terça-feira, 17 de outubro de 2023

País sem chapéu



Sinopse: Depois de vinte anos de exílio na América do Norte, um escritor regressa a seu Haiti natal e enfrenta o desafio de narrar essa experiência. À maneira de um pintor primitivo, com traço firme, cores vivas e perspectiva multifacetada, conta sua perambulação por Porto Príncipe e seu cotidiano singular. A cada passo surgem pequenos quadros com personagens e situações inusitadas; reencontros que disparam lembranças; diálogos inesperados, que revelam as inquietantes novidades do aqui e agora. Em meio ao vaivém de reconhecimento e estranhamento, onde se alternam o país real e o país sonhado, o autor é convidado a realizar uma viagem ao "país sem chapéu": o reino dos mortos e dos deuses do vodu. Primeiro livro de Dany Laferrière a sair em português, País sem chapéu é também um convite a penetrar num território que tem muitos paralelos com o nosso. Com o estilo límpido e permeado de ironia, Laferriére integra-se ao time de escritores de cultura híbrida, desarraigada, que erguem sua voz acima das fronteiras e falam com toda a humanidade.

No mês de agosto eu recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação do escritor brasileiro Allan da Rosa, o livro País sem chapéu do autor haitiano Dany Laferrière. O mimo foi um pequeno quadro branco magnético e uma caneta para escrever no mesmo.

O escritor Laferrière, ou Velhos Ossos como é chamado pelos mais íntimos, retorna para casa após vinte anos, sendo recebido pela sua mãe e pela sua Tia Renée. O rapaz de vinte e poucos anos que precisou abandonar o próprio país hoje é um autor reconhecido que vive o estranhamento de se sentir estrangeiro no seu próprio país.

Há muito tempo que espero este momento: poder sentar à minha mesa de trabalho para falar do Haiti com calma, com tempo.


Pois ao viver tanto tempo longe ele não estava preparado para a superpopulação e a miséria em que vários vivem, com as superstições já esquecidas e os seus próprios conflitos internos.

Tudo em meio a reencontros e redescobertas em que não só Laferrière, mas como o próprio leitor, vai descobrindo o país real e o país sonhado tem para nos contar.

E foi isso que aconteceu também desta vez: você ligou anteontem para dizer que ia chegar hoje.


A escrita de Dany Laferrière

Em uma mistura de ficção e autobiografia, o autor haitiano Dany Laferrière nomeia o personagem-narrador com o seu nome para compartilhar o próprio retorno ao país natal, ao qual precisou abandonar durante o período da ditatura militar.

País sem chapéu faz parte de uma coletânea de dez livros intitulada autobiografia americana, o que não impede a sua leitura individualmente, já que este é o seu primeiro livro publicado no Brasil.

Aproximo a xícara fumegante do meu nariz. Toda minha infância me sobe à cabeça.


Na narrativa dividida entre País real e País sonhado, encontramos subtítulos que acompanham o passo-a-passo do seu retorno, do reencontro com a família e amigos, a investigação de fatos curiosos que atraem não só a sua atenção, como também de militares estrangeiros, e os comparativos entre a cultura canadense em que viveu nos últimos vinte anos com a já esquecida que encontra em casa.

O que permite ao leitor através do narrador acompanhar o choque cultural que vai da religião na comparação e semelhanças do vodu versus religião católica, a pobreza nos detalhes da mesa capenga, passando pela mãe que oferece a própria filha até as notícias dos zumbis e da população estudada por passar semanas sem se alimentar. 

Este calor vai acabar comigo. Meu corpo viveu tempo demais no frio do norte.


E naturalmente as conexões e os estranhamentos nos reencontros, que aborda desde a mudança de visão sobre pessoas tão próximas como revisitar antigos amores.

Tudo com uma escrita direta, sem muitos diálogos ou descrições, o que exige mais atenção aos detalhes. Tornando a leitura aparentemente simples, mas rica no aspecto cultural, o que pode provocar estranhamentos e até mesmo teorias para quem olha de fora.


O que eu achei de País sem chapéu

Um alter ego que retorna ao Haiti 20 anos depois como um autor conhecido que aparece até na tv. Mas ao retornar aos seus parece compartilhar o mesmo olhar do leitor em uma terra desconhecida para ambos. Enquanto ele vai ao reencontro de suas memórias e busca informações para a escrita do seu novo livro, acompanhamos os seus questionamentos entre o país real e o país sonhado.

Os zumbis, tão falados no decorrer da história, me pareceram uma analogia a quem perdeu tudo, inclusive a esperança, e agora apenas anda miseravelmente pela terra sem esperar nada em troca. Outro retrato forte da fome é o povo estudado por militares por passarem meses sem se alimentarem, cujo ponto de interrogação também ficou na minha cabeça: como eles sobrevivem?

Deve-se oferecer primeiro aos mortos. Aqui, servimos os mortos antes dos vivos. São nossos antepassados.


