terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Anos de Chumbo e outros contos



Sinopse: A estreia na forma breve do autor de incontornáveis romances como Budapeste, Leite derramado e Essa gente. Uma jovem e seu tio. Um grande artista sabotado. Um desatino familiar. Uma moradora de rua solitária. Um passeio por Copacabana. Um fã fervoroso de Clarice Lispector. Um casal em sua primeira viagem. Um lar em guerra. Imersos na elogiada atmosfera da ficção de Chico Buarque, caracterizada pela agudeza da observação e a oposição frequente entre o poético e o cômico, os oito contos que formam este volume conduzem o leitor pela sordidez e o patético da condição humana. Com alusões ocasionais à barbárie do presente, o autor ergue um labirinto de surpresas, em que o sexo, a perversidade, o desalento e o delírio são elementos constitutivos da trama. Em Anos de chumbo, Chico Buarque põe seu conhecido domínio da linguagem a serviço da concisão da forma. O resultado é arrebatador.

O livro de contos de estreia do autor, compositor e músico Chico Buarque veio em uma edição caprichada, em capa dura tendo como imagem a obra Sem título de Solange Pessoa. No interior há oito contos, ao qual faço um pequeno resumo de cada um, sem grandes spoilers, abaixo:

Meu tio conta em primeira pessoa um dia rotineiro de uma jovem que é buscada por seu tio para um passeio. Bem recebido pela mãe, o pai nem se digna a ir de encontro do homem que possui, aparentemente, uma ótima situação financeira e pouca educação.

Meu tio veio me buscar em casa com seu carro novo. Ele não costumava subir, mas dessa vez trazia uma encomenda para a minha mãe.


O passaporte relata a perda do passaporte e passagem para Paris de um grande artista no aeroporto internacional do Rio de Janeiro. Enquanto ele procura, os dois itens são encontrados por uma pessoa que está longe de ser fã da sua obra.

Os primos de Campos é a memória de um jovem sobre a visita de seus primos de Campos desde o início de sua infância e o desenrolar destes laços familiares.

O indivíduo mal acreditou ao ver no documento o nome e as fuças do grande artista que ele mais detestava.


Cida um morador do Leblon conta sobre uma moradora de rua chamada Cida que adotou um banco de praça como sua casa e depende da boa vontade da vizinhança para comer enquanto carrega no ventre uma criança.

Copacabana relata uma sequência de encontros e desencontros de um personagem com figuras como Pablo Neruda, Luís Borges, Ava Gardner e Richard Burton.

Não tenho boa memória remota, pouco me lembro da minha primeira infância.


Para Clarice Lispector com candura o filho de uma professora de artes resolve aproveitar a relação da mãe com a escritora para enviar um maço de poemas manuscritos por ele, mas ao conhecer Clarice pessoalmente acaba irremediavelmente apaixonado.

O sítio em plena pandemia um homem recebe o convite de se isolar em um sítio com uma mulher que acabara de conhecer. Com opiniões em comum, eles criam um mundo próprio sem ver o tempo passar.

Era uma mulher até bonita, apesar da pele rude e dos dentes maltratados; tinha entre trinta e quarenta anos e usava roupas de grife ao sol do meio-dia.


Anos de chumbo retorna a década de 1970 quando um menino com sequelas de poliomielite se apaixona por soldados de chumbo e é super protegido pela mãe e tem pouco contato com o pai, um militar que atua nas prisões de quem é contra o sistema ditatorial.


A escrita de Chico Buarque

O autor brasileiro Chico Buarque usa e abusa das situações cotidianas, como infidelidade generalizada de homens e mulheres casados, paixões não correspondidas, em narrativas que podem ser em primeira ou terceira pessoa.

Por usar personagens muito similares a pessoas que encontramos tanto na rua quanto nas redes sociais, não é difícil associar os perfis descritos com alguém do mundo real ou virtual. Assim como a linguagem utilizada recorda em alguns momentos as próprias redes sociais, dando um ar bem caricato para as situações abordadas.

Parecia um lado avesso de Copacabana, onde os fundos dos prédios ficavam de frente para a rua.


Motivo pelo qual imagino que alguns contos abusam dos detalhes, e outros vão empilhando situações que podem tanto atrair a atenção como tornar a história arrastada demais, outros com aquela cara de lição de moral reduzindo assim o impacto final.


