quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Minha vida de rata

 


Sinopse: Minha vida de rata acompanha Violet Rue Kerrigan, uma jovem que rememora seu passado após ter sido expulsa da família, aos 12 anos. Chocante e mordaz, o livro mostra como ser banida não apenas de sua família, mas também de sua comunidade - parentes, vizinhos e igreja -, força Violet a descobrir a própria identidade e a romper a poderosa ilusão do significado de família, emergindo de seu longo exílio como "rata" para uma vida transformada.

A escritora Luisa Geisler indicou para o mês de outubro/2020 um livro traduzido por ela para a TAG Curadoria. Minha vida de Rato foi lançado no ano passado e é da escritora americana Joyce Carol Oates, uma jovem mulher já na casa dos oitenta anos cuja escrita nesta história mistura vários temas atuais, que vão muito além do racismo, que foi o mais explorado na revista da TAG. O brinde desta caixa foram três sabonetes com aroma da flor violeta.

O que serve de aviso para os mais desavisados, há muita violência contra a mulher nesta história, desde abuso de jovens meninas, até relacionamentos onde o machismo impera, com violência física e psicológica, o que pode tornar a leitura bastante incômoda para quem já passou por situação simular, os chamados gatilhos.

Não parecia haver um equivalente masculino para fazendo um show, desfilando.

Para falar deste livro, vou precisar fugir da superficialidade, citando mais da história do que normalmente costumo abordar. Então para quem não gosta de nenhum detalhe a mais antes de ler, recomendo parar a leitura desta resenha neste momento. Caso contrário, vamos lá.

Narrado em primeira pessoa por Violet Rue Kerrigan, o livro é dividido em três partes, tantos as partes quanto os capítulos possuem seus próprios títulos. Acompanhamos Violet dos doze anos até os seus quase trinta anos.

Disciplinar os filhos. Simplesmente o que um bom pai responsável fazia, demonstração de amor.

Na primeira parte somos apresentados a família de origem irlandesa Kerrigan, pai, mãe e seus sete filhos. Violet é a caçula e se sente a filha favorita do papai, um homem machista que não deve ser contrariado. Em casa, todos falam com cuidado com este homem que já foi para uma guerra, e hoje muitas vezes chega bêbado. Sinônimo de força, ele é a referência e o que desperta respeito entre seus filhos, eco não encontrado na relação com a mãe.

Os dois irmãos mais velhos de Violet possuem um sério desvio de caráter. Mas seus pais os defendem com unhas e dentes, pois acreditam na unidade da família e que esses laços exigem fidelidade e proteção por parte de todos. E isso é o que muda o destino de Violet, como a sinopse nos avisa. É a menina, se achando esperta e espiando os irmãos, que vê, sem saber, os primeiros indícios do crime cometido pelos seus irmãos contra um jovem atleta negro.

Não tem "garotas boas", só porcas de raças diferentes.

Enquanto a comunidade entra na discussão de um ataque a meninos brancos, um de seus irmãos, sabendo que ela tinha conhecimento de que eles haviam cometido o crime, tenta assassina-la, e com isso Violet acaba contando a estranhos tudo o que sabe. O resultado é a prisão dos rapazes e sua expulsão da família. Pois assassinar estranhos pode, tentar matar a irmã também, mas revelar isso aos outros, nunca.

Na minha opinião a primeira parte é a mais bem escrita do livro, você se sente dentro da casa de Violet, a tensão que todos eles sentem em relação ao pai, o funcionamento da escola, as relações com as demais pessoas, a injustiça em relação aos mais fracos. Existe um equilíbrio entre tudo, que te faz sentir as dores, se indignar com cada ação, ao mesmo tempo que fica muito claro todos os motivos pelo medo de Violet ser real e não haver sombra de dúvidas nenhuma em relação ao que os seus irmãos fazem.

Quando se trata de família, é melhor não pensar nada. Melhor...não pensar.