No aspecto cultural achei muito interessante o fato de que o País sem chapéu é o mundo dos mortos, porque ninguém é enterrado de chapéu. Lembrando que o Haiti é um país muito quente, e eu imagino que seja bem difícil para os vivos circular pelas suas ruas sem um na cabeça.

Outro aspecto que eu achei bastante curioso foi a forma como o povo haitiano conseguiu manter viva a sua religião apesar da imposição de adotar a igreja católica, como a transformação de santos em seus deuses, permitindo que ao orar estivessem conversando com quem eles acreditam.

O problema não é tanto a multidão. É o cheiro. Por volta de cem mil pessoas concentradas em um espaço estreito sem água corrente.


No que se refere a relações pessoais, gostei muito da forma como o autor abordou a relação entre mãe e filho. Se por um lado ela ainda faz o café da manhã que ele gostava de tomar aos vinte anos, por outro se surpreende quando ele a lembra que já está na casa dos quarenta e acha que seria melhor eles dormirem em camas separadas, ainda que no mesmo quarto.

Outro fato aqui é que a distância permite que ele também a veja como mulher ao comentar a mudança das feições dela ao flertar com outros homens, realizar negociações de transporte ou troca de dinheiro sem se amedrontar.

Antigamente, o cemitério era o único lugar seguro no Haiti. Agora a gente se pergunta se vale a pena morrer neste país.


Também gostei bastante dos ditados que abrem cada capítulo. Na edição se tem o original em créole e a sua tradução, que me permitiu encontrar desde os mais reflexivos até os mais engraçados, havendo também os sem sentido nenhum para quem, como eu, não conhecia nada da cultura.

Mas apesar de compartilhar tantas situações através do olhar do personagem, o livro me pareceu um pouco impessoal. Não conseguia sentir o coração do narrador ali e fiquei pensando se isso foi uma forma de aumentar o sentimento de estranhamento, este bem presente, de quem fica tanto tempo longe do lugar de origem.

Eles vêm aqui estudar quanto tempo o ser humano pode ficar sem comer nem beber. Mas eles não sabem que já estamos mortos. Os brancos só querem acreditar naquilo que conseguem entender.


No geral gostei de País sem chapéu, me dando uma segunda visão do Haiti, cujo meu único contato tinha sido através de outro livro, chamado Clara da Luz do Mar, que também é muito bom e se passa em outra região do país.

Ficando a recomendação para quem gosta de viajar através da leitura para outras culturas, se interessa em conhecer escritores de diferentes países, curte livros de ficção com toque autobiográfico e naturalmente quem simplesmente quer ler.


País sem chapéu
Pays sans chapeau
Dany Laferrière
Tradução Heloisa Moreira
TAG - editora 34
2023 - 224 páginas
Publicado originalmente em 1996

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Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.


quarta-feira, 4 de outubro de 2023

A melhor história está por vir


Sinopse: Um furacão acaba de passar pela vida da professora espanhola Blanca Perea: o que parecia um casamento feliz de vinte anos termina bruscamente quando seu marido lhe abandona por uma mulher mais jovem, e logo ela é avisada de que, além da nova união, o novo casal também espera um filho. Incapaz de continuar vivendo do mesmo jeito enquanto seu coração está despedaçado, ela aceita uma proposta de emprego nos Estados Unidos para organizar os arquivos esquecidos do falecido professor Andrés Fontana. mais do que um recomeço, é a chance de Blanca se reencontrar, descobrir o que existe dentro de si e reconstruir sua felicidade. O trabalho, que no começo parece simples, se mostra cada vez mais suspeito e, entre documentos e novos colegas, como o charmoso Daniel Carter e o rígido diretor Luis Zárate, Blanca começa a perceber que algumas coisas não são esquecidas por acaso.

Escrito pela espanhola María Dueñas, a mesma autora de O Tempo Entre Costura, o título dado para a versão brasileira definitivamente não representa a narrativa. O título original de Misión Olvido representa muito melhor essa história que na verdade é três, já que podemos dizer que o livro é composto de três personagens principais.

Blanca Perea é uma professora universitária, na casa dos quarenta anos, com dois filhos iniciando a vida adulta, tentando administrar um divórcio recente após uma vida se colocando em segundo lugar para evolução profissional do marido. 

De qualquer maneira, antevia que meu trabalho não seria nem estimulante nem enriquecedor, mas, por ora, bastava-me ter conseguido, graças a ele, fugir da minha realidade com a pressa que do diabo fugindo da cruz. 


Precisando de um tempo, ela pede ajuda para uma transferência temporária. Entre as bolsas ainda disponíveis os destinos são Lituânia, Portugal e Estados Unidos. Em um primeiro momento ela cogita Portugal, onde ela estaria longe e perto ao mesmo tempo.

Enquanto decide o seu destino ela recebe mais uma notícia bomba, seu marido vai ser pai novamente, agora de uma menina. A menina que ele lhe negou tentar mesmo após inúmeros pedidos. E na necessidade de se afastar ainda mais, ela decide colocar um oceano de distância e pega uma bolsa na Califórnia.