O que eu achei de Anos de Chumbo e outros contos

Eu nunca havia lido nada do Chico Buarque, mas já havia ouvido falar e isso gerou uma grande expectativa que não foi correspondida. Como uma grande fã de livros de contos, confesso que a coletânea do escritor me decepcionou, no geral achei um conjunto de personagens clichês com resultados previsíveis. 

Naturalmente ouve algumas narrativas que eu gostei, mas a média geral ficaria em torno de seis se eu fosse dar uma nota pelo conjunto, e explico o porquê.

Poderia ganhar milhões num desses concursos de conhecimento se a televisão se interessasse por escritores refinados.


Meu tio e O passaporte parecem aquelas fanfics de rede social, achei que o autor pesou a mão na tentativa de fazer algo próximo da realidade, criticando comportamentos padrões da sociedade, e acabou gerando dois contos muito fracos.

Em contrapartida Os primos de Campos, Cida e O Sítio são envolventes pelas suas sutilezas misturada com cenas mais fortes no desenrolar da trama. Dos três O Sítio foi o meu preferido, sendo na minha humilde opinião o conto mais completo e bem desenvolvido.

Era grande a possibilidade de dar tudo errado, mas ela disse que eu não tinha nada a perder.


Na coluna do meio estão Copacabana, uma espécie de conto homenagem aos grandes nomes de diferentes tipos de arte, que imagino era para ser divertido, mas faltou um algo a mais. O mesmo ocorre em Para Clarice Lispector com candura, que parece se perder no decorrer do caminho.

E fiquei sem uma opinião em definitivo com Anos de chumbo, cujo a ideia é boa, o final tem um impacto, mas tem algo no desenvolvimento dele que me incomoda. Fiquei na dúvida novamente se o autor não pesou a mão ao inflar a vida do garoto de desgraça pouca é bobagem, ou por repetir comportamentos já relatados em contos anteriores.

De qualquer modo ele não me faria tanta falta, porque com o tempo aprendi a guerrear sozinho.


Como ainda tenho O Estorvo do autor na fila de livros a serem lidos, vou dar um tempo antes de fazer a contraprova para ver o que eu acho dele como romancista, e quem sabe mudar o meu desagrado inicial.

Seguindo a minha rotina, apesar de ter mais literaturado do que literamado, deixo a indicação, que pode agradar e muito os fãs de Chico Buarque, quem gosta de ver situações tipicamente brasileiras nas narrativas e claro, quem curte contos.


Anos de Chumbo e outros contos
Chico Buarque
Companhia das Letras
2021 - 168 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

O livro dos pequenos nãos



Sinopse: E se eu não for por ali? Quais são as escolhas - e os momentos cruciais - capazes de definir nosso destino? Até que ponto essa narrativa está sob nosso controle? Em O livro dos pequenos nãos, Heloisa Seixas nos apresenta personagens que se espalham por mais de um século de história - de 1897 a 2018 - para construir um romance emocionante sobre os instantes que podem mudar o curso de uma vida.

Em uma noite de sábado Lia está jantando com a sua amiga Ana, entre chopes gelados e olhadas no menu, uma conversa na mesa ao lado, e no diálogo entre as duas surge o assunto de que as vezes um pequeno ato, uma frase, pode ter consequências enormes. 

Ao mesmo tempo Ana comenta o fato de Lia estar mais introspectiva, sem saber que a amiga tem um segredo ao qual quer compartilhar, mas não encontra o melhor momento. Ao se despedirem, invés de Lia pegar o caminho que a levaria para casa, ela começa a dirigir sem rumo, enquanto lembranças de seu antigo amor, Tito, preenchem seus pensamentos.

Às vezes, uma frase, uma coisa de nada... tem consequências enormes.


Como que complementando a conversa inicial, retornos no tempo onde personagens fazem pequenas escolhas que terão um impacto imenso em suas vidas. Uma gaze, um chocalho, óculos idênticos, o cheiro do rolo de fumo, detalhes que alteram caminhos que vão se entrelaçando no decorrer dos anos.


