que causavam angústia, homens que acreditavam ter liberdade para destruir e mutilar, e eles tinham que ser detidos.


A narrativa é em terceira pessoa, tendo um ritmo que faz ter vontade de ler mais uma página, depois mais um capítulo, atiçando a curiosidade para saber o que irá acontecer com os moradores de Ville Rose.

Na parte cultural, por narrar o cotidiano de uma pequena cidade do Haiti, temos frases e expressões em francês e crioulo - língua haitiana -, que dentro do contexto são facilmente compreensíveis. Além é claro dos costumes, descrição do local e as diferenças sociais. 


Ela que o guiasse à vida adulta ileso numa sociedade onde as pessoas estão sempre buscando a próxima vítima a ser destruída.



O que eu achei...

Eu gostei muito do ritmo da escrita de Edwidge Danticat, a escrita fácil e fluída equilibra as situações, conseguindo dar uma dose de delicadeza mesmo em momentos que a narrativa se tornava mais pesada, revelando toda uma sensibilidade da escritora.


Um bom amigo estava agora perdido, alguém que ele tinha cumprimentado anos a fio quando se cruzavam, antes do nascer do sol, a caminho do mar.


Além de poder conhecer um pouco da literatura haitiana - ao qual nunca havia lido nada - da sociedade, crenças, costumes e políticas de uma pequena cidade do país ao qual só conheço de reportagens dos jornais.

Ficando a recomendação para quem gosta de livros envolventes, que despertam a curiosidade, cujo ritmo é ao mesmo tempo fluído e poético. Com certeza vocês não irão se arrepender.


Clara da Luz do Mar
Claire of the Sea Light
Edwidge Danticat
Tradução: Ana Ban
TAG - Todavia
2013 - 221 páginas

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Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.