terça-feira, 27 de dezembro de 2022

As horas não importam mais



Sinopse: Em uma viagem de carro pela BR-290, a narradora atravessa o passado e o presente, vivendo um caleidoscópio de emoções que insistem em atormentá-la como feridas à flor da pele.

Na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul uma mulher dirigi o seu carro pela BR-290, uma das mais importantes rodovias do Estado com 726km de extensão, ligando o Brasil a Argentina.

Acompanhada de música, cigarro e memórias a primeira informação que o leitor recebe da narradora e protagonista da história é que ela tem sangue nas mãos.

Não precisava pensar muito, apenas seguir em linha reta e obedecer às placas.


Sem um nome para identifica-la, ela percorre a estrada sem contar ao leitor o seu destino, parando em diferentes pontos e encontrando o pior em cada um deles.


A escrita de Kelli Pedroso

Antes de tudo uma curiosidade, para quem acompanha o blog desde o início, o nome talvez não lhe soe estranho. A Kelli participou dos primórdios da criação do Literatura Amores e Horrores, havendo nos primeiros anos algumas resenhas suas. Com o tempo ela, como os demais, seguiram caminhos diferentes, restando a pessoa que vos escreve.

Mas voltando As horas não importam mais, a escritora utiliza mescla a forma de Road novel com narrativa intimista para se movimentar não só pela estrada, mas também pela própria alma da personagem ao escavar memórias obscuras. São duas estradas percorridas em paralelo, com pontos de intersecção que alimentam o deslocar aparentemente errante, mas que a narradora sabe de cor.

Tudo é lembrança quando não podemos estar juntas. Eu não só não lembro a data em que ela resolveu abreviar a sua vida.


Em capítulos rápidos, a narrativa intimista é direta, apenas com as informações necessárias para compreender o tipo de situação vista ou vivenciada, tornando o destino final um mero detalhe para quem embarca na jornada.

Outro diferencial no livro é que a orelha e a contracapa não trazem sinopse ou resumo da história, mas a consideração de dois outros escritores de como se sentiram em relação a leitura, são eles:Gustavo Melo Czekster e Rafael Bán Jacobsen.


O que eu achei de As horas não importam mais

Apesar de ser um livro curto, ele é bastante intenso nas sequencias de cenas. Intercalando presente e passado sem informar datas, com várias sequencias de adormecimento em um trajeto de aproximadamente 9 horas se percorrido na integra (Uruguaiana - Osório) me causaram estranheza no início.

Mas por ser um livro que foge do tradicional, onde não sabemos o nome da personagem, de onde ela vem e para onde ela vai, muito menos as suas motivações, ele abre a possibilidade de o próprio leitor criar suas teorias. E abaixo eu compartilho a minha, que pode ser completamente diferente da sua pós leitura.

Não importava a época do ano, o percurso sempre era interessante. Cada estação trazia uma mudança de panorama, não de cenário.


O sentimento que eu fiquei era que a narradora estava em uma espécie de purgatório. Suas lembranças são dolorosas, revivendo a dor não cicatrizada na alma. E parece não haver nenhuma cidade no decorrer da estrada, apenas casas espalhadas, que me fizeram questionar se poderiam ter relação com a personagem em vida.

Suas paradas são com o pior que há na espécie humana, tanto no aspecto físico quanto no psicológico. Ela tenta corrigir, fazer o certo, mas a forma ou não é convencional, ou não encontra ouvidos dispostos para chegar à solução. O que curiosamente me remeteu ao clima tenso do filme Mad Max, mas no lugar do deserto, o verde dos campos e florestas que acompanham a estrada fora das áreas urbanas.

Será que no dia em que eu morrer estarei só ou acompanhada? Será que vão encontrar o meu corpo logo? Ou quando ele estiver já em decomposição?


O que também pode despertar no leitor a dúvidas se ela está realmente vivendo aquilo, ou é apenas sonhos sequenciais (outra teoria que se passou pela minha cabeça). E assim acaba-se esquecendo onde ela está, que estrada percorre e o sentindo das horas, pois como o próprio título avisa, elas não importam mais. 


As horas não importam mais
Kelli Pedroso
Editora Pergamus
2017 - 72 páginas


terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Parque Industrial



Sinopse: livro de estreia de Pagu, Parque Industrial é um marco na literatura brasileira. Publicado pela primeira vez em 1933, este romance proletário trata da vida de operários no bairro paulistano do Brás. Aqui, os conflitos fabris são conjugados a dramas cotidianos e íntimos, formando uma pintura intricada da sociedade brasileira do começo do século XX.

Na década de 1930 o maior parque industrial da América do Sul ficava em São Paulo. No bairro do Brás moradores de ruas inteiras caminham em direção as fábricas. Lanches são embrulhados em papel pardo e verde enquanto as moças compartilham o perfil de homem ao qual gostariam de se casar, indo do trabalhador ao sonho de se casar com um homem rico.

Pelas cem ruas do Brás, a longa fila dos filhos naturais da sociedade.


Nas oficinas é proibido conversar, mesmo que seja para afastar o perigo. Malandro, Vagabunda são usados em uma época que não existe a mínima possibilidade de processar alguém por assédio moral.

Há os que se indignam, homens e mulheres que tentam captar a atenção de seus colegas para o fato de os operários não serem valorizados, mesmo sendo os principais responsáveis pela produção que gera a riqueza de seus donos. Partidos e sindicados começam a aparecer como solução em uma vida de muitas horas de trabalho, crianças sozinhas em casa e demissão fácil.

Que importa morrer de bala em vez de morrer de fome.


Em paralelo mulheres são enganadas, se tornam mãe solo e se veem despejadas e desempregadas. Para elas só restam trabalhar onde a vida não é nada fácil ou enlouquecer.

Há também as que conquistam o seu passe para a vida de luxo, e logo se esquecem dos que ainda possuem uma vida difícil.

O Carnaval continua. Abafa e engana a revolta dos explorados. Dos miseráveis.


Um pequeno pedaço de Brasil com muitas faces, como ocorre em todas as épocas desde 1500.


A escrita de Pagu

Pagu ou Patrícia Galvão, escreveu este livro aos 22 anos com o pseudônimo de Mara Lobo. Sua escrita é rápida, fluída e direta, sem filtros nos diálogos ou situações da época. Os capítulos não possuem números, mas títulos que dão uma dica do que será abordado.

Trazendo para o leitor do século XXI a realidade nua e crua das mulheres que trabalhavam na indústria têxtil paulistana nos primórdios do século passado.

As criancinhas da classe que paga ficam perto das mães. As indigentes preparam os filhos para a separação futura que o trabalho exige.


Por ser ela própria uma militante do Partido Comunista, muitas referências são feitas a ele entre os personagens que lutam por um meio de trabalho melhor. Mas mesmo eles eram conservadores em relação a escrita de Pagu, que escancarou a desigualdade de classes, falou de sexo, perversão e corrupção em Parque Industrial.

Mas o que era um choque na época, com o tempo tornou Parque Industrial uma amostra de o porquê ela ter se tornado um dos grandes nomes do movimento modernista, que completou cem anos em 2022.


O que eu achei de Parque Industrial

As cento e onze páginas de Parque Industrial foram rapidamente percorridas por mim. Como um retorno ao passado, consegui enxergar através do olhar de Pagu as ruas cheias e vazias, as festas, as reuniões, os confrontos nas manifestações, os amores e as decepções.

O trabalho nada fácil, as cobranças e o se ajudar. Me fazendo refletir que apesar de ainda termos situações bastante críticas, conseguimos sim evoluir muito nas questões trabalhistas e no papel da mulher.

Grupos agiram, na manifestação, cartazes rubros, amassados. A tinta borrada dos impressos pede mais pão.


Mas não, o livro não é para se conformar, mas para inspirar na busca por mais igualdade, por mais respeito e claro, mais oportunidades.

Confesso que me surpreendi com a escrita de Pagu, sua história é ao mesmo tempo fluída e reflexiva. E para quem como eu que não viveu na década de 1930, a primeira pergunta é o que tem de ficção e de realidade?

Como posso dormir sabendo que meus filhinhos sofrem fome?


E mesmo tendo alguns diálogos que levam ao panfletarismo do que a jovem Pagu acreditava na época, isso não atrapalha em nada a leitura, mesmo que você não se identifique com a posição política da escritora, pois o olhar, como o crítico Kenneth David Jackson salientou é de um "documento social e literário".