A escrita de Heloisa Seixas

A autora Heloisa Seixas utiliza personagens ficcionais e a história dos seus próprios antepassados em uma narrativa envolvente e fluída para explorar o que aflige qualquer ser humano que busque o controle total de sua vida: o impacto de cada escolha.

Enquanto Lia vai noite a dentro circulando por ruas desconhecidas sem parar para pensar, é nos anos de 1897, 1912, 1935 e 1948 que descobrimos as pistas de como uma decisão tomada de momento pode mudar o curso e impactar o futuro de várias pessoas, inclusive da escritora que não estaria aqui se o bisavô não resolvesse pegar uma gaze ou se sua avó não tivesse um ouvido muito atento.

Só um pedaço, mais nada, um rolo de extensão desconhecida, capaz de caber na palma da mão, pano e carne formando juntos o território mínimo que separa a vida e a morte.


Tudo isso em um cenário que relembram a própria história brasileira, já que ao retornar no tempo ela nos conta um pouco da guerra de Canudos e do bando de Lampião, e indicações literárias, musicais e cinematográficas durante a narrativa, já que ela compartilha os livros utilizados para consulta e dos citados durante o texto.


O que eu achei de O livro dos pequenos nãos

Nunca havia lido nada da carioca Heloisa Seixas e me surpreendi positivamente com o livro, cujas páginas eu percorri rapidamente, pois a autora é uma ótima contadora de histórias, e eu já fiquei curiosa em ler mais títulos dela.

Gostei muito de como ela alterna as decisões da personagem no ano de 2018 com as histórias dos seus antepassados ao se verem em momentos chaves de sua vida, com a morte em seu cangote. Ao mesmo tempo eu fiquei imaginando como as histórias antigas foram repassadas pelas gerações da família, até gerarem a Lia na mente da escritora. Ou será que foi a Lia que trouxe as memórias a tona?!

Lia viu a bifurcação à frente. Mais uma escolha, esquerda ou direita, qual rumo tomar?


A narrativa fluída me estimulou a ler super rápido, pois cada capítulo me deixava curiosa sobre o que iria encontrar. Confesso que gostei mais das histórias antigas do que da Lia em si, embora tenha achado a personagem complexa e o fluxo dela bastante completo, mesmo com o final em aberto (ao qual eu tomada de otimismo acredito que ela finalmente tenha encontrado os seus caminhos).

Então neste início de ano, onde fazemos milhares de planos, deixo como indicação este livro de escrita gostosa para lhe lembrar de fazer suas escolhas, seja para mudar tudo ou deixar tudo igual, porque independente do caminho, haverá alguma consequência não só no presente, e ela pode até virar um livro.


O livro dos pequenos nãos
Heloisa Seixas
Companhia das Letras
2021 - 155 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Pheby



Sinopse: Pheby Delores Brown é filha de uma mulher escravizada com o dono da fazenda onde vive. A ela é prometido que, ao completar dezoito anos, poderá ir para uma escola e viver a liberdade não reservada à mãe. Mas isso não acontece: enviada para a prisão dos Lapier - também conhecida como Terra do Diabo -, Pheby se torna a companheira do homem que comanda o local, uma posição que lhe dá aparente autoridade, mas também a obriga a se relacionar com o próprio diabo - e isso implica uma série de sacrifícios para proteger a si mesma e aqueles que ela ama.

Recebi em Julho/2022 pela minha assinatura da TAG Inéditos o livro Pheby da autora norte-americana Sadeqa Johnson. O mimo oficial foi o livro Os sofrimentos do jovem Werther, mas como ele foi o mesmo para as duas linhas de assinatura, eu recebi um segundo livro extra chamado Longe das Aldeias.

O ano é 1850. Pheby tem dezesseis anos, vive na plantação dos Bell no estado da Virgínia, é filha de Ruth - escrava da plantação - com o Mestre Jacob. Apaixonada por Essex, a menina foi educada pela tia Sally, irmã de Jacob, que ensinou a menina a ler, escrever e tocar piano.

Mama acreditava que a noite de lua cheia era a noite mais fértil do mês, que tudo o que a lua tocava era um receptáculo do poder de Deus.


Com a morte de outra escrava que trabalhava na casa grande, ela é chamada para substituir o atendimento a Sra. Delphina, esposa do mestre e que está grávida. Mas ao contrário dos outros, ali ela não encontra gentileza, e recebe os primeiros tapas da mulher que guarda muita raiva da filha bastarda do marido. 