A segunda parte também é forte, mas é onde eu comecei a realizar vários questionamentos em relação aos fatos apresentados, e no meu caso comecei a questionar o caminho da história, o que pra mim atrapalhou a leitura.

Violet é adotada pelos tios, que moram em outra cidade, sendo a tia irmã de sua mãe. Eles não possuem filhos, e existe um carinho e um cuidado em sua chegada, principalmente pela menina não ser mais desejada pela própria família. Violet tem acompanhamento de uma assistente social e é matriculada em uma escola, mas apesar de ter risco de morte, seu nome não é alterado, o que possibilita qualquer um pesquisar a sua história. E este foi o meu primeiro questionamento: se existia risco de o irmão ir atrás dela, e a história já ocorre nos anos de 1990, o mínimo não seria ela receber o sobrenome dos tios que a adotaram? Eu não sei a resposta, apenas a dúvida.

Garotas não têm "aptidão natural" para matemática. Não há motivo algum para garotas saberem matemática.

O interessante aqui nesta segunda parte é que ela não tem confiança em ninguém, não retribuindo nem abraços da tia, ao mesmo tempo ela dorme em qualquer lugar e horário, o que demonstra que ela precisa de cuidados extras, sendo no mínimo necessário um acompanhamento psicológico para Violet. Mas ela não tem isso. Mas curiosamente ela aceita se tornar marionete de um professor, ao qual ela enxerga uma espécie de poder, como se fosse uma transferência da visão que ela tinha do pai para este homem.

Este homem é o personagem Sandman - o homem de areia que também dá nome a uma multipremiada série de história em quadrinhos para adultos -, na história de Joyce é um solteirão, que vive em uma boa casa, um professor rigoroso e que revela a Violet a sua simpatia pelo regime nazista e a pureza ariana, demonstrando assim o seu preconceito contra pessoas de etnias diferentes, ao mesmo tempo que a condena o fato da menina ter denunciado os irmãos. 

Para fazer a escolha certa da mesma maneira como fazia uma cama - metodicamente, perfeitamente, todas as dobras alisadas.

Extremamente machista, convence as meninas que elas precisam de aula de reforço, as mais ingênuas são convencidas a acompanha-lo. As mais espertas o abandonam, as que possuem medo aceitam o convite de ir até a sua casa e através de uma espécie de boa noite cinderela, ele abusa das mesmas. Outra vez é Violet que irá abrir esta caixa de pandora para a polícia, embora de forma involuntária, quando se vê novamente em uma quase morte.

Nesta parte uma coisa me incomodou, que foi a desconstrução dos tios. Tia Irmã demonstra ser bem diferente da mãe de Violet, alguém que tenta se aproximar e dar afeto a menina, que se afasta, e quando a personagem demostra ter mais força e ser diferente, em meia página ela desconstrói toda a personagem criada até ali. 

O objetivo é me manter viva.

E então chegamos a terceira parte, onde Violet já mora sozinha, ganhou e desperdiçou uma bolsa de estudo na universidade se mudando de cidade, movida pela vergonha de reencontrar colegas da última escola, e agora trabalha como empregada doméstica. Aqui ela conhece Metti, um homem na casa dos quarenta anos, elegante e rico, ao qual ela se envolve e acaba tendo um relacionamento doentio, onde o homem a princípio educado se torna machista, preconceituoso e violento. Neste ponto o que me fez desgostar da leitura foi o sentimento que tudo o que Violet já viveu não serviu de aprendizado tendo como justificativa uma espécie de paixão.

Durante toda a história os homens com os quais ela convive possuem um mesmo perfil, generalizando todos os homens brancos como machistas e violentos, talvez possa se justificar pela busca do pai, ao qual ela deseja perdão por ter denunciado os irmãos, motivo pelo qual ela mesma se chama de rata, termo que no Brasil seria o famoso X9. Em paralelo, ela passa enviando dinheiro para a família da vítima de seus irmãos, como se ao denunciá-los e assim "sujar" o nome da sua família, ela também fosse culpada pelo assassinato, demonstrando uma dubiedade de sentimentos da personagem.

