terça-feira, 7 de novembro de 2023

Gênio e Nanquim


Sinopse: Uma brilhante coletânea de ensaios críticos escritos anonimamente para o Times Literary Suplement entre as duas guerras mundiais, Gênio e Nanquim une os maiores nomes da literatura com a escrita e a análise impecáveis de Virginia Woolf. A obra nos apresenta uma Woolf ensaísta, que expõe a estranheza das peças elisabetanas, o prazer de revisitar seus romances prediletos e o brilhantismo dos clássicos de Charlotte Brontë, George Eliot, Henry James, Thomas Hardy e Joseph Conrad. Mais do que isso, nos revela uma Virginia Woolf leitora, cujo entusiasmo pela literatura nos inspira até hoje.

Com prefácio da tradutora e mestre em estudos literários Emanuela Siqueira, Gênio e Nanquim reúne quatorze textos que podem parecer ensaios, uma crítica literária ou aquele momento fofoca onde Virginia Woolf compartilha detalhes da vida de determinado escritor publicados entre os anos de 1916 e 1935, tanto na TLS quanto na The Common Reader.

O primeiro texto é sobre Charlotte Brontë, inicialmente temos o centenário do nascimento da escritora, mas de forma delicada ele evoca ao mesmo tempo morte e memória em um belo tributo a autora nascida em 1850. Ao mesmo tempo Woolf nos lembra que Charlotte Brontë não possuía espaço no terreno literário, e apesar de não ter amigos para preservar sua memória na área profissional, seus livros conseguiram romper barreiras, despertando interesse em quem vê o seu nome, situação que permanece atual para qualquer uma das irmãs Brontë.

Desses cem anos, ela não viveu mais que trinta e nove, e é estranho refletir sobre a imagem diferente que faríamos dela se tivesse vivido uma longa vida.


Analisando tanto o que define como limitações profundas, como a sua sensibilidade e tenacidade, ao finalizar a leitura do texto eu fiquei com vontade de ler um livro da escritora e observar com mais atenção tudo o que ela havia descrito.

O segundo texto é Horas numa biblioteca, aqui Woolf nos leva para um dos lugares favoritos de todos os leitores e a relação do leitor com o objeto do seu desejo: os livros. Da juventude que se mantém através da curiosidade alimentada por inúmeras páginas até as listas de livros a serem lidos e os realmente lidos (e muitas vezes relidos).

Para começar, convém esclarecer a velha confusão entre o homem que ama aprender e o homem que ama ler, e salientar que não há qualquer ligação entre os dois.


Este foi o texto que me evocou lembranças das primeiras leituras, das idas a biblioteca da escola para procurar novos amigos, o cartão de leitura que chegava cheio no final do ano. 

Também achei o texto muito atual ao citar as comparações entre livros clássicos versus contemporâneos, e a disputa leitor versus intelectual, já que o leitor juiz - aquele que se sente no direito de dizer o que deve ser lido ou não, o que deve ser considerado boa literatura ou não, segue ativo e forte, principalmente nas discussões literárias.

O terceiro texto é sobre George Eliot, pseudônimo da romancista britânica Mary Ann Evans, ao qual eu não conhecia e fui para internet pesquisar, e assim achei ainda mais interessante o paralelo que Woolf faz entre as heroínas das histórias e a própria escritora.

Ela se tornou motivo de riso para os jovens, símbolo conveniente de um grupo de pessoas sérias, todas culpadas pela mesma idolatria e passíveis de desprezo com o mesmo escárnio.


Aliás, só a vida da própria escritora já chama atenção por si, uma mulher que usa um nome masculino para ter liberdade de escrita - precisamos lembrar que em 1850 mulheres deveriam escrever livros leves - passando por seus relacionamentos, cujas escolhas, olha que surpresa, poderiam causar alvoroço ainda nos dias de hoje.

O misto de solidão e tristeza, o transbordamento de energia e calor de seus livros, me deixaram curiosa para ler algumas de suas obras.

O quarto texto tem o charmoso título de As cartas de Henry James, misturando textos do autor com o seu ponto de vista em relação a fama e as críticas, a relação das cidades/países com a literatura e o fato de Henry James ser, na opinião de Woolf, um homem sem raízes, um andarilho que anda a dar suas voltas.

Contudo, ele foi a todos os lugares e conheceu todo mundo, como atesta a farta chuva de nomes célebres e grandes ocasiões.


O quinto texto é sobre John Evelyn, ao citar o diário do autor que estaria completando cem anos no momento do seu ensaio, ela faz um paralelo entre a sociedade, comportamento e um toque de crítica ao autor, ao qual considera a escrita opaca e sem profundidade.

O sexto texto é Sobre reler romances, tendo como base o lançamento de novas edições de escritoras reconhecidas, Woolf nos fala desde a origem do título de um livro até os sentimentos que atingem o leitor durante uma leitura. As diferentes formas narrativas, as críticas, tornando a crônica atemporal ao entender a alma dos leitores de qualquer época.

Para começo de conversa, é óbvio que colocamos na cabeça que existe um jeito certo de ler, que consiste em ler tudo e compreender o livro na íntegra.