E foi justamente isso que me fez gostar do livro, este retorno a um Brasil que parecia tão distante, mas cujos ecos de sua realidade ainda ecoam nas comunidades mais pobres. Pois talvez os mais desavisados podem achar que evoluímos muito nestes quase cem anos.

A mãe fora educada na cozinha de uma casa feudal, de onde trouxera a moral, os preceitos de honra e as receitas culinárias.


Mas basta um olhar mais atento para os que se tornaram invisíveis para uma parte da sociedade para saber que entre os mais pobres os anos de 1932 é agora.

É agora porque ainda existem mães que precisam deixar os seus filhos sozinhos para atender os herdeiros das classes mais altas. É agora quando ainda existe trabalho escravo e lugares insalubres, onde se ignora a idade de quem trabalha.

Por que nascera mulata? É tão bonita! Quando se pinta, então! O diabo é a cor.


É agora quando para muitas só resta a prostituição para viver um dia de cada vez. É agora quando milhares de brasileiros passam fome enquanto escrevo estas linhas.

E não é necessário compartilhar as ideias políticas de Pagu para saber que existem situações que são inaceitáveis pela sua desumanidade. Então por todos estes motivos eu recomendo e muito a leitura.

A dor do pobre é o dinheiro.


E seguindo a dica do Geraldo Galvão Ferraz, que faz o prefácio do livro, já coloquei na minha fila de leituras futuras Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade, para fazer a comparação sugerida de dois livros do período do Modernismo.


Parque Industrial
Pagu
Companhia das Letras
Edição 2022
111 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.


quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Apocalipse Bebê



Sinopse: Valentine desapareceu. Filha de uma família abastada porém disfuncional, ela some no caminho da escola e deixa todos desesperados. A jovem detetive Lucie Toledo é contratada para encontrar a adolescente, e pede ajuda a sua amiga mais experiente do ramo, a Hiena. Juntas, as duas começaram um périplo vertiginoso. A busca as leva de Paris a Barcelona, em uma viagem na qual encontram um mosaico de personagens que tiveram algum contato com Valentine. Um submundo sombrio é descortinado, expondo os desejos e os medos da juventude de uma geração.

Em outubro/2022 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria o livro da escritora francesa Virgine Despentes Apocalipse Bebê, uma indicação da escritora Scholastique Mukasonga. O mimo foi um pacotinho de café, acho que para aguentar o tédio do que eu considero um dos piores livros enviados pelo clube desde que comecei assinar em 2017.

Lucie trabalha em uma agência de detetives em Paris, sua missão é seguir a adolescente Valentine, uma menina de quinze anos filha de pais separados, que agride a madrasta e se relaciona com qualquer menino que se depara. Mas um dia Lucie se distrai, e agora no lugar de seguir Valentine ela precisa encontrar a menina.

Não faz muito tempo, eu ainda tinha trinta anos. Tudo podia acontecer.


É um dono de um bar que apresenta Lucie a Hiena, uma detetive particular conhecida no meio, que aceita o caso apesar da baixa remuneração oferecida pela avó da adolescente.

Assim começam as conversas com parentes próximos e conhecidos, o que leva a dupla até Barcelona, em busca da mãe que abandonou a menina muito cedo e não manteve contato com a filha. 

A diferença entre os verdadeiros durões e aqueles que optam pela redenção: uns têm escolha, outros não.


Enquanto em paralelo Lucie que até então se declarava heterossexual vai conhecendo os detalhes do mundo lésbico da Hiena e encontrando o amor.


A escrita de Virgine Despentes

O uso de primeira ou terceira pessoa vai conforme a personagem escolhida como central no capítulo, que com exceção de Lucie, já são identificadas no nome do mesmo. 

No caso da narrativa em primeira pessoa, quem assume a voz é Lucie, que aparece em vários capítulos e é uma das protagonistas da história, sua visão distraída dos acontecimentos é dividida com o leitor.

Me interessam mais o estado das baterias do meu material e os arranhões na lente do que a pessoa que estou seguindo.


Quando muda para os capítulos únicos, a visão passa a ser em uma terceira opinativa, que faz um breve resumo do que as personagens viveram até chegar ao momento do desaparecimento de Valentine, assim como quais são os seus sentimentos em relação a menina, que desperta os diferentes tipos de reações entre as pessoas que a conheceram.

Despentes usa uma linguagem mais debochada, ácida, recheada de clichês e termos grosseiros, que usados a exaustão perdem força e se tornam palavras comuns no texto. E o que parece ser escrito para chocar, acaba dependendo muito do perfil do leitor, que pode achar muito louco e de uma verdade nua e crua, até uma história entediante que parece não ir para lugar nenhum.

Eu me abstenho de contar que também cresci com uma madrasta, o que me faz ter simpatia por qualquer pirralha que espanque a sua. 


Mas ao contrário do que se imagina na sinopse, o livro de Despentes não é um suspense onde as duas detetives, junto com o leitor, montam um quebra-cabeça. Pelo contrário, com o andar da leitura ele se mostra mais uma crítica ao estilo de vida dos ricos franceses e a cidade de Barcelona, ao mesmo tempo que aborda a descoberta do homossexualismo pela detetive Lucie.

Sendo muito mais um livro sobre a personalidade das pessoas do que sobre o mistério de um desaparecimento. Sobre pré-julgamentos e preconceitos. Não podendo deixar de fora as escolhas que cada um faz sobre como viver a sua vida, concessões, ônus e bônus.


O que eu achei de Apocalipse Bebê

Uma ideia de base ótima, uma execução que deixa a desejar, com um capítulo final ótimo que poderia até mesmo ser um conto. Assim eu resumiria Apocalipse Bebê, um livro em que é possível pular tranquilamente todos os capítulos do meio que não irá se perder nada, já que o forte da trama está nos capítulos iniciais e finais, onde outros personagens, que não as duas detetives, entram na história. E o final sim, é muito bom, mas ao mesmo tempo acentua todas as falhas da narrativa conforme o perfil do leitor.

O livro foi comparado com Todos nós adorávamos caubóis - já resenhado por aqui - pelo fato de também serem duas mulheres lésbicas viajando, no caso do livro brasileiro pelo interior gaúcho, no caso do francês entre Paris e Barcelona. Eu colocaria a semelhança pelo fato de as personagens dos dois livros serem péssimas companheiras de viagem, pois como reclamam, é muita amargura ao passar por locais maravilhosos.

Todos que são honestos, ou que têm honra, ou que são gentis, foram exterminados.


Por outro lado, faltou desenvolvimento em relação a personagem Valentine. Suas motivações não são bem trabalhadas, apesar de ser a personagem com maior carga para se aprofundar. Já que definitivamente a conhecida frase pobre menina rica não se aplica como justificativa suficiente para suas ações.

Ao contrário do que ocorre com Lucie e a Hiena as duas personagens cujos os umbigos recebem o foco total da história, pois tanto as ações quanto os diálogos são fracos.

Nunca durma com alguém que está abaixo de você, essa é a condição primeira do respeito à sua feminilidade.


Eu particularmente achei o livro chato, apesar de ter uma boa base de início, não me incentivando a ler aquela página a mais, ficando quatro dias de um feriadão parado em um cantinho. E no retorno comecei a aplicar a boa leitura dinâmica nos capítulos que não acrescentavam em nada a história.

Mas como eu sempre digo, gosto literário cada um tem o seu, então como sempre ocorre, independente de eu ter literaturado a história, deixo a dica para quem curte livros com protagonistas LGBTQIA+, para quem gosta de livros envolvendo estrada, para quem quer uma outra visão de Paris e Barcelona, ou para quem ficou curioso com tudo o que eu escrevi.


Apocalipse Bebê
Apocalypse Bébé
Virgine Despentes
Tradução: Natalia Borges Polesso
TAG - Companhia das Letras
2010 - 319 páginas

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quarta-feira, 30 de novembro de 2022

A Estrada Lincoln



Sinopse: Em junho de 1954, Emmett Watson, um jovem de dezoito anos, é levado para casa, em Nebraska, Estados Unidos, pelo tutor da instituição juvenil onde ficou internado por quinze meses após ter cometido um homicídio culposo. Sem a mãe, que foi embora de sua vida anos antes, o pai, que morreu recentemente, e a propriedade da família, tomada pelo banco, Emmett só quer pegar o irmão mais novo, Billy, e partir para a Califórnia, onde poderão começar uma nova vida. Mas quando o tutor Williams vai embora, Emmett se depara com dois amigos da instituição ― o astuto e carismático Duchess e o zeloso e nada convencional Woolly ―, que fugiram escondidos no porta-malas do carro que o trouxera. Agora, juntos, os quatro pegarão a estrada e terão que conciliar os diferentes planos para o futuro ― um dos quais os levará a uma fatídica jornada a Nova York, direção oposta ao destino final de Emmett.