Buscando no seu rosto, esperando não ver aquilo que teme ver, que você está escondendo dela.

Em Minha vida de rata as descrições, assim como os diálogos são muito fortes, pois a heroína da história literalmente vive aquela frase desgraça pouca é bobagem. E talvez por tanto peso nos ombros de um único personagem, que ao mesmo tempo tem uma série de oportunidades para mudar o rumo da sua vida, parece as vezes forçar o tom para em uma única narrativa abordar tudo o que há de pior em relacionamentos familiares e entre homem e mulher.

Digo forçar por já ter lido outras histórias bastante duras, como o fantástico As Alegrias da Maternidade, onde a sequência possui uma naturalidade, e mesmo em meio a dor, há uma luta da personagem, algo que em nenhum momento vi em Violet. Me passando a ideia de que ela nunca seria feliz, sendo uma eterna vítima dos outros e dela mesma.


Minha vida de rata
My life as a rat
Joyce Carol Oates
Tradução: Luisa Geisler
TAG - Harper Collins
2019 - 382 páginas


Outras resenhas de livros que abordam machismo e/ou violência contra a mulher:
Tudo de bom vai acontecer
As Alegrias da Maternidade
A Única Mulher
A terceira vida de Grange Copeland
As Garotas Madalenas
Eu sei por que o pássaro canta na gaiola
A Praça do Diamante
Escuridão Total sem Estrelas
(Sobre)Viver
Os homens que não amavam as mulheres

terça-feira, 27 de outubro de 2020

A Vida Secreta dos Escritores



Sinopse: em 1999, após publicar romances cultuados pelo público e crítica, Nathan Fawles anuncia que vai abandonar a carreira literária e a vida pública, juntando-se ao rol de escritores reclusos que ocupa a mente dos fãs de literatura. No auge da carreira, ele se refugia em Beaumont, ilha paradisíaca na costa do Mar Mediterrâneo. Duas décadas depois, Raphaël Bataille, aspirante a escritor e fã de Nathael Fawles, chega a Beaumont para descobrir o paradeiro do seu ídolo. Também desembarca no local Mathilde Monney, uma jornalista suíça que está determinada a desvendar os segredos do autor, por que, afinal, Nathan Fawles parou de escrever histórias? Ao mesmo tempo, ocorre um assassinato misterioso na ilha, que coloca os três personagens em lados opostos de um enredo repleto de mentiras, crimes, traições, paixão e muita escrita.

A edição da TAG Inéditos de Outubro/2020 traz o título A Vida Secreta dos Escritores do autor francês Guillaume Musso, que já vendeu cerca de 35 milhões de cópias e foi traduzido para 44 línguas. O livro é fino, mas não o julgue pelo tamanho, pois ele é garantia de uma leitura extremamente envolvente, sem exageros. 

Eu sempre conseguia me convencer de que os fracassos preparavam a vitória.

O mapa da Ilha Beaumont abre a leitura, e ao final dá um aperto no coração ao pensar que ela é fictícia, tendo como inspiração outros quatro lugares, estes sim, reais: a cidade litorânea de Bolinas na Califórnia, e as ilhas Skye na Escócia, Porquerolles na França e Hidra na Grécia. O que possibilita o leitor montar um roteiro de viagem para o pós pandemia.

Raphaël é um jovem de 24 anos formado na área de comércio para tranquilizar os pais, mas que tem o sonho de ser escritor como profissão. Há dois anos se dedicava a escrita do seu romance, que já havia sido recusado por uma dezena de editores. O que o fez aceitar um emprego temporário em uma livraria na ilha de Beaumont, onde teria tempo para escrever uma nova história.

E aquela maneira de se erigir em juiz para decidir o que era e o que não era literatura me parecia de uma pretensão sem limites.