Situação que Pheby tenta relevar, pois acredita na promessa do Mestre que ao completar dezoito anos será libertada e enviada para outra cidade para estudar.

Quero ela lá em cima, no Norte, onde a liberdade dela importa alguma coisa.


Mas uma sequência de acontecimentos infelizes ocorre, e invés da liberdade, Pheby é enviada para uma prisão, onde para sobreviver precisa se sujeitar aos caprichos do seu comandante, um homem cruel, ao qual nunca se sabe como irá agir. E para isso, mais do que nunca, ela vai precisar das palavras da mãe, que lhe diziam que ela era escrava no nome, mas não na cabeça, pois não era mercadoria de ninguém.


A escrita de Sadeqa Johnson

A autora norte-americana Sadeqa Johnson utiliza a narrativa em primeira pessoa para dar voz a Pheby e assim acompanhar não só os percalços da personagem, como conhecer o funcionamento do sistema escravocrata na parte sul dos Estados Unidos, a liberdade que se encontrava na parte norte e naturalmente os acontecimentos históricos.

Um fato muito interessante do livro é que apesar de ser uma ficção, a inspiração veio de personagens reais. Ao percorrer a Trilha dos Escravos de Richmond a escritora tomou conhecimento da história da cadeia dos Lumpkin, que pertencia a Robert Lumpkin, um homem conhecido como o Mercador Maligno, que foi casado com uma ex-escrava chamada Mary.

Os brancos sempre querem que a gente se deite com eles e depois deixam os problemas pros outros resolverem.


E o prisioneiro chave desta história, ao qual eu não vou revelar o nome para não estragar a sua leitura, foi inspirado em Anthony Burns, o encarcerado mais famoso da prisão dos Lumpkin.

Ao imaginar como teria sido a vida destas pessoas em um lugar tão inóspito, surgiu Pheby, um livro que mistura a face cruel da escravidão ao mesmo tempo que nos mostra o poder dos laços humanos. E isso é o grande acerto do livro, pois sem o segundo, seria muito difícil ler o primeiro.


O que eu achei de Pheby

Eu achei a escrita de Sadeqa Johnson muito envolvente, existe uma complexidade nas personagens que a tornam muito humanas. Mesmo os piores conseguem demonstrar em determinadas circunstâncias pequenos atos de amor, o que me levava a pensar no porque haver pessoas que preferem cultivar a crueldade, de se satisfazer mais com a dor do que com um sorriso, como que negando a si mesmo a ser feliz.

A personagem principal, Pheby, é muito bem construída. A resiliência em todas as situações para proteger os filhos, principalmente o primogênito, é ao mesmo tempo impressionante e dolorida.

Que todos os teus piores medos se tornem realidade, e que todo o mal provocado pela tua alma se volte contra ti multiplicado por dez.


Pois sim, ela é uma mulher diferente por tudo que absorve não só em relação aos estudos, mas as regras de uma vida que está sempre contra ela. Uma mulher inteligente, criada por uma mulher forte, que consegue ter uma visão de tudo o que está ocorrendo para assim garantir a sua sobrevivência e também de quem ela ama. 

Também gostei muito do complemento da revista, principalmente a explicação sobre o colorismo, que me ajudou a entender a visão americana na hora de classificar as pessoas, aos quais eles consideram as origens e não só a cor da pele em si, como ocorre no Brasil. O que me fez reavaliar a visão que eu havia tido ao ler A metade perdida, pois sim, agora eu compreendi todos os questionamentos do livro, que na época não fechava pra mim.

Eu sabia que aquilo não era o fim. No máximo, parecia ser o início, e eu não sabia se deveria sentir alívio pela bondade do cavalheiro ou medo mortal do que estava prestes a me acontecer.


E assim deixo a dica de um livro forte, reflexivo, de um passado bastante recente, cuja narrativa tem como efeito colateral apertar o coração enquanto não se compreende o quanto a humanidade pode ser desumana.