No mês de junho/2022 recebi pela minha assinatura do Clube intrínsecos o livro A Estrada Lincoln do escritor norte-americano Amor Towles. O mimo foi um jogo americano com o nome do restaurante favorito de um dos personagens.

Emmett é um rapaz tranquilo, que quando provocado inúmeras vezes deixa a razão ser ofuscada pela raiva. E é assim, em uma briga que ele acidentalmente mata outro rapaz na cidade onde mora. Motivo pelo qual é enviado para um reformatório no Kansas, onde conhece Duchess e Woolly.

Adquirira suas concepções nos livros e com a própria experiência, e dispunha de um amplo vocabulário para transformar em conselhos.


Quando sua pena é completada ele retorna para uma casa cuja hipoteca foi executada após a morte recente do seu pai. Restando apenas o Studebaker Land Cruiser 1948, comprado por ele, um dinheiro escondido e a responsabilidade de cuidar de uma criança de oito anos.

Convencido por Billy, seu irmão caçula, a ir para a California recomeçar a vida, e quem sabe reencontrar a mãe que foi embora há muitos anos, mas deixou um rastro do seu caminho por cartões postais, o veículo se torna parte essencial do plano.

Entre todas as pessoas do mundo, ele não podia acreditar que éramos nós.


Até descobrirem que Duchess e Woolly fugiram do reformatório e estão ali na porta dos dois, querendo que Emmett mude a sua roda para que Woolly pegue a herança ao qual tem direito e possa dividir com todos. O que fará com que os quatro rapazes tenham os dez dias mais diferentes das suas vidas.


A escrita de Amor Towles

O livro é separado em dez partes, que representam a contagem regressiva de 10 dias corridos na vida dos quatro personagens principais, que dão nome aos capítulos.

A narrativa que nos coloca no dia-a-dia de Emmett, Billy e Woolly ocorre em terceira pessoa. Já de Duchess e Sally é utilizado em primeira pessoa. Não sendo abordado todas as visões todos os dias, muitas vezes sabemos o que está ocorrendo com os faltantes acompanhando a narrativa de outro deles, normalmente Emmett e Duchess, que são os personagens principais desta história.

Por mais de um ano, acordou com o som de uma corneta e a agitação de quarenta garotos às seis e quinze da manhã.


Como personagem coadjuvante temos Sally, a jovem vizinha de Emmett e Billy que muitas vezes atua como anjo da guarda dos irmãos, ao mesmo tempo que passa questionar a própria vida, questiona o machismo e começa a repensar quais caminhos deve tomar. 

E há também narradores que fazem uma participação especial, como do Pastor John e Ulysses, homens que encontram os irmãos em um vagão de trem e vão atuar de forma distintas no destino dos dois. Assim como Abacus, o autor do livro que Billy carrega para cima e para baixo e que já foi lido diversas vezes.

Do ponto de vista de um homem, a única coisa necessária é que você se sente a seus pés e ouça o que ele tem a dizer, não importa quanto tempo ele demore a dizer ou quantas vezes já o tenha dito.

Explorando personagens ecléticas, o autor entrelaça entre as viagens de carro e de trem, dramas familiares, autodescobertas, influências de fatos de infância, sobrevivência, assim como o grande conflito de responsabilidade com curtir a vida, de certo e errado, de razão e emoção.

Tudo em uma escrita que mistura objetividade e sensibilidade, pois apesar dos pesares, não há lágrimas, e as reações são absurdamente humanas, dando verossimilhança a história.


O que eu achei de A Estrada Lincoln

Na minha opinião ao contrário do que o nome induz, não é exatamente uma Road trip, mas uma série de desventuras de três jovens rapazes e um menino, onde a maior parte das encrencas são originadas por Duchess.

Woolly é o personagem que me deu um nó na garganta. O leitor sabe desde cedo que há algo com ele, que toma medicações diárias, que é um rapaz rico colocado na instituição pela família após o mesmo ser expulso de todos os bons colégios. Da bonita relação com uma das irmãs que o acolhe apesar de todas as loucuras, do lugar de infância marcado na memória.

Por experiência própria, eu sabia que as melhores explicações lançam mão do inesperado.


Já Emmett é o rapaz que precisa virar adulto de um dia para o outro com a perda do pai, assumindo a educação e o sustento de Billy, que aos oito anos vê o irmão mais velho como um dos heróis do seu livro, e não se deixa ficar para trás quando Emmett precisa corrigir o percurso desorganizado por Duchess.

Motivo pelo qual muitas vezes pensei se não era Duchess o personagem principal da história. É ele quem convence Woolly a fugir do reformatório quando faltam poucos meses para serem liberados, para pegar a herança do rapaz. 

Alguns prédios se pareciam tanto, que, quando se ia de uma cidade para a vizinha, a impressão que se tinha era a de que se estava no mesmo lugar.


Também é ele quem rouba o carro de Emmett com a mochila que tinha todo o dinheiro para o seu recomeço, fazendo com que os dois irmãos se exponham a riscos desnecessários atrás de seus bens.

Além de um rastro de violência, já que Duchess resolve aproveitar o carro do amigo para acertar contas passadas e rever antigos conhecidos. Gerando uma eterna dúvida do verdadeiro caráter do rapaz.

Mas, para a maioria das pessoas, o lugar onde residem não faz diferença. Quando se levantam de manhã, não têm a pretensão de mudar o mundo.


E tudo isso de certa forma quebrou a expectativa que o nome do livro - a estrada Lincoln cruza os Estados Unidos, indo de Nova York a São Francisco - havia gerado em mim, pois imaginava algo mais na estrada mesmo, do que uma busca pelo carro roubado na cidade de Nova York. 

E até agora estou em dúvida se gostei ou não. Eu sei que não adorei, as vezes achei a narrativa arrastada, em outras tinha vontade de sacudir o Duchess, me encantei pelo Billy e pelo Woolly, então também não tenho como dizer que desgostei.

A maioria dos criadores de mapa são particularmente talentosos em encolher as coisas.


E o final... não, não vou revelar ele aqui, mas também não contribuiu para a minha decisão, na verdade só deixou mais minhocas na minha caixola.

Ficando a dica para quem gosta de narrativas longas - neste caso mais de quinhentas páginas -, curte voltar no tempo - a história ocorre em 1954 e pega o sentimento daquele intervalo entre as guerras da Coreia e do Vietnã -, e principalmente gosta de desventuras em série.

Apesar da juventude dos personagens não espere um romance jovem adulto, o que temos aqui está mais para romance de formação, cujos personagens podem captar toda a sua atenção.


A Estrada Lincoln
The Lincoln Highway
Amor Towles
Tradução: Regina Lyra
intrínseca
2021 - 576 páginas

Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado - que foi encerrado em setembro - era pago integralmente pela autora. 

terça-feira, 22 de novembro de 2022

A ilha das árvores perdidas



Sinopse: A história de Ada começa em um lugar que ela nunca conheceu: na ilha de Chipre, em 1974, quando dois jovens apaixonados se encontravam escondidos debaixo de uma figueira. A árvore, que testemunhou o amor do casal e a chegada da guerra que viria a desolar a ilha, foi levada para Londres, e dezesseis anos depois é a única ligação de Ada com a sua ancestralidade. A garota, então, embarcará em uma busca pela própria identidade, tecendo uma linha até o passado dos pais e revelando tudo o que se perdeu no tempo.

No mês de setembro/2022 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a edição mais bonita do ano. Indicado pela jornalista Adriana Ferreira Silva, A ilha das árvores perdidas é uma linda obra da autora Elif Shafak. O mimo foi uma deliciosa caixinha de chá verde da Tea Shop.

Um grito que sai da alma e carrega saudade, raiva, incompreensão e solidão. Um grito longo, que não pode ser parado antes de chegar ao seu final em plena sala de aula, na véspera da parada dos feriados de natal e ano novo. Grito que sai de uma adolescente que desconhece o passado de seus pais, e não convive com nenhum familiar.

Mas as lendas existem para nos contar o que a história esqueceu.