A ida para a ilha tem um bônus para Raphaël, encontrar o famoso escritor Nathan Fawles, ao qual possui muita admiração e já leu os livros diversas vezes. Nathan Fawles vive isolado na ilha, em uma casa construída grudada a um rochedo, com seu próprio caminho para o mar, é um local sem sinal de internet, um ambiente rústico, perfeito para escrever, mas o seu morador não quer colocar mais uma palavra no papel.

Só que não é apenas Raphaël e seu manuscrito que estão atrás de Nathan. A misteriosa jornalista Mathilde Monney também está interessada no autor, a ponto de utilizar artimanhas para conseguir se relacionar com ele. Bonita e jovem, em um primeiro momento Nathan sente-se atraído por ela, mas logo ele passa a se sentir perseguido.

O livro não tivera repercussão na imprensa e não se podia dizer que os livreiros o respeitassem, embora tivessem acabado seguindo a onda.

Além disso, estão todos presos na ilha após o assassinato de uma mulher, que é encontrada pregada a árvore chamada de Imortal, um antigo eucalipto que deixa todos os moradores da ilha em estado de tensão, já que o seu isolamento também passa a ser questionado.

O detalhe da história de Guillaume Musso começa no Sumário, que pode deixar o leitor em dúvida se o livro é uma ficção ou sobre como escrever? E eu ouso dizer que ele trata das duas coisas. Em um mistério leve, mas ao mesmo tempo envolvente, ele vai dando dicas de como um livro é construído. Abordando com seus personagens desde cursos de escrita, passando pela dificuldade de um livro ser aceito pelas editoras, até como um autor passa a ser visto quando alcança o sucesso.

Em relação ao estilo, o texto estava cheio de brilhantismo, de figuras de linguagem audaciosas, de alusões bíblicas.

Abaixo do título de cada capítulo temos frases e observações de outros autores - como Umberto Eco, Milan Kundera, Marcel Proust - sobre escritores, livros e escrita. E eles não estão ali por acaso, sendo uma introdução sobre o que está por vir, então não as ignore, elas não estão ali por acaso.

A narrativa se utiliza tanto da primeira quanto a terceira pessoa, sendo envolvente, irônica e questionadora. Com cutucões nos intelectuais, achei muito inteligente por parte do autor utilizar um suspense em estilo romance policial para nortear o que leva alguém escrever e também a se afastar das letras.

Mas os romancistas costumam ver histórias em tudo.

Eu particularmente adorei o livro, ele capturou a minha atenção, achei bem construído e ao final fiquei com pena de terminar.


A Vida Secreta dos Escritores
La vie secrète des écrivains
Guillaume Musso
Tradução: Julia da Rosa Simões
TAG Inéditos - L&PM
2019 - 222 páginas


Outros livros sobre escritores e a escrita resenhado nos blogs:

A Louca da Casa
A Velocidade da Luz
Autobiografia
Sobre a Ficção - Conversas com romancistas

terça-feira, 13 de outubro de 2020

As Sete Mortes de Evelyn Hardcastle



Sinopse: Dia após dia, um homem acorda em meio aos preparativos de uma festa em honra a Evelyn Hardcastle na Mansão Blackheath. Dia após dia, um corpo distinto. Cada hospedeiro é a nova chance de descobrir o culpado pela morte da estrela da festa, que se desvela durante o luxuoso baile de máscaras. Além da confusão da viagem do tempo, os segredos transbordam, e nenhum movimento é simples, pois as regras do jogo não estão claras - e reviravoltas acontecem a todo momento.

Antes de iniciar a história o leitor recebe um aviso, o convite com nome de todos os convidados e o que fazem da vida, assim como dos principais empregados da casa, além de um pequeno mapa do local onde tudo acontece. Informação essencial para se achar na misteriosa leitura, pois sim, os leitores encontram-se quase tão perdidos quanto o homem citado na sinopse.

Sou um homem no purgatório, cego para os pecados que me perseguiram até aqui.

Em meio a uma floresta um homem acorda com o nome Anna em seus lábios. Ele não lembra de absolutamente nada. De repente uma mulher passa correndo, sendo perseguida por um homem, logo em seguida ele escuta o barulho de um tiro. 