Pheby
Sadeqa Johnson
Tradução Davi Boaventura
TAG - dublinense
2021 - 318 páginas

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terça-feira, 10 de janeiro de 2023

As maravilhas



Sinopse: Neste celebrado romance de Elena Medel há duas mulheres: María, que no final dos anos 1960 deixa a sua vida pacata numa cidade de província para trabalhar em Madri; e Alicia, que faz o mesmo caminho trinta anos mais tarde, por razões bem diferentes. E há, claro, a mulher que as une e de quem praticamente não se fala: filha de uma e mãe de outra. As maravilhas é uma história sobre afetos, cuidados, responsabilidades e expectativas. É também, uma jornada sobre o passado recente da Espanha, do final da ditadura franquista até a explosão do feminismo, contada por duas mulheres que tampouco podem ir às manifestações, porque têm, evidentemente, de trabalhar para arranjar o seu sustento.

Recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria no mês de Novembro/22 o livro As maravilhas da escritora espanhola Elena Medel, indicação de uma outra escritora, a brasileira Giovana Madalosso. O mimo foi o que gerou mais dúvida em todos os meus anos de assinatura na TAG: uma cinta de livros.

Na cidade de Córdoba cedo María se depara com uma gravidez indesejada, sem apoio do pai da criança, tudo é ajeitado pelos pais, que a enviam para morar com os tios e trabalhar na capital espanhola, enquanto eles criam a bebê Carmen.

Vazios os da calça, também os do casaco: nem sequer um lenço de papel úmido, amassado.


Nos raros reencontros, a jovem mulher identifica que o seu bebê tem cheiro de cigarro e não o mesmo perfume agradável da criança que cuida. Se no início ela sonha em carregar a filha junto, cedo é dissuadida que isso não é possível, e ela cede, escasseando visitas e telefonemas, até a filha ser uma completa estranha.

Carmen também engravida cedo, mas ao contrário da mãe, acaba casando e formando uma família, que com o empreendedorismo do marido, gera uma vida cheia de pequenos luxos para as filhas Alicia e Eva. Até a tragédia chegar, e ela ter que se virar para sustentar suas meninas.

Durante o dia, ela cozinha, limpa, passa roupa e obedece, mas à noite se dedica à memória.


Alícia é mimada, e nem mesmo a perda a faz evoluir de sua necessidade de se sentir superior. Vontade que não é suficiente para que ela estude e busque uma vida melhor, e como a avó que desconhece, vai parar em Madrid, vivendo um dia de cada vez sem objetivo nenhum.


A escrita de Elena Medel

Utilizando uma narrativa em terceira pessoa, a escritora espanhola Elena Medel conta a história de três gerações de mulheres da mesma família no período de 1969 a 2018. O que acaba entrelaçando a vida delas aos acontecimentos históricos da Espanha, como o pós guerra civil ao qual se seguiu a ditadura Franquista, a transição espanhola após a morte do general Franco, os impactos das crises econômicas até o momento presente de avó e neta: a greve das mulheres.

Como personagem principal temos justamente avó e uma das netas, já que a mãe/filha e a outra menina - Eva - só aparecem através da visão das protagonistas.

Tudo nela as desnorteava: escrevia sem erros de ortografia, sabia de cor datas e nomes de personagens históricos, não bocejava na aula.


Ao contar a história de pessoas comuns, a autora acaba abrangendo uma diversidade de questões, que vão das diferenças sociais, passando pela maternidade, as relações familiares, mágoas, independência feminina, machismo e escolhas.

O livro tem o presente e o passado dos personagens, não há um mistério ou segredo a ser desvendado além do da própria vida, pois são elas crescendo e envelhecendo em uma brincadeira de ida e volta dos anos que a autora faz, permitindo que assim o leitor construa aos poucos o perfil e o porquê de cada personalidade.

Algumas manhãs a mulher lhe faz essa pergunta: de onde você veio? Como chegou aqui?


Personalidades bem diferentes, pois se de um lado María aceita o que lhe foi negado e aos poucos vai encontrando a si mesmo em uma evolução constante, Alicia busca pelo sexo se afirmar, presa no mesmo sonho todas as noites e parecendo nunca deixar de ser uma pré-adolescente.

Tudo em uma escrita bastante fluída, que permite um bom ritmo de leitura em uma trama bem costurada, onde há mais reflexões sobre as situações vividas do que questionamentos.