Uma figueira que originalmente morava na ilha de Chipre, no meio de um bar, e agora se vê derrubada pelo mau tempo na Inglaterra e é cuidadosamente enterrada no pátio de uma casa, cujo amor pelo morador começa a crescer.

A chegada de uma tia que só pode visitar a sobrinha após a morte dos seus pais, cheia de superstições, tem o sonho de usar roupas coloridas, e faz comidas tão cheirosas que parecem ultrapassar o limite físico das páginas.

Era capaz de detectar a tristeza de outras pessoas da mesma forma que um animal era capaz de farejar outro de sua espécie a um quilômetro de distância.


Um homem que perdeu o amor da sua vida e agora tem dificuldade de se comunicar com a filha adolescente, ficando em uma espécie de bolha junto a suas plantas.

E duas histórias de amor que conseguem tocar o coração ao mesmo tempo que nos mostram como uma guerra é injusta com os inocentes e como suas marcas são eternas.

A guerra é uma coisa terrível. Todas as guerras. Mas as guerras civis talvez sejam as piores, quando velhos vizinhos se tornam novos inimigos.


A escrita de Elif Shafak

A delicadeza deste livro começa pela narrativa. Alternando entre primeira e terceira pessoa, temos a voz da Figueira, que a tudo assistiu e é a responsável por completar as informações que os humanos não veem ou não ouvem.

Em terceira pessoa acompanhamos o tempo presente de Ada, Kostas e Meryem, cada um, de sua maneira, tentando superar a perda de Defne, a mãe, esposa e irmã dos três personagens.

Histórias, talvez, mas eu acreditava nelas. Assim como acreditava em lendas e no fundo de verdade que tentavam transmitir. 


E também no tempo passado conhecemos a Ilha de Chipre onde os jovens Kostas, descendente de gregos, e Defne, descendente de Turcos, se apaixonam e vivem um romance proibido. Quem ajuda este casal são dos donos do bar Figueira Feliz, onde a narradora se originou, também com descendências diferentes, Yusuf e Yiorgos são figuras apaixonantes na história.

Neste vai e vem, a autora Elif Shafak compartilha não só o aspecto cultural desta ilha mediterrânea que fica entre três continentes e possui a única capital dividida no mundo: Nicósia, mas também todos os seus conflitos, citando inclusive acontecimentos de outras ditaduras, como as que ocorreram na América Latina.

Não é a minha intenção menosprezar outra planta, mas que chance tem uma maça sem graça diante de um delicioso figo que ainda hoje, era após o pecado original, tem sabor de paraíso perdido?


Conflitos que atingem não só os moradores humanos, mas também o meio ambiente da região, e assim temos a visão de plantas, animais e insetos sobre o que está ocorrendo na ilha, tudo pela narrativa da figueira.

União de fatos e narrativas que tornam o enredo extremamente delicado e sensível, o tipo de história que dá prazer em abrir o livro. 

Os seres humanos perdem o foco com facilidade. Imersos nas políticas e conflitos deles, eles se distraem, e é então que proliferam as doenças e começam as pandemias.


O que eu achei do livro A ilha das árvores perdidas

Eu adorei o livro. A escrita é bonita, me levando não só a vivenciar a história dos personagens humanos, como saber mais sobre árvores, animais e os conflitos de uma ilha ao qual eu conhecia só de nome.

Sim, há algumas questões não respondidas na sua totalidade, e outras cujas respostas foram dolorosas de se saber. Mas não achei que isto atrapalhou a narrativa, apenas deixou um gosto de quero mais.

À medida que envelhece, você passa a se importar cada vez menos com o que os outros pensam de você, e só então consegue ser mais livre.


Existe uma delicadeza no tratamento do afastamento do pai e da filha após a perda da figura de Defne, deixando claro como é difícil a superação de um luto quando ele é cercado de silêncio. Assim como a importância da tia, que traz leveza e histórias para casa, permitindo assim a reconstrução de laços.

Aliás, uma personagem que merecia ter mais da sua história contata era justamente a tia Meryem. Se houvessem desdobramentos deste livro, um com a visão dela seria fantástico, pois me permitiria saber mais da sua relação com as cores e as promessas difíceis de se atender.

Os humanos são muito estranhos, cheios de contradições. É como se precisassem odiar e excluir na mesma medida que precisam amar e acolher.


Gostei muito do recurso de vai e volta entre presente e passado, respondendo indiretamente e no momento certo não só as dúvidas de Ada, mas as minhas, como se estivesse completando um quebra-cabeça.

Assim como gostei da Figueira como narradora, e sim, é quase impossível eu olhar para uma árvore agora e vê-la com os mesmos olhos. Eu, que já gostava de abraça-las, agora vou querer bater longos papos.

Será que cada geração começava inevitavelmente onde a anterior havia desistido, absorvendo todas as decepções e sonhos não realizados?


E os figos... eu passei o livro inteiro com vontade de comê-los, principalmente uma entrada que a minha mãe já fez nas festas de final do ano que mistura figo, queijo brie e vodka.

Então é com saudades desta linda história que eu recomendo este livro que possui um toque de tristeza, mas também de esperança. De se reconectar com as próprias raízes e se ver vivendo momentaneamente em um lugar de conceitos e culturas tão diferentes da nossa, mas com sentimentos tão universais.

E não esqueça de quando chegar na página 293 fazer o teste de fazer a análise do seu caráter com base na primeira coisa que você repara ao olhar para uma árvore. Eu me dei conta que, no meu caso, depende do tamanho da árvore, ficando entre os galhos e o tronco.


A ilha das árvores perdidas
The Island of Missing Trees
Elif Shafak
Tradução: Marina Vargas
TAG - Harper Collins
2021 - 319

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terça-feira, 15 de novembro de 2022

Com armas sonolentas



Sinopse: A trama gira em torno de três mulheres muito diferentes, mas fortemente interligadas, que experimentam um sentimento crescente de abandono e exílio - seja geográfico, seja emocional. A viagem, por assim dizer, que cada uma delas faz poderia ser um jeito de "voltar para casa", em uma busca por sua verdadeira identidade. Neste potente romance de formação, Carola Saavedra discute o feminismo e a maternidade, assim como os mecanismos e as armas secretas do inconsciente.

No mês de agosto/2022TAG Curadoria enviou para os seus assinantes o romance Com armas sonolentas da escritora chilena radicada no Brasil Carola Saavedra. Uma indicação do escritor e professor Carlos Eduardo Pereira. O mimo foi um aparador em mdf.

Anna é uma jovem mulher em busca do sucesso como atriz. Para alcançar o seu objetivo, vale absolutamente tudo, inclusive casar com um diretor alemão que acabou de conhecer e se mudar para um país estranho. 

Mas o casamento não lhe garante um papel de imediato, nem de coadjuvante. Ela precisa estudar o idioma, mas não se esforça. E sozinha em casa, enquanto o marido segue trabalhando em outros lugares, ela vê sua vida social se reduzir, até ser surpreendida por uma gravidez inesperada.

Sempre teve uma grande facilidade de ir embora, como se o passado, tão tênue, rapidamente se dissipasse.


Maike é uma jovem estudante alemã, que surpreende os pais quando um dia resolve mudar o seu estilo de vida. Desistindo de seguir a carreira jurídica como os pais, ela opta no primeiro dia de aula em cursar português.

O novo ambiente a leva recordações do passado e a busca de um antigo amigo de infância que a esfaqueou, entre caminhadas e conversas ela começa a se questionar e descobrir o que realmente ela não quer.

Sentia que minha vida estava cheia de elipses, palavras não ditas, verdades escamoteadas, que se materializavam numa angústia, uma inquietação constante.


Quem completa o trio é a Avó, que começa menina saindo do meio da família para trabalhar como empregada doméstica na capital. Sem poder estudar e tendo apenas um dia de folga, sua distração são os filmes românticos no cinema. Sua inocência facilitam o abuso pelo filho do padrão, assim como as ameaças recebidas ao se descobrir grávida.

Uma pessoa de vida simples que se agarra aos conselhos de uma avó fantasma e sente o coração despedaçar ao ver a filha aos poucos se deslumbrar pela vida de luxo, até abandona-la sozinha no quarto sem janelas.


A escrita de Carola Saavedra

Não existe uma única narrativa entre as três personagens. Se Maike é sempre em primeira pessoa, Anna fica entre a terceira e o monólogo de uma peça. Já avó é sempre vista em terceira pessoa, onde vemos crescer, amadurecer e envelhecer em um quarto sem janela grudado a área de serviço.