Ele é salvo por um homem desconhecido, que sem se mostrar, lhe dá uma bússola e lhe indica uma direção, e assim ele chega até a Mansão Blackheath, onde alguém o identifica como um dos convidados da festa e o direciona para o seu quarto, e assim ele descobre quem teoricamente é.

São peças de um jogo que nem eu, nem você sabemos jogar.

Através dele temos o primeiro olhar deste lugar que já teve dias melhores, assim como dos convidados, que não se encontram tão felizes em uma festa realizada em um dia um tanto macabro, como se celebrasse o assassinato que havia acontecido a dezenove anos atrás na mesma data, aos quais eles também estavam presentes.

Para completar o estranhamento um homem fantasiado como o Médico da Peste lhe avisa para ter cuidado com o lacaio. De bom no seu dia apenas a aproximação com Evelyn Hardcastle, uma mulher que o encanta e desperta nele o desejo de protege-la.

Não podemos resolver o assassinato de alguém que não morreu, e sem uma resposta não podemos escapar.

Vem a noite, chega o sol, e este homem acorda novamente no mesmo dia, mas no corpo de outro convidado. Novamente confuso, ele simplesmente não sabe quem é. É quando o Médico da Peste reaparece e nos dá uma breve explicação da missão deste homem que teve a sua memória de certa forma apagada, e para se livrar deste looping, precisa descobrir até o final daquele dia quem assassinou Evelyn.

Narrado em primeira pessoa, o leitor se sente tão cheio de interrogações quanto o personagem que acompanhamos. Quem é ele? Por que ele fica trocando de corpo e vivendo o mesmo dia todos os dias? O que aconteceu naquela mansão? Em quem ele pode confiar? E ele é confiável?

Como posso fazer isso quando não sei onde eles terminam e eu começo?

Eu particularmente gostei muito da forma de escrita da história, a briga com as personalidades de cada corpo, que conforme a força confrontam o personagem principal, a dubiedade das pessoas que ali estão, os vários mistérios que envolvem a todos, deixando claro que a história é um jogo, absolutamente tudo é interligado, pequenos detalhes não podem ser esquecidos, senão não seremos libertados.

A troca de corpos permite uma visão de diferentes áreas da casa, a cada mudança, são outras amizades e, naturalmente, inimizades. Apesar das roupas e joias luxuosas,  existe muita tristeza, mágoa e maldade neste lugar. São poucos os que merecem a nossa simpatia conforme as facetas são reveladas.

Eu estou me perguntando isso há dezenove anos e não estou nem perto de encontrar uma resposta.

A única coisa que me incomodou foi o final, sim, você não será deixado na mão (como pensei algumas vezes) e irá saber o motivo por ele estar ali, mas mesmo combinando com a personalidade que nos foi apresentada, o desfecho não me convenceu. Mas nada que me faça contraindicar a leitura. 

Para quem curte investigar um mistério, com toque de morte, conflitos, segredos e vaidades, com certeza vai adorar a história que resultou no romance de estreia do jornalista Stuart Turton. Um livro realmente criativo na forma como foi montado, e que prende o leitor até o final.

As Sete Mortes de Evelyn Hardcastle
Stuart Turton
Tradução: Hilton Lima
TAG Inéditos - Dublinense
2018 - 477 páginas

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Árvore dos desejos



Sinopse: Delicado, engraçado e profundo, Árvore dos desejos é um conto de fadas moderno sobre o poder da amizade e da empatia, mostrando que muitas vezes temos que desafiar a tradição e nossos próprios medos para defender quem mais precisa.

Red é um carvalho-vermelho-americano, também conhecida como Quercus rubra, que está com duzentos e dezesseis anos de idade. Ela faz sombra para duas casas, abriga diversos animais em suas áreas ocas e seus galhos, e é a narradora desta história.

É difícil conversar com as árvores. Não somos muito boas de papo furado.