O que eu achei de As maravilhas

Gostei da forma como a história da Espanha entra como um pano de fundo para a narrativa, não há explicações sobre o período, são os diálogos, as ações, os pensamentos que nos fazem entender como cada personagem encara o momento em que está vivendo.

A maternidade, assunto que foi muito abordado nos livros enviados pela TAG este ano, aqui aborda a ausência de laços e o desejo de não vivê-la. Seja pela personagem María, convencida pelos pais da incapacidade de criar a própria filha a ponto de acabar abandonando a mesma na mão dos familiares e não desejar nem mesmo ver as fotos que registram o seu crescimento.

Tanto faz se são homens ou mulheres, jovens ou velhos: ninguém confessa sonhar com outras coisas.


Até chegarmos a Alicia, uma menina que segue sombria e vazia na vida adulta, que mesmo chegando a Madrid com mais oportunidades que a avó não abraça isso, se satisfazendo com empregos precários e não desejando laços, e com isso dizendo sabiamente não ao maior deles: a maternidade.

Mas o curioso no meu caso é que em um livro tão voltado as questões femininas, quem ganhou o meu coração é o Chico. O irmão de María apaixonado por filmes que ainda criança usa uma caixa para trabalhar em um balcão e assim ser visto. O tio de Carmen que abre a sua casa para ela quando tudo fica difícil. O familiar que está ali para quem precisar e tenta sempre ter notícias de todos. 

São os livros e os filmes que vão contar tudo para os nossos filhos, nossos netos, assim como nós sabemos através dessas obras o que aconteceu antes.


No geral eu gostei do livro, confesso que achei a história um pouco linear, tendo alguns capítulos mais tensos, mas no geral é acompanhar a vida de avó e neta. Motivo pelo qual senti falta de algo mais, talvez da visão de Carmen e Eva, para completar o quadro das três gerações.

Mas isso não o deixa menos interessante, pois como comentei, gostei da escrita e da história, e a forma natural como as relações podem trazer consigo imposições, as questões de gênero, o rompimento de alguns conceitos quando se escolhe em não assumir o papel, tornam as personagens muito ricas, complexas e interessantes.

Não se preocupe: não falo dormindo, não choramingo com o alarme do celular; acabei me acostumando.


Ficando a dica principalmente para quem gosta de livros onde se pode viver por algumas páginas na pele de outro sem ter poder de escolha ou aconselhamento.


As maravilhas
Las maravillas
Elena Medel
Tradução: Rubia Goldoni
TAG - todavia
2020 - 188 páginas

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Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

As Vitoriosas



Sinopse: O cliente de Solène, uma bem-sucedida advogada parisiense, não dera indício algum de que, ao ouvir sua sentença, atentaria contra a própria vida. Ela tampouco poderia imaginar que testemunhar a cena causaria o colapso de algo dentro de si. Paralisada, Solène sabe que a base que mantinha sua vida de pé ruiu. O médico atesta burnout e recomenda: “trabalho voluntário”. Mas, ao mesmo tempo que retomar a rotina confortável vivida até então não faz mais sentido, ela não tem ideia de como criar para si uma nova realidade. Quando um anúncio inusitado no jornal a leva até o abrigo conhecido como Palais de La Femme, Solène encontra um grupo diversificado de mulheres, vindas de universos muito distantes do seu, e, aos poucos, começa a redescobrir um senso de propósito ao dedicar algumas horas semanais à função de escriba: no saguão do Palais, coloca-se à disposição das residentes para redigir cartas. Ela perceberá, no entanto, que, tanto quanto a de escrita, sua habilidade de escuta será crucial ali.

Recebi em Julho/2022 pelo hoje já inexistente clube intrínsecos o livro As Vitoriosas da escritora francesa Laetitia Colombani. Os mimos foram um passaporte para anotar leituras e uma bonita placa com o desenho do Palais de La Femme, local central na trama.

Solène é uma parisiense solteira, sem filhos, bem sucedida como advogada. Ao sair da última audiência, não favorável ao seu cliente, ela se prepara para conversar com o mesmo para tranquiliza-lo. Mas não houve tempo, e ao ver ele suspenso no vazio, ela mesmo entra em colapso e acorda em um quarto de paredes brancas.

Em todos os cantos, as mulheres lutam para ter a identidade reconhecida. Exigem seu direito de existir.