Aquela pequena mudança de planos no calendário desviou irremediavelmente seu destino: por conta dos maus passes da história, nunca voltou.


O objeto da sua pesquisa é o professor espanhol Andrés Fontana, falecido em 1969, teve toda a sua documentação esquecida e armazenada de forma desorganizada em um porão da universidade.

Inicialmente o trabalho é feito de forma mecânica, mas logo a história que os inúmeros papeis escondem atraem a atenção de Blanca, fazendo com que ela dê a devida atenção ao homem que saiu da pobreza na Espanha e nunca mais voltou a ver os seus devido à guerra mundial e a ditadura que assolou o seu país.

Nessas circunstâncias, decidi comemorar a data, talvez para provar a mim mesma que a vida, apesar de tudo, seguia em frente.


Mas além da sua própria história, há os papeis falando das missões jesuíticas em território americano que despertam a atenção em outras pessoas. Principalmente as que lutam pela não instalação de um shopping em um agradável ponto da cidade de Santa Cecília.

Como o professor e escritor Daniel Carter, que além de estar na defesa do local foi um aluno orientado pelo próprio Andrés, tendo vivido as suas próprias aventuras na Espanha, as quais mudaram a sua vida para sempre.


A escrita de María Dueñas


A autora mescla narrativa em primeira e terceira pessoa, conforme o personagem escolhido para o capítulo. Por se tratar muito mais de passado do que presente, aos poucos ela vai nos revelando o cotidiano de Blanca, o caminho percorrido por Andrés e o motivo pelo interesse de Daniel nas missões tão pesquisadas pelo seu mestre.

E apesar da sinopse dar um ar de suspense, o mesmo não se reflete na escrita. Não há perigos físicos, apenas os mentais quando os personagens são obrigados a enfrentar os próprios fantasmas. Seja Blanca tendo que superar a própria mágoa com o fim de um relacionamento ao qual ela tanto se doou, seja Daniel tendo que abrir a sua própria caixa de pandora.

Uma vida que, de repente, quase de um dia para o outro, havia exigido que me reinventasse e começasse a dar voltas incertas.


Os personagens secundários complementam a história, como Rebecca que já passou pela mesma situação de Blanca e se torna sua primeira amiga nos Estados Unidos, a funcionária da universidade Fanny que foi recomendada por Andrés e vive com uma mãe amargurada, dona Antonia que recebe os jovens estudantes tão bem em sua casa na Espanha, a irmã de Blanca que quer ver fogo no parquinho e o diretor bonitão.

Como cenário há guerra, ditatura espanhola e os efeitos em sua sociedade enquanto os personagens vão construindo o que Blanca só irá descobrir anos depois, quando organizar os papeis de Andrés.


O que eu achei de A melhor história está por vir


Eu gostei muito do início da narrativa, a sequência de fatos que fazem Blanca trocar a Espanha pelos Estados Unidos para fugir de suas tristezas já mexeram comigo. Afinal, quantas pessoas já não desejaram pelo menos uma vez na vida deixar todos os problemas para trás e recomeçar do zero sem a sombra do passado? Mesmo que por um curto período de tempo.

E o livro captou de vez a minha atenção quando a vida do professor André Fontana passa a ser contada, aliás, o primeiro ponto negativo na leitura para mim foi parar de explorar a vida do personagem, que se apresentou tão rico e teve a sua narrativa interrompida do nada para entrar um terceiro personagem.

Mas atingir certa idade tem seu lado positivo. Você perde algumas coisas pelo caminho, mas ganha outras também. Aprende a ver o mundo de outra maneira, por exemplo, desenvolve sentimentos estranhos.


E quando a história passa a ser do Daniel Carter meu ritmo de leitura passou a diminuir, apesar de instigar a procura por uma conexão que vá além do fato de ele ser um aluno do Andrés enviado para a Espanha, tendo contato com pessoas do passado do professor, senti falta de mais exploração disso.

E não só dos contatos como do escritor que ele vai pesquisar, pois aqui, dando um spoiler - pule o parágrafo se não quiser nenhum - acaba sendo uma história de amor de início proibida que dá um toque de comédia na narrativa quando ganha apoio da missão americana em solo espanhol, mas ao mesmo tempo cansa um pouco, devido a pausa total que dá no restante da história.

Dizem que a compaixão é um sintoma de maturidade emocional; não é uma obrigação moral nem um sentimento que nasce da reflexão. 


O que me fez achar o tempo presente parecer um tanto superficial, ficando um tanto corrido e pouco explorado e as demais histórias com a sensação de que havia muito mais para ser explorado.

Mas no geral eu gostei, achei super interessante a questão das missões jesuíticas, que eu não tinha conhecimento nenhum, e me fez recordar as que temos no sul do Brasil e nos países vizinhos.

Ficando a dica para quem ficou curioso, gosta da escrita da autora, curte narrativas com fundo histórico ou simplesmente para quem gosta de ler.


A melhor história está por vir
Misión Olvido
María Dueñas
Tradução: Sandra Martha Dolinsky
Planeta - 352 páginas
Originalmente publicado em 2012