Péssima contadora de piadas, ela viu a região surgir, imigrantes construírem casas a sua volta, e participar de uma tradição irlandesa quando uma jovem pendura no dia 1º de maio uma fita com um desejo descrito, o que primeiro gerou sorrisos ganhou admiração quando mais tarde ele é realizado. Com o passar dos anos as fitas e pedidos aumentam, do mais simples ao mais absurdo, se tornando uma tradição na comunidade.

Mas no período atual da nossa narradora, que por sinal é uma boa contadora de histórias, os dias anteriores ao 1º de maio não são harmoniosos. Uma das casas em que a árvore faz sombra se tornou lar de uma nova família, que está sendo rejeitada por todos da região. A menina que ali mora está triste e faz um desejo, ela quer ter amigos.

Todos os dias vejo gente perdida em devaneios, falando sozinha, abrindo um sorriso ou franzindo o cenho.

Em paralelo a dona das casas resolve que quer cortar Red, aproveitando que seus animais moradores somem no dia dos desejos e no seguinte devido à grande movimentação, alegando que a árvore que ali mora a séculos só dá prejuízo com suas raízes nos canos das casas que aluga.

As duas situações levam Red a quebrar uma regra das árvores: a de não falar com os seres humanos. Sim, elas possuem voz, e para realizar um desejo antes de se despedir de sua vida, ela irá contar uma história e interferir no destino dos seres humanos.

Eram tempos, como tantos outros, em que pessoas famintas e desesperadas se amontoavam em navios para vir para cá.

Recebi uma edição muito bonita da Árvore dos Desejos como mimo do aniversário do clube de assinatura de livro Intrínsecos. A capa que parece brilhar chamou a atenção da minha filha que pediu para ler, e como o livro tem uma pegada infantil e infanto-juvenil, pode ser entregue tranquilamente para uma criança de sete anos.

A história é uma fábula que mistura natureza, imigrantes, preconceitos, amizade e história familiar. Narrado em primeira pessoa pela árvore Red, misturando texto e ilustrações, deixando a história fácil e rápida de ler.

Em meio a toda a agitação do mundo à minha volta, eu continuava esperando pacientemente.

O livro é bonitinho, e salienta que quando os desejos vêm do coração, eles podem se realizar. Um livro infanto-juvenil que pode encantar pessoas de diferentes idades.


Árvore dos desejos
Wishtree
Katherine Applegate
Ilustrações: Charles Santoso
Tradução: Thaís Paiva
intrínseca
2017 - 215 páginas

terça-feira, 6 de outubro de 2020

O dia em que Selma sonhou com um ocapi

 


Sinopse: Todos os habitantes da pequena Westerwald, uma cidadezinha no interior da Alemanha, sabem que Selma tem um dom muito especial: quando ela sonha com um ocapi, é sinal de que alguém está prestes a morrer.

Selma já havia sonhado três vezes com um ocapi - um bicho com pernas de zebra, ancas de tapir, torso vermelho-ferrugem de girafa, olhos de cervo e orelhas de rato - e em todas as vezes alguém morreu. Assim toda a comunidade ficou em polvorosa por vinte quatro horas, alguns com medo e outros prontos para se despedir, já que eles estavam certos que alguém iria morrer, mas não se sabia quem.

Bastava alguém lhe dizer duas coisas que não tinham qualquer relação entre si para ele criar uma analogia.

Cartas cheias de sempre e nunca foram escritas, revelando verdades e segredos até então impronunciáveis, lotando a caixa de correspondência da cidade. Quando as vinte e quatro horas passaram, estavam todos vivos, e correram para buscar as declarações feitas em um momento de despedida, sepultando os pensamentos revelados antes da hora. Mas naquela vez a morte chegou com atraso, e leva quem eles menos esperavam. 

A história, dividida em três partes, é narrada por Luise, neta de Selma. E pela história acompanhamos a sua infância, início da vida adulta e o período dos seus trinta anos. Através dela conhecemos as histórias da pequena comunidade, começando com Selma, que ficou viúva muito cedo e está sempre atenda a todos. 