Diagnosticada com burnout, a mulher que era totalmente focada na carreira se vê sem chão. A sugestão é que ela realize um trabalho voluntário para afastar os olhos de si e ser útil para alguém ou alguma coisa. E é assim que ela acaba respondendo um anúncio para escriba no Palais de La Femme, um dos maiores abrigos para mulheres da Europa, onde vai descobrir a vida de das suas moradoras e retornar o olhar para si.

E assim, em paralelo retornamos a Paris de 1925 e conhecemos Blanche Peyron, a idealizadora na transformação de um hotel para homens solteiros em um abrigo para as mulheres em situação de rua na Europa. Importante integrante do Exército da Salvação, acompanhamos a vida desta mulher incrível que colocava os outros seres humanos como foco principal de sua vida.

Está em pane, como um carro sem gasolina parado na calçada. Em pane, aos quarenta anos.

 

A escrita de Laetitia Colombani

Utilizando a narrativa em terceira pessoa tanto no tempo presente quanto no passado, a autora Laetitia Colombani mistura ficção e realidade em uma história curta com uma escrita fluída e impactante.

Através da personagem de ficção Solène a escritora aborda temas atuais que pressionam as profissionais todos os dias, ao mesmo tempo que nos relatas histórias que são vividas todos os dias por mulheres no mundo inteiro, sejam elas sem teto, refugiadas ou fugitivas da violência doméstica.

É preciso se afastar de si, se voltar para os outros, encontrar um motivo para acordar de manhã. Ser útil para alguma coisa ou alguém.


Fazendo um link das proibições dos séculos passados, como o simples ato de andar de bicicleta - que só foi permitido as mulheres no século XIX - ter uma conta bancária e fazer um empréstimo, ou algo tão banal nos dias de hoje como usar uma calça. E naturalmente a violência, que segue deixando marcas no decorrer dos séculos em suas diferentes formas em mulheres de todas as nacionalidades.

Outro ponto que achei muito interessante na forma abordada pela escritora foi a relação e reação entre voluntários e os que estão recebendo suas ações. É preciso entender que nem sempre palavras de agradecimento serão proferidas, mas que o coração deve ser aquecido pela ação em si, e pelos laços que aos poucos cada uma delas vão construindo.

Uma profissão séria. Ninguém liga se ela não faz você feliz.


O que eu achei de As Vitoriosas

Eu gostei muito de As Vitoriosas, logo de início eu já desconfiei que Blanche fosse real, confirmação que eu tive ao ler a revista que acompanhou o livro e estava bem completa. E foi um livro que a história me envolveu de tal forma que rapidamente eu estava chegando a última página com inúmeras reflexões me acompanhando.

Como do óbvio viver um dia de cada vez, passando pelo fato de que muitas pessoas acabam seguindo carreiras por razões financeiras ou pelos pais terem mandado e não conseguirem ser felizes nela, e assim abrirem as portas para o burnout e a depressão.

A constatação da pesquisa é alarmante: as mulheres são as principais vítimas da pobreza e as principais beneficiárias dos serviços de assistência social.


Também gostei da forma como ela aborda de maneira bem crítica como as mulheres são as mais afetadas pelas diversidades econômicas. Sejam por ganhar menos, pelo número de mães solo que acabam dependendo de abrigos e bancos de alimento, por serem as mais afetadas quando regimes ditatoriais são implantados. E de como são invisíveis perante a sociedade, por mais expostas que estejam.

O que leva a questão de que deveríamos nos dedicar com afinco no que realmente acreditamos, em nos perguntar o que fazemos para melhorar o mundo que vivemos além de reclamar nas redes sociais e não ceder em nada, nem abrir os olhos para o que está ali, a poucos metros de você.

Uma escolha necessária, indispensável e insana. A escolha que vai assombrá-la por toda a eternidade.


Pois o livro As Vitoriosas consegue despertar um desejo de fazer mais pelos outros e também por si mesmo, o que talvez seja a melhor combinação para melhorar tudo ao nosso redor. Razão que por si só já vale a leitura.


As Vitoriosas
Les victorieuses
Laetitia Colombani
Tradução: Carolina Selvatici
intrínseca
2019 - 199 páginas

Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado - que foi encerrado em setembro - era pago integralmente pela autora.