E creio ser justamente a avó, a única sem nome na história quem faz com que o livro seja classificado como um romance de formação. Romance de formação é aquele que acompanha o crescimento e amadurecimento de um personagem, onde além da passagem do tempo, isto é, da infância/adolescência até a vida adulta, o psicológico é um componente importante.

será que você não entende, eles não são como nós, são feitos de outra pele, outro material, e vai ser sempre assim, será que você não vê? 


Ao usar três gerações de mulheres separadas pelas mais diferentes circunstâncias da vida, a autora Carola Saavedra mistura desigualdade social, a busca por si mesmo, abandono, ambição, laços familiares, maternidade, solidão e fantasia para contar cada vida em duas partes que ela nomeou como O Lado de fora e O Lado de dentro.

Curiosamente as figuras masculinas são todas meras coadjuvantes nas três narrativas. Temos uma rápida visão de cada uma através das personagens, mais especificamente no caso de Anna, não sabemos como eles lidam com os seus atos.


Onde habitam os seres antes de começarem a existir, onde dormem suas marcas, suas possibilidades?


Motivo pelo qual não é uma leitura para desopilar, já que ela exige atenção para entender o que está ocorrendo, ao mesmo tempo que exige da própria imaginação do leitor para fechar as lacunas que permanecem na história mesmo após fechar a última página.


O que eu achei de Com armas sonolentas

Este livro me fez recordar as pessoas que acreditam que o sangue sempre fala mais alto, o que ligaria de forma invisível as gerações de uma mesma família. Ao mesmo tempo que confirma que pode ser a única coisa em comum entre pessoas tão diferentes.

Contraditório, não? Mas aqui temos Anna, na minha opinião uma pessoa que não sabe amar nem receber amor. Alguém que para crescer profissionalmente se sujeita a tudo para atingir os seus objetivos, que na verdade se resumem a status e fama. Algo que ela se deixou deslumbrar ainda nos primeiros anos de vida, e tornou o centro de tudo.

Nada ali era simples, nada era o que parecia ser.


Maike para mim foi a parte mais sonolenta da história. Achei um pouco sem pé nem cabeça logo nas primeiras páginas da sua narrativa. Uma jovem mulher que parece mais uma menina mimada e perdida, uma rebelde procurando uma causa em uma vida um tanto sem sentido, mas com toda a proteção e cuidado dos pais.

Sua mudança de caminho e profissão surgem do nada, como se fosse uma canção da Rita Lee que começa dizendo “um belo dia resolvi mudar e fazer tudo o que eu queria fazer...”, só que sem saber exatamente o que quer fazer e o porquê.

Sempre lhe pareceu que havia uma dissonância entre o que desejava e o que realmente queria.


Talvez por isso a minha narrativa preferida aqui tenha sido da avó sem nome, que na minha opinião contém as partes mais interessantes e realistas da história - embora seja ela que traga a parte fantástica ao conversar com a sua avó já morta. 

Essas conversas são diálogos sobre o que fazer e suas culpas em relação a própria filha, ao qual constantemente se questiona se a permissão em deixa-la ficar com a avó-patroa e permitir um vislumbre de uma vida diferente são realmente uma boa ideia.

Acabara de completar quatorze anos quando a mãe lhe explicou que não poderia continuar morando com eles.


Confesso que mesmo passado um tempo para refletir sobre a leitura, ainda não sei se gostei ou desgostei do livro como um todo. Eu achei a primeira parte bem construída, com direito a impactos e aquela frase que te induz a seguir em frente.

Mas a segunda parte, chamada O lado de Dentro, um tanto perdida. Não pela mudança na forma da narrativa da personagem Anna, mas pela forma como foi desenvolvida. Em meio ao fantástico, entram metáforas que não conseguem preencher lacunas e dúvidas aos quais sobram para a imaginação completar com base no que se subentendeu.

Eu também não percebi o que ele havia feito num primeiro instante, não senti a dor, apenas o frio do metal na minha pele.

Só que isso não me impede de deixar a indicação aqui, pois leitura é também o momento de cada um, a bagagem literária que o leitor tem e claro, o gostar que não se discute. E talvez, ao contrário de mim, você se identifique com todas as dúvidas de Maike, entenda o comportamento de Anna e quem sabe goste tanto quanto eu da vó.

Só lendo o livro para você saber.


Com armas sonolentas
Carola Saavedra
TAG - Companhia das Letras
2018 - 267 páginas

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terça-feira, 8 de novembro de 2022

Greenwich Park



Sinopse: Quando Helen chega para a primeira aula do curso pré-natal, espera que seu belo marido arquiteto surja logo depois, seguido por seu charmoso irmão Rory e pela esposa dele - a naturalmente linda, e também grávida, Serena. Mas, por Rachel, Helen não esperava. A extrovertida, impetuosa e inquietante Rachel, prestes a se tornar mãe solo, que só quer ser amiga de Helen. Que só quer se aproximar de Helen, de seus amigos e de sua família. Que só quer saber tudo sobre eles. Cada um de seus segredos.

No mês de junho/2022 recebi pela minha assinatura da TAG Inéditos o livro Greenwich Park da autora inglesa Katherine Faulkner. O mimo foi um marcador de página em formato de pingente.

Helen vive em uma bolha onde idealiza a própria vida. Casada com um arquiteto, mora na casa que foi de seus pais, uma mansão vitoriana próxima ao Greenwich Park, na cidade de Londres.

Mas você precisa saber a verdade, mesmo que, depois de todo esse tempo, ainda se recuse a ouvir.


O marido é sócio do seu irmão Rory, que herdou a empresa de arquitetura de seu pai. Sua cunhada Serena também está grávida, e assim ela imagina que todos gostariam de participar juntos do curso de gestantes. Mas nenhum dos três aparecem, e com todos os demais casais completos, lhe resta como companhia a jovem Raquel, igualmente sozinha no curso, mas expansiva e falante, ela é exatamente o oposto de Helen.

Aos poucos ela vai aparecendo em todos os lugares que Helen está, e em sua solidão, a jovem gestante sem nenhum instinto maternal se torna uma distração que a faz rir e esquecer por alguns momentos os próprios medos.

Eu sei que ele estaria aqui se pudesse, que está arrasado por me deixar na mão. Que essa reunião de última hora foi um simples inconveniente.


Mas o que era divertido se torna mais intenso, e quando Helen pisca, Rachel invadiu não só a sua vida, mas de todos da sua pequena bolha. Só que ao contrário do que você possa imaginar, não estamos falando de um suspense no estilo Stalker, e sim de um quebra-cabeça muito mais complexo do que se imagina no início da leitura.


A escrita de Katherine Faulkner

Logo de cara o leitor se depara com um depois e uma carta ao qual não se identifica a autoria, apenas que ela foi escrita com o desejo de revelar a verdade do remetente e que a destinatária deste desabafo é Helen.

Em seguida retrocedemos no tempo, onde as partes da história são identificadas em semanas, as semanas de gestação de Helen, e alguns finalizam com uma rápida narrativa em terceira pessoa. Nos demais capítulos temos narrativas em primeira pessoa das seguintes personagens: além da própria Helen, contam a história Serena e Katie, esta última é a melhor amiga de Helen e uma espécie de namorada do considerado irmão ovelha negra da mesma.

Tentei marcar encontros, mas de alguma forma eles nunca parecem caber muito bem na agenda das pessoas.


Entre as figuras femininas principais, a única que não é narradora é Rachel, mantendo a sua personalidade e seus reais interesses um verdadeiro mistério para os leitores.

Já na narrativa de Helen a autora, que se inspirou justamente quando realizava um curso pré-natal para escrever sua trama, aborda o lado solitário da maternidade. Os colegas de trabalho que não se interessam em marcar um café, o marido que não tem tempo para acompanha-la no curso. Uma mulher sem nenhuma rede de apoio, sem ter ninguém de confiança para desabafar.

Não sei por que ela insiste em falar disso sem parar, por que parece ter muito mias importância para ela do que para nós.


Além das mudanças físicas que as mulheres passam, o que pode ou não ser consumido - e só quem já engravidou sabe a lista enorme de cuidados neste ponto, incluindo também a questão das perdas gestacionais. 

Mas não pense que só se fala em maternidade não, tem depressão - que não é a pós parto -, pessoas que enganam as outras para viverem de aparências, falta de escrúpulo, a forma como o estupro é lidado quando envolve pessoas de diferentes classes sociais, e traição, porque neste mundo encantado, não poderia faltar este toque com os machos escrotos que compõe a trama.