Evidentemente eu não sabia que não haveria um amanhã para comprar sapatos na capital.

Também conhecemos os pais de Louise, sua mãe é dona de uma floricultura e vive pensando se deve se separar ou não, questão que fica mais forte quando o seu marido, filho de Selma, resolve sair pelo mundo sozinho para conhecer diferentes culturas, aparecendo lá de vez enquanto, criando um abismo na relação.

Entre os amigos de Selma, há o oculista, que é apaixonado por ela e já iniciou várias cartas se declarando, mas nunca finalizou e muito menos entregou alguma. Tem também Elsbeth e suas soluções para os diferentes males, além de Palm que no momento de maior dor trocou a garrafa por uma bíblia. E por fim a triste Marlies, uma moça que passa os dias em casa de calcinha e pulôver e só sabe reclamar.

Selma sempre achava um transtorno excessivo pedir ajuda.

E por fim, o amor da vida de Luise, que entre tantos personagens comuns e ao mesmo tempo peculiares, não poderia ser algo que muitos chamariam de normal, sendo um monge que vive no Japão, ao qual ela troca cartas semanalmente.

A escritora alemã Mariana Leky utiliza-se do realismo fantástico para aproximar os seus leitores desta pequena comunidade, onde as relações são movidas pelo afeto, prevalecendo com o outro muito mais a gentileza e a preocupação do que qualquer outro sentimento mesquinho.

De todo modo, eu havia colocado um pé na fresta da porta.

Através de seus personagens ela nos conta uma história sobre a rotina de uma pequena comunidade, onde há perdas, mortes, dor, saudades, mas também muita vida e amor. E os eventos extraordinários só servem para fortalezes os laços dos que ali tudo compartilham, ensinam e aprendem.

Por algum motivo, que eu ainda não consegui decifrar, a história me causou um estranhamento bom. A minha leitura não foi rápida, pois eu tinha a impressão de ser transportada para dentro do livro, e me via pensando, respondendo e realizando novas perguntas aos personagens.

Durante muito tempo ninguém tinha pisado naquele lugar. Tanto tempo que o lugar no chão nem sabia o que era isso.

Quando terminei a última página, fiquei com saudades de todos. Cheguei a pensar em escrever uma carta usando o mesmo endereço do monge Frederik para ter notícia da comunidade. Mas concluí que era hora de me despedir em definitivo, antes que começasse a sonhar com ocapi ou a derrubar coisas também.


O dia em que Selma sonhou com um ocapi
Was man von hier aus sehen kann
Mariana Leky
Tradução: Claudia Abeling
TAG - Editora Planeta
2017 - 315 páginas

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

O Beijo da Mulher-Aranha



Sinopse: Considerado o melhor livro de Manuel Puig, O Beijo da Mulher-Aranha, publicado em 1976, é um pungente e sensível mergulho no relacionamento de um preso político, Valentin, com seu companheiro de cela homossexual, Molina, acusado de corromper menores. É a quarta publicação do escritor argentino e também seu momento de completa maturidade literária.

Em nossa última mudança de casa, minha mãe me repassou vários de seus livros, já que eu estava preparando um cantinho especial de leitura. Entre os exemplares, estava a edição do Círculo do Livro para O Beijo da Mulher-Aranha, do escritor argentino, que montou lar no Brasil, Manuel Puig.

Eu nunca havia lido a obra, nem olhado o filme, só tinha conhecimento de que era estrelado pela atriz Sonia Braga. Sem referências, embarquei na história que me transportou para uma cela em uma penitenciária na cidade de Buenos Aires no final dos anos de 1970.

Nota-se que ela tem algo estranho, que não é uma mulher como as outras.

A história começa com a forma como ambos os presos passam o tempo: com Molina contando filmes para Valentin. Com todos os detalhes, que vão da decoração do ambiente a descrição detalhada dos protagonistas, as histórias são um pré-sono em uma rotina que que apenas os dois dividem a cela. Estes filmes trazem recordações do mundo exterior, como amores esquecidos, assim como discussões, quando suas origens são questionáveis.

