Sinopse: Depois de vinte anos de exílio na América do Norte, um escritor regressa a seu Haiti natal e enfrenta o desafio de narrar essa experiência. À maneira de um pintor primitivo, com traço firme, cores vivas e perspectiva multifacetada, conta sua perambulação por Porto Príncipe e seu cotidiano singular. A cada passo surgem pequenos quadros com personagens e situações inusitadas; reencontros que disparam lembranças; diálogos inesperados, que revelam as inquietantes novidades do aqui e agora. Em meio ao vaivém de reconhecimento e estranhamento, onde se alternam o país real e o país sonhado, o autor é convidado a realizar uma viagem ao "país sem chapéu": o reino dos mortos e dos deuses do vodu. Primeiro livro de Dany Laferrière a sair em português, País sem chapéu é também um convite a penetrar num território que tem muitos paralelos com o nosso. Com o estilo límpido e permeado de ironia, Laferriére integra-se ao time de escritores de cultura híbrida, desarraigada, que erguem sua voz acima das fronteiras e falam com toda a humanidade.
No mês de agosto eu recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação do escritor brasileiro Allan da Rosa, o livro País sem chapéu do autor haitiano Dany Laferrière. O mimo foi um pequeno quadro branco magnético e uma caneta para escrever no mesmo.
O escritor Laferrière, ou Velhos Ossos como é chamado pelos mais íntimos, retorna para casa após vinte anos, sendo recebido pela sua mãe e pela sua Tia Renée. O rapaz de vinte e poucos anos que precisou abandonar o próprio país hoje é um autor reconhecido que vive o estranhamento de se sentir estrangeiro no seu próprio país.
Há muito tempo que espero este momento: poder sentar à minha mesa de trabalho para falar do Haiti com calma, com tempo.
Pois ao viver tanto tempo longe ele não estava preparado para a superpopulação e a miséria em que vários vivem, com as superstições já esquecidas e os seus próprios conflitos internos.
Tudo em meio a reencontros e redescobertas em que não só Laferrière, mas como o próprio leitor, vai descobrindo o país real e o país sonhado tem para nos contar.
E foi isso que aconteceu também desta vez: você ligou anteontem para dizer que ia chegar hoje.
A escrita de Dany Laferrière
Em uma mistura de ficção e autobiografia, o autor haitiano Dany Laferrière nomeia o personagem-narrador com o seu nome para compartilhar o próprio retorno ao país natal, ao qual precisou abandonar durante o período da ditatura militar.
País sem chapéu faz parte de uma coletânea de dez livros intitulada autobiografia americana, o que não impede a sua leitura individualmente, já que este é o seu primeiro livro publicado no Brasil.
Aproximo a xícara fumegante do meu nariz. Toda minha infância me sobe à cabeça.
Na narrativa dividida entre País real e País sonhado, encontramos subtítulos que acompanham o passo-a-passo do seu retorno, do reencontro com a família e amigos, a investigação de fatos curiosos que atraem não só a sua atenção, como também de militares estrangeiros, e os comparativos entre a cultura canadense em que viveu nos últimos vinte anos com a já esquecida que encontra em casa.
O que permite ao leitor através do narrador acompanhar o choque cultural que vai da religião na comparação e semelhanças do vodu versus religião católica, a pobreza nos detalhes da mesa capenga, passando pela mãe que oferece a própria filha até as notícias dos zumbis e da população estudada por passar semanas sem se alimentar.
Este calor vai acabar comigo. Meu corpo viveu tempo demais no frio do norte.
E naturalmente as conexões e os estranhamentos nos reencontros, que aborda desde a mudança de visão sobre pessoas tão próximas como revisitar antigos amores.
Tudo com uma escrita direta, sem muitos diálogos ou descrições, o que exige mais atenção aos detalhes. Tornando a leitura aparentemente simples, mas rica no aspecto cultural, o que pode provocar estranhamentos e até mesmo teorias para quem olha de fora.
O que eu achei de País sem chapéu
Um alter ego que retorna ao Haiti 20 anos depois como um autor conhecido que aparece até na tv. Mas ao retornar aos seus parece compartilhar o mesmo olhar do leitor em uma terra desconhecida para ambos. Enquanto ele vai ao reencontro de suas memórias e busca informações para a escrita do seu novo livro, acompanhamos os seus questionamentos entre o país real e o país sonhado.
Os zumbis, tão falados no decorrer da história, me pareceram uma analogia a quem perdeu tudo, inclusive a esperança, e agora apenas anda miseravelmente pela terra sem esperar nada em troca. Outro retrato forte da fome é o povo estudado por militares por passarem meses sem se alimentarem, cujo ponto de interrogação também ficou na minha cabeça: como eles sobrevivem?
Deve-se oferecer primeiro aos mortos. Aqui, servimos os mortos antes dos vivos. São nossos antepassados.
No aspecto cultural achei muito interessante o fato de que o País sem chapéu é o mundo dos mortos, porque ninguém é enterrado de chapéu. Lembrando que o Haiti é um país muito quente, e eu imagino que seja bem difícil para os vivos circular pelas suas ruas sem um na cabeça.
Outro aspecto que eu achei bastante curioso foi a forma como o povo haitiano conseguiu manter viva a sua religião apesar da imposição de adotar a igreja católica, como a transformação de santos em seus deuses, permitindo que ao orar estivessem conversando com quem eles acreditam.
O problema não é tanto a multidão. É o cheiro. Por volta de cem mil pessoas concentradas em um espaço estreito sem água corrente.
No que se refere a relações pessoais, gostei muito da forma como o autor abordou a relação entre mãe e filho. Se por um lado ela ainda faz o café da manhã que ele gostava de tomar aos vinte anos, por outro se surpreende quando ele a lembra que já está na casa dos quarenta e acha que seria melhor eles dormirem em camas separadas, ainda que no mesmo quarto.
Outro fato aqui é que a distância permite que ele também a veja como mulher ao comentar a mudança das feições dela ao flertar com outros homens, realizar negociações de transporte ou troca de dinheiro sem se amedrontar.
Antigamente, o cemitério era o único lugar seguro no Haiti. Agora a gente se pergunta se vale a pena morrer neste país.
Também gostei bastante dos ditados que abrem cada capítulo. Na edição se tem o original em créole e a sua tradução, que me permitiu encontrar desde os mais reflexivos até os mais engraçados, havendo também os sem sentido nenhum para quem, como eu, não conhecia nada da cultura.
Mas apesar de compartilhar tantas situações através do olhar do personagem, o livro me pareceu um pouco impessoal. Não conseguia sentir o coração do narrador ali e fiquei pensando se isso foi uma forma de aumentar o sentimento de estranhamento, este bem presente, de quem fica tanto tempo longe do lugar de origem.
Eles vêm aqui estudar quanto tempo o ser humano pode ficar sem comer nem beber. Mas eles não sabem que já estamos mortos. Os brancos só querem acreditar naquilo que conseguem entender.
No geral gostei de País sem chapéu, me dando uma segunda visão do Haiti, cujo meu único contato tinha sido através de outro livro, chamado Clara da Luz do Mar, que também é muito bom e se passa em outra região do país.
Ficando a recomendação para quem gosta de viajar através da leitura para outras culturas, se interessa em conhecer escritores de diferentes países, curte livros de ficção com toque autobiográfico e naturalmente quem simplesmente quer ler.
País sem chapéu
Pays sans chapeau
Dany Laferrière
Tradução Heloisa Moreira
TAG - editora 34
2023 - 224 páginas
Publicado originalmente em 1996
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Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.
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