As pessoas estão ocupadas, ocupadas demais para mim, pelo menos. Já fui esquecida.


Tudo isso junto e misturado em uma escrita fluída e envolvente, que transformam Greenwich Park em um vira páginas.


O que eu achei do livro...

Gostei muito da narrativa da escritora Katherine Faulkner. As peças do quebra-cabeça são bem espalhadas pelos capítulos, não existe informação em vão, sendo necessário para o leitor detetive se manter atento as reações de cada personagem e as situações passadas citadas constantemente por Helen para fazer as conexões e tentar descobrir o mistério antes de chegar ao fim.

Eu particularmente discordo da revista da TAG quando chamam Helen de ingênua. Sim, ela é solitária. Mas também é invejosa. Pois existe um misto de inveja e admiração em relação a Serena, ao qual ela tenta imitar como se assim fosse ter um pouco da luz que ela vislumbra na outra. 

Tudo naquele ambiente está começando a me incomodar: o carpete estampado, horroroso e de má qualidade, as tomadas imundas, o cheiro de mofo, a poeira no parapeito das janelas.


E é isso que a cega, a faz se proteger em uma bolha de perfeição facilmente removível para quem vem de fora. E aqui entra Rachel, a personagem que você não sabe ao longo da narrativa se é ingênua, malandra, golpista ou muito mais do que aparenta ser.

E assim deixo a dica para quem gosta de um bom mistério, um legítimo vira página que irá fazer a sua mente formar diferentes teorias.


Greenwich Park
Katherine Faulkner
Tradução: Marina Vargas
TAG - Record
2021 - 417 páginas

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terça-feira, 1 de novembro de 2022

À beira-mar



Sinopse: Do vencedor do prêmio Nobel de literatura de 2021, uma história arrebatadora de amor e traição protagonizada por dois homens que dividem um turbulento passado em comum.

No mês de Julho/2022 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria o livro à beira-mar, do escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah. A indicação foi da própria TAG, que completou oito anos e enviou uma edição ainda mais caprichada para cantar parabéns junto com os seus assinantes. O mimo foi o livro Os sofrimentos do jovem Werther, primeiro romance do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe.

Saleh Omar chega ao Gatwick Airport na Inglaterra como um refugiado em busca de asilo. Ao contrário de muitos que fazem o mesmo caminho, ele já não é jovem, o que surpreende todas as pessoas que ele encontra pelo caminho.

Estava acostumado com funcionários que fulminam e cospem em você pela menor das faltas, que brincavam com você e o humilhavam pelo puro prazer de brandir sua sagrada autoridade.


Sua esperança consiste no fato do governo britânico conceder asilo a qualquer um que diga estar sofrendo risco de morte. Seguindo as orientações recebidas ainda na sua terra natal, ele finge não saber falar inglês, pronunciando apenas as palavras Refugiado e Asilo. E assim ele escuta todo o monólogo preconceituoso do policial que o atende – ironicamente um descendente de refugiados da Romênia-, para no final ter que aceitar de boca fechada o policial roubar o seu ud-al-qamari, um objeto de inúmeras lembranças.

Quem lhe presta assistência é Raquel Howard, a conselheira jurídica de uma organização de refugiados. É ela que o encaminha para as primeiras moradias - de um centro de refugiado, passando pela casa de uma senhora que ganha para recebe-los até ter um espaço só seu -, e faz visitas para acompanhar a sua adaptação. Por inicialmente fingir não falar inglês, Raquel providencia um interprete: Ismail Latif Mahmud.

Mas o mundo todo já havia pagado pelos valores da Europa, mesmo se durante boa parte do tempo tivesse pagado repetidas vezes sem usufruir deles.


Latif, assim como Omar, é um fugitivo de Zanzibar. Mas sua fuga ocorreu há muito mais anos, quando fugiu da Alemanha Oriental, ao qual foi enviado para estudar. Só que o país de origem não é a única coisa em comum entre os dois, pois como o destino gosta de brincar, é hora de retornar a um passado que nenhum dos dois esqueceu.

Um acontecimento em comum os une, não só como memória, mas como fator determinante para que estejam novamente frente-a-frente, ambos fugitivos, ambos marcados por inúmeras tristezas.

Agora nos continham, um incômodo casual e sem valor que precisava ser mantido sob vigilância.


O encontro destes dois homens irá desenterrar velhas lembranças, e enquanto eles enfrentam os próprios fantasmas, o leitor descobre não só sobre as suas vidas, como toda a cultura e mudança política do seu lugar de origem.


A escrita de Abdulrazak Gurnah

À beira-mar possui dois narradores: Saleh Omar e Latif, que contam a sua história sob o seu ponto de vista, o que em muitos momentos servem para complementar ou deixar em dúvida o leitor em relação ao comportamento e caráter de um dos personagens.

Assim como o mar, o autor Abdulrazak Gurnah convida página a página a mergulhar mais fundo na história, com momentos de calmaria, outros de contradição, de alegria e também muita dor. 

Ninguém capaz realmente de me ver, gente sofrendo a pressão de seu próprio trabalho e conhecendo incontáveis histórias e descrições de mendigos como eu.


Da religião mulçumana com suas regras, passando pela mulher casada que se utiliza do sexo para obter vantagem e vingança de homens poderosos, o homossexualismo conhecido, mas não escancarado. Até chegar as regras de um país que muda conforme quem está no poder, trazendo a população muitas incertezas.

Por explorar a história dos dois muito além da superfície, e por sabermos como ele estão no presente, é um livro que explora muito da memória, não só dos homens que compartilham as suas experiências pessoais, mas de um país inteiro.

Esta é a casa em que vivo, pensei, uma linguagem que late e me menospreza atrás de cada esquina.


E por isso mesmo também de escolhas e caminhos escolhidos, sobre como cada palavra ou atitude podem mudar um destino. Ao qual pode determinar inclusive a solidão por vontade própria.


O que eu achei de à beira-mar

Eu gostei muito da narrativa do escritor Abdulrazak Gurnah. Se no momento presente temos dois narradores ainda vivendo as perdas de um passado e tentando recomeçar do zero em um lugar totalmente novo. O antes é recheado de dúvidas, trapaças, mesquinharias e muita vingança.

Vingança que ganha ainda mais espaço quando entra a parte da história política de Zanzibar, uma ilha pequenina da África que viveu uma revolta sangrenta em 1964, com prisões arbitrárias, assassinatos e perseguições. O que motivou pessoas como o próprio autor a fugirem para o Reino Unido e recomeçarem.

Houve tanta crueldade em sua vida que hesito em julgá-lo com severidade, mas era negligente.


Motivo pelo qual Abdulrazak Gurnah pode narrar com propriedade de quem sentiu na pele o tratamento recebido pelos exilados, em como é abandonar tudo o que você conhece para recomeçar em um local novo, onde nem todos os habitantes desejam a sua presença.

Ficando assim a minha recomendação para quem gosta de livros mergulhados em memórias, com recomeços após perder tudo, e em que a história é construída com base em acontecimentos e vivencias reais. 


à beira-mar
By the Sea
Abdulrazak Gurnah
Tradução: Jorio Dauster
TAG Curadoria - Companhia das Letras
2001 - 365 páginas

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terça-feira, 25 de outubro de 2022

A Influencer


Sinopse: Narrado sob a perspectiva de três vozes nada confiáveis, o romance de Ellery Lloyd ― pseudônimo do casal britânico Paul Vlitos e Collette Lyons ― prende a atenção do leitor até a última página. Há uma diabólica conspiração em curso, pontos de vista diferentes para os mesmos fatos e, claro, mágoas que não podem ser resolvidas. Ao explorar o lado sombrio do universo dos influenciadores e os perigos da hiperexposição da vida privada, A influencer surpreende ao demonstrar nossa necessidade quase desesperada de sermos vistos e validados nas redes sociais e questiona até onde somos capazes de ir em busca de likes.

No mês de Maio/2022 recebi da minha assinatura da intrínsecos o livro A influencer, thriller de estreia dos escritores ingleses Collette Lyons e Paul Vlitos, que utilizam o pseudônimo Ellery Lloyd para transformar dois em um. Os mimos foram uma fita salva-celular e um porta-cartão.