Valentin pertence a um grupo que contesta a política argentina, em meio a uma ditadura militar, tem cuidado com as palavras, pois teme entregar os seus companheiros. Ocupa os seus dias estudando e ouvindo as histórias de Molina, sendo muitas vezes grosseiro ou até mesmo esnobe com o seu colega de cela.

Eu não posso viver o momento, porque vivo em função de uma luta política, ou melhor, atividade política, digamos, entende?

Molina foi preso por andar com um menor, além de homossexual, ele se vê como uma mulher, muitas vezes utilizando termos femininos para se referir a si. Sua preocupação constante é com sua mãe, que não está bem de saúde e aguarda a revisão de sua pena para ter o filho de volta ao seu lado.

A mudança na relação entre estes dois personagens tão diferentes ocorre após ambos passarem mal com a refeição do presidio. Primeiro Molina, que aguenta as dores e encara tudo sozinho. E depois Valentin, que acaba recebendo todos os cuidados de Molina, que inclusive divide roupas de cama e os itens alimentícios que recebe da sua mãe para que ele possa melhorar. Este cuidado faz com que as reservas de Valentin caiam, e seu companheiro de cela ganha a sua confiança, já que ele tem muito medo de repassar informações indevidas.

Por sorte não tem luz e não tenho que olhar para tua cara.

Em um livro rápido, com uma escrita com ritmo de roteiro cinematográfico, Manuel Puig aproxima rapidamente o leitor de Molina e Valentin. Sem muito detalhes dos seus passados, é possível criar uma simpatia por suas atitudes atuais, e ficar curioso sobre o fim das histórias contadas, o que conforme o filme impulsiona a uma página a mais.

Sutilmente ele também nos conta as críticas ao governo argentino naquele momento, quando Valentin tenta explica a Molina a necessidade de lutar contra o que está acontecendo, havendo uma leve citação aos sindicatos, assim como participações pontuais do diretor do presídio.

Você pensa que sou mais burra do que sou.

O que pra mim foi desnecessário são as inúmeras notas sobre as teorias da homossexualidade que passam a aparecer quando a escolha sexual de Molina passa a ficar mais clara. Com citações que vão do pesquisador inglês D.J. West até Freud, que chegam a ocupar quase que uma página inteira em alguns momentos, abordam desde a origem física do homossexualismo, indo para análise não-científicas, psiquiatras e hereditárias. Aqui confesso que não li todas no detalhe, pois elas interveriam no fluxo da leitura, mas para quem acha interessante ver como o assunto era abordado no início dos anos 1980, talvez seja um complemento interessante.

Em relação a forma narrativa, ele é quase todo composto por diálogos, são poucos os momentos que entramos no fluxo de pensamento dos personagens, o que coloca um ritmo de leitura e pode fazer com que o leitor se sinta sentado na cela escutando os filmes. E aqui há um fato muito curioso, não há descrições da cela, sabemos o que está acontecendo apenas pelo que é dito entre Valentin e Molina, são suas conversas e silêncios que ditam a ação.

Porque ninguém tem o direito de explorar ninguém.

Gostei bastante da leitura, achei muito interessante a forma como a história é nos contada, deixando o leitor tão íntimo e tão distante ao mesmo tempo dos personagens. Ficando a curiosidade para em algum momento procurar pelo filme também.


O Beijo da Mulher-Aranha
El beso de la mujer araña
Manuel Puig
Tradução: Gloria Rodríguez
Circulo do Livro
1981 - 234 páginas


Outros livros com personagens LGBTQIA+ resenhados no blog:
Os Sete Maridos de Evelyn Hugo
Uma Casa no Fim do Mundo
Voragem
Morangos Mofados
Retorno a Brideshead
O Retrato de Dorian Gray
Onde andará Dulce Veiga
Só Garotos
Todo esse amor que inventamos para nós
Ponto Cardeal
Todos nós adorávamos caubóis