 Emmy Jackson era uma editora de moda, namorava um escritor de relativo sucesso e nem sabia se um dia seria mãe. Mas em meio as mudanças editoriais da era digital ela precisava se reinventar. Seguindo a sugestão da sua agente ela passa a investir nos próximos grandes mercados. E quando se descobriu grávida, ela se tornou uma Instamãe, mas não qualquer uma, a @mama_semfiltro possui milhares de seguidores e transformou isso em profissão. 

Já faz um tempo, em todo caso, que sinto como se estivesse vendo um filme da minha vida se desenrolar diante dos meus olhos.


Dan, o marido, de autor celebrado se torna uma sombra de Emily. Enquanto tenta escrever um segundo romance, demonstra se sentir incomodado em administrar a vida artificial que parece invadir a vida real da família, gerando dúvida se com ele a esposa é sincera ou apenas mente, engana e manipula como faz com os demais.

Mas ter um perfil de sucesso exige esforço de todos – inclusive das crianças -, principalmente quando este se torna a sua principal fonte de renda. É necessário dar atenção aos seguidores, postar fotos com quem lhe impulsiona, dar entrevistas, se renovar, dar ares de naturalidade para produtos patrocinados, e sempre ter resposta a todas as perguntas, mesmo quando você não tem ideia ou nunca passou por determinada situação. 

Mas, afinal, quem pode falar de verdade que as coisas aconteceram exatamente como tinham imaginado?


E enquanto Emily se preocupa com haters e trolls, risco de cancelamento, formas de expandir o seu negócio e crise conjugal, uma de suas respostas aleatórias terá consequências.

Estas consequências tem um único início, uma personagem em busca de vingança por um retorno de Emily que se tornou fatal para alguém que ela amava. E a vingança neste caso exige um planejamento frio e calculado.


A escrita de Ellery Lloyd

Utilizando a narrativa em primeira pessoa, os autores Collette Lyons e Paul Vlitos utilizam três narradores para contarem a história, sendo um sem nome e sem número de capítulo.

Logo no Prólogo sabemos que Emily se encontra em uma situação delicada, de extremo perigo, para a seguir retornar seis semanas no tempo e acompanhar o dia a dia de Emmy e Dan.

Minha mulher, é muito fácil de se identificar com ela. As pessoas gostam dela. De pessoas como ela.


Emmy é muito convincente em contar sua história, mas é justamente Dan que coloca aquela pulga atrás da orelha sobre os atos da esposa. O que é real? O que é deliberado? Qual o preço que Emily está disposta a pagar para atingir suas ambições?

Tudo isso em um ambiente que utiliza a face real de maternidade, com todas as suas dúvidas, os grupos de mães, das lágrimas e desafios, transformando isso em marketing, separando os acontecimentos em dias cinzentos e dias coloridos.

Pensei que, de algum modo, se eu visse você, ajudaria. Me ajudaria a te odiar menos. Me ajudaria a deixar a raiva ir embora.


Quem dá a tensão a tudo isso é justamente o terceiro narrador, a princípio sem nome, que pouco a pouco vai revelando acontecimentos passados até compartilhar os seus planos no presente. O que faz com que a cada personagem que se aproxime da família um possível vingador nos olhos do leitor.


O que eu achei...

Confesso que me surpreendi positivamente com o livro, achei que seria algo bobo e comecei a ler sem pretensão nenhuma. Mas não, por trás do suspense há uma grande crítica a exposição extrema, as mentiras inventadas para ganhar mais likes, os personagens devidamente desenhados para encantar o público.

Em relação aos personagens, nenhum dos três narradores conseguiram ganhar a minha empatia. Achei a postura do casal um tanto nojenta, e fiquei com muita pena das crianças, que são os mais vulneráveis neste paraíso instangrável criado pelos pais e equipe do perfil.

É para esse momento que programo meus posts, aparentemente pensados na hora e improvisados, mas na verdade pré-fotografados e já escritos.


Pois para ele absolutamente tudo vira negócio, por mais dor que isso possa provocar, por mais traumas que isso traga aos seus próprios filhos, beirando o absurdo. Ao mesmo tempo que serve de alerta para quem é viciado em redes sociais: não é porque você admira alguém que deve levar todas as opiniões e conselhos de um influencer ao pé da letra. Existem profissionais muito mais qualificados para ajudar em diferentes situações.

Em relação ao personagem que busca vingança, senti e compreendi a sua dor conforme ela era revelada, mas não consegui aceitar a forma como se buscou ameniza-la. A perda acrescida da necessidade de vingança a destroem por dentro, tornando claro o quando precisa de ajuda.

Com um pouco de pesquisa, você percebe que a rede social proporciona um entendimento muito simples daquilo com que as pessoas em todo mundo se identificam.


Em contra partida, gostei da forma como abordaram a maternidade, das relações pessoais, passando pelas imperfeições até o fato de que não, nem tudo é tão drástico assim. embora quando você tem uma média de duas horas de sono por dia acredite que é.

A escrita fluída e a tensão que vai crescendo junto com a passagem do tempo convidam o leitor, como em todo bom suspense, a virar mais uma página e ser surpreendido pelos acontecimentos. Com direito a frio no estômago conforme me aproximava do desfecho.

Tenho total ciência de que cada decisão que tomo agora, cada decisão incorreta, está me custando tempo. 


Ficando a recomendação para quem curte um bom suspense, e sim, as seis semanas irão passar voando. E se você gostar da dica, deixa um like, só para entrar no clima.


A Influencer
People Like Her
Ellery Lloyd
Tradução: Luciana Dias e Maria Carmelita Dias
intrínseca
2021 - 304 páginas

Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado - que foi encerrado em setembro - era pago integralmente pela autora. 

terça-feira, 18 de outubro de 2022

K.



Sinopse: K. é a história de um pai em busca do paradeiro da filha desaparecida durante os anos de chumbo. A angústia desse pai é costurada com vagar, intercalada por vozes distintas que irrompem em meio à sua odisseia. Vozes que acompanharão, ora sofrida e comoventes, ora escabrosas e cínicas, o desfiar da trama. O leitor fica suspenso, como à beira de um abismo, incapaz de interromper a leitura, mesmo que conheça, desde as primeiras linhas, o desfecho da história.

No mês de Junho/2022 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria o livro K. do escritor brasileiro B. Kucinski. A indicação foi da também escritora brasileira Natalia Timerman. O mimo foi uma pequena caixa em MDF para ser usada para armazenar memórias.

Eu começo esta resenha dizendo que K. é um livro bastante indicado para quem não viveu os anos de ditadura no Brasil ou que conseguiu viver durante aquele período em uma bolha. Não que ele traga a história completa de anos tão vergonhosos da nossa história, mas é uma mistura de ficção e fatos reais que podem estimular a buscar por mais informações e entender o motivo pelo qual este tipo de regime nunca deveria ser aceito.

Sempre me emociono à vista de seu nome no envelope. E me pergunto: como é possível enviar reiteradamente cartas a quem inexiste há mais de três décadas?


O escritor Bernardo Kucinski nos apresenta diferentes personagens para contar nesta auto ficção o desaparecimento de sua irmã Ana Rosa Kucinski em abril de 1974. Neste período o autor estava na Inglaterra, então quem percorre a busca pela filha desaparecida é o pai, que mescla a dura realidade de não saber o paradeiro de uma pessoa amada com as próprias lembranças.

Pois K. é um judeu polonês que ao escapar para o Brasil da segunda grande guerra ainda tenta preservar o iídiche, língua materna de milhares de judeus que desapareceu durante o holocausto. O que lhe proporciona conhecer várias pessoas, ser respeitado por algumas, mas não ser ajudado por nenhuma que por aqui viviam. Descobrindo que é entre os desconhecidos, tão perdidos em suas buscas quanto ele, que algumas peças de uma quebra-cabeça nunca resolvido serão juntadas.

Ele, que nunca blasfemava, que tolerante aceitava as pessoas como elas eram, viu-se descontrolado, praguejando.


Além do pai estão os companheiros da irmã, em sua luta política, há capturas e torturas, nem todos suportam a dor, nem todos possuem resistência para ficarem calados. O risco e a condenação existem em ambos os lados, o que permite entender quem preferiu ficar neutro durante todo o período, tornando a ignorância e alienação o melhor dos salvos condutos.

Pois em meio a uma guerra interna de um país, os atos e pensamentos acabam tendo mais semelhanças do que se imagina. Havendo uma linha tênue entre o certo e o errado, o justo e o desonesto, a busca de um ideal e a desumanização.

Há um informante entre eles, um traidor ou um agente infiltrado, alguém muito próximo a eles dois, entre os poucos que restaram.

 

Há os torturadores e seus pequenos obstáculos, como o que fazer com o cachorro de um casal sequestrado? Ou a pobre faxineira que se vê diante de um lugar imundo por uma sujeira comum. 

Os que mandam ordens de morte sem remorso, como máquinas que nada vislumbram por trás de cada alma. Ou seus engenhos com cartas e telefonemas falsos, tentando iludir familiares com relações em outros países, de que seus filhos, pais, maridos, simplesmente fugiram e se encontram vivos em outro lugar.

Além do mundo que se vê e nos acalma com seus bons-dias boas-tardes, como vai tudo bem, há um outro que não se deixa ver, um mundo de obscenidades e vilanias.


E há também referência a outras famílias, como do Marcelo Rubens Paiva, que conta a história do seu pai e a luta de sua mãe no livro Ainda estou aqui, já resenhado aqui no blog.


A escrita de B. Kucinski

Memórias. O autor Bernardo Kucinski utiliza das memórias de vivência, do que conhece, do que leu e da sua imaginação para escrever um livro direto, forte, com diferentes olhares e sem nenhuma esperança.

Desde o início sabemos que não houve final feliz, que sua irmã foi mais uma das desaparecidas politicas aos quais a família não pode nem ao menos fazer uma cerimônia de despedida, já que nem isso foi permitido pelo rabino.

Podia pagar pelos livros, mas os roubava por princípio. Expropriava-os em nome da revolução socialista, dizia aos poucos cúmplices em segredo.


É uma escrita que nos faz repetir expressões como Porque isso aconteceu? Como isso foi permitido? Onde está a humanidade desta gente? O que passa na cabeça alguém querer isso de volta? Qual o motivo de manter essa tortura psicológica mesmo passado décadas dos acontecimentos?

Não é à toa que o livro foi um dos finalistas dos prêmios São Paulo de Literatura e Oceanos.


O que eu achei

Creio que por tudo o que escrevi até aqui, ficou claro que K. não é um livro fácil de ler. Apesar de serem menos de duzentas páginas, é uma história pesada, que gera angústia, arrepios, e um sentimento de desespero ao imaginar o que cada família passou.

Tive também momento de indignação, como da postura da USP, local onde Ana Rosa era professora, que a demite por abandono de emprego por não constar registro de sua prisão. Na comissão, nenhuma voz se levanta, ninguém se arrisca, todos simplesmente aceitam. Mas quem pode culpa-los? Quantos leitores não fariam o mesmo para se manterem vivos?

Toda vez é assim, levanta de um pulo, toda assanhada, depois desaba, burra, não sabe que eles nunca mais vão voltar. Como é que os cachorros podem ser tão espertos e tão burros ao mesmo tempo?


E como não entender a culpa paterna, de quem por tanto tempo se dedicou aos próprios hobbies sem saber que o tempo com a filha seria cortado de maneira brutal e sem resposta? Como imaginar que o tempo dedicado a literatura o afastaria da vida da filha? Que um novo casamento poderia dar início a um abismo? E principalmente, que deveriam haver mais fotos para quem sabe alguém a reconhecesse? 

Uma leitura dolorida que vale a pena ser vivida, nem que seja para não repetirmos os mesmos erros, para entender o vazio gritado por muitos, para aprender que opiniões diferentes não devem ser silenciadas, mas viverem pacificamente de forma democrática. Um livro de memórias para nos fazer lembrar o que nunca deve ser esquecido.


K.
B. Kucinski
TAG - Companhia das Letras
2011 - 199 páginas

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Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Vida desinteressante



Sinopse: Nesta reunião de textos escritos entre 2014 e 2017, Victor Heringer entremeia literatura, filosofia, poesia, filosofia e política para refletir sobre si mesmo, mas também sobre as transformações do mundo ao seu redor. Com um estilo que mistura memórias, ensaios, anotações e crônicas, o escritor se consagrou como uma das mentes mais brilhantes da sua geração.

Com organização e apresentação de Carlos Henrique Schroeder, Vida desinteressante são os textos escritos no período de 2014 a 2017 por Victor Heringer em sua coluna "Milímetros" para o site da revista Pessoa. E de certa forma uma homenagem a este jovem escritor que faleceu em 2018.

Misturando diferentes estilos, que continham desde fragmentos de memória, entrevistas com outros escritores, ensaios e crônicas, no livro de 262 páginas encontrei uma mistura de muitas coisas boas em uma escrita fluída, que convida a passear pela mente e pelas opiniões do escritor.


Existem livros nos quais eu gostaria de viver. Em outros, só passaria férias - e alguns são países tão distantes que me contento em ver fotos.


Dividido pelos anos de publicação, por serem colunas são rápidos de ler, duas, quatro páginas, um pouco mais nos textos de entrevistas, sendo perfeito para intercalar com outros livros ou para aquela folguinha rápida em que se ficou com vontade de ler algo para desopilar e refletir sobre outras visões.

De dicas literárias - eu sai com vários títulos anotados -, passando por lugares, histórias e estórias, vivências, sentimentos e opiniões, por um momento me parecia que Victor Heringer estava sentado no sofá compartilhando boas conversas.


Somos finitos no infinito e temos o infinito escrito na nossa carne perecível. Mortais e imortais, simultaneamente. Isso é profundamente irônico, e, como se pode perceber, não muito hilariante.


Boas conversas que iam do campeonato da Beija-flor em 1978, passando por H.G. Wells - onde não falta a citação da famosa transmissão radiofônica de A Guerra dos Mundos -, uma explicação para leigos sobre crítica literária, até sobre em que livros se gostaria de viver. E aqui se Victor Heringer cita Finnegans Wake do Joyce como uma não opção, eu deixo a Guerra dos Tronos como a minha.

Também conhecemos mais sobre ele, o motivo pelo qual opta em trocar o Rio de Janeiro por São Paulo, sobre a morte do pai e o uso de roupas que herdou dele, sobre o fim de tudo, do mundo, das alegrias, das tristezas, e até mesmo da Black Friday. Com a tranquilidade e sinceridade que só um amigo de longa data tem.


A vontade de não morrer não é propriamente o desejo de viver para sempre em carne e o osso. Isso, podemos suspeitar, seria insuportável.


E que bom amigo ele devia ser, conclui isso pelas respostas longas, cheias de intimidade, que outros escritores davam para as suas perguntas em entrevistas com perguntas de quem respeitava e gostava do entrevistado. E isso gerou respostas com alma, como os poetas Matilde Campilho e Ismar Tirelli Neto, dadas somente por quem acredita que a pessoa que está do outro lado é de grande confiança.

Confiança que pode fazer o leitor facilmente também sair da leitura categorizando algumas coisas como Ismar depois de conhecer um pouco mais suas histórias, onde só falta o caneco de chopp para acompanhar o papo. 


A máquina da memória não é muito bem-feita. A taxa de desperdício é assustadora - 40% de tudo o que registramos sai direto pela bandeja de descarte, desaparece em poucos minutos.


Talvez por isso, em algumas das crônicas eu me lembrei de outro grande cronista e escritor que perdemos recentemente: o David Coimbra. E o motivo foram justamente as inúmeras dicas de livros que fazem aquela lista de desejos aumentar, e as crônicas de ambos te convencem a comprar.

Ou pela maneira de exporem suas visões de vida, como se emprestassem por um momento aos seus leitores um óculos onde é possível enxergar o que viveram e os sentimentos que ali pulsaram.


Gosto muito dos erros de percepção que acabam abrindo espaços para novos jeitos de enxergar.


Mas diferente do gaúcho do IAPI, o carioca nem sempre tinha tanta leveza. Existe uma sombra de preocupação nas suas palavras, que podem ser mínimas em alguns momentos e bem expostas em outros. Como na pequena antologia de comentários, que provocam um misto de sentimentos ao reforçar o atestado de como estamos longe de ser uma sociedade realmente evoluída, se é que um dia seremos.

Confesso que fiquei decepcionada ao chegar na última página e descobrir que ele havia morrido tão jovem, com tanto futuro pela frente. Para quem como eu, gostou da escrita de Victor Heringer, restou as obras publicadas.


Vida desinteressante
Fragmentos de memórias: crônicas da revista Pessoa (2014-2017)
Victor Heringer
Organização e apresentação: Carlos Henrique Schroeder
Companhia das Letras
2021 - 262 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.