O sétimo texto é Aos olhos de um contemporâneo, onde os críticos literários voltam a ser citados, agora com um foco no que é dito sobre os escritores contemporâneos de Woolf, que chega a fazer uma rápida comparação com os clássicos. Sua lista que relata tantos defeitos para os escritos de sua época nos lembra que a vida dá voltas, inclusive na literatura, já que muito dos citados, como Ulisses, hoje são clássicos.

O oitavo texto é sobre Montaigne e o seu texto que é pura filosofia sobre a vida, a morte, a beleza, a sanidade, a alegria... o que permite a Woolf falar da dificuldade que temos de nos expressar e de ser quem se é, até retornar ao próprio Montaigne que define como um homem sutil, meio sorridente, meio melancólico, com seus olhos caídos e seu semblante onírico e perplexo.

Afinal, em toda a literatura, quantas pessoas deram conta de se desenhar com uma pena?


O nono texto é sobre Joseph Conrad, ao qual Woolf abre falando da sua morte sem adeus - ele morreu de um ataque cardíaco súbito aos 96 anos de idade - e lista os livros do autor que ela acredita que irão virar clássicos, a relação com os navios, os grandes títulos na sua opinião.

O décimo texto é Notas sobre o teatro elisabetano, como não poderia deixar de ser, começa citando Shakespeare, e chega aos não tão conhecidos, mas tão perturbadoras quanto o do autor mais reconhecido. Da sensação de quem assiste as peças a uma comparação interessante com um clássico da literatura russa, Woolf nos coloca por algumas páginas em uma poltrona de um teatro inglês, enquanto explica o funcionamento das peças.

Pois tendemos a esquecer, quando lemos as obras-primas de um passado remoto, como é grande o poder que tem um corpo literário para se impor!


O décimo primeiro texto é Os romances de Thomas Hardy, a quem Woolf define como um mestre, ao qual espera que a grandiosidade seja reconhecida com mais justiça pelos críticos do futuro. A admiração que a escritora sente por Thomas Hardy é latente nas páginas, e eu que já li Jude, O Obscuro do autor - e gostei - fiquei com ainda mais vontade de conhecer outras obras do escritor.

Dezessete obras que Virginia Woolf nos apresenta desde o primeiro, publicado em 1871, com suas primeiras dificuldades, mas muita imaginação, seguido do segundo livro e contorno das dificuldades e assim listando, livro a livro a evolução. Há também comparação com o estilo de outros escritores, como Henry James, Flaubert e Dickens. Sempre confirmando a genialidade de Hardy.

Sua força era de caráter espiritual: ele fazia parecer honroso escrever e desejável escrever com sinceridade. 


O décimo segundo texto é A meia-irmã de Fanny Burney, onde temos uma espécie de fofoca literária. No momento do texto havia uma nova edição do livro Evelina e a revelação de que a história era baseada na vida da meia-irmã da autora: Maria Allen, ao qual Woolf define como insensata e desafortunada.

E como em um chá da tarde, o leitor fica sabendo desde como a família foi formada, a mistura da moça rústica, simplória, audaz e impetuosa com a família Burney cujos membros eram cosmopolitas, cultos, tímidos e reservados. E naturalmente vários detalhes das trocas de confidências de Fanny e Maria Allen que inspiraram o livro.

Eram tão cultos, tão inocentes; sabiam tanta coisa, e no entanto não sabiam metade do que ela sabia sobre a vida.


O décimo terceiro texto é Aurora Leigh, o livro de Elizabeth Barret Browning, cujo cachorro de estimação se tornou um livro da própria Virginia Woolf misturando fatos reais com ficção. Mais do que falar sobre o amor que os Browning provocavam nas pessoas até o livro em si, novamente o leitor vai para a poltrona ouvir sobre como a Aurora fictícia parece trazer à tona a Elizabeth real.

E assim mergulha na história da escritora que perdeu a mãe ainda na infância, quando a política não era um assunto feminino e a escrita como forma de vida.

Não havia dúvida de que os longos anos de reclusão haviam lhe causado um dano irreparável enquanto artista.


O décimo quarto texto é O leito de morte do capitão, o último texto de Virginia Woolf é sobre o escritor inglês e oficial da Royal Navy Frederick Marryat e começa juntamente com os últimos textos escritos quando estava perto da morte, tendo referência a uma de suas filhas que lhe trazia suas flores favoritas.

E aos poucos ela vai retornando no tempo, misturando diferentes momentos da vida de Frederick Marryat, dos seus diários de bordo aos dezesseis anos aos demais detalhes de sua vida pública, já sua vida particular não teve tantos detalhes, apenas algumas observações que corriam entre amigos, familiares e conhecidos.


O que eu achei de Gênio e Nanquim

A primeira coisa que me encantou foi a edição de Gênio e Nanquim, o cuidado e as cores deixaram a edição da TAG com a Harper Collins belíssima.

A segunda foi a surpresa com a leveza de alguns textos da Virginia Woolf, ao qual só havia lido Rumo ao Farol - hoje chamado Ao Farol - e achei bastante arrastado na época, me afastando de futuras leituras da escritora.

Mas quem era esse homem moribundo cujos pensamentos se voltaram para amor e flores enquanto jazia entre seus espelhos e pássaros pintados?


Tanto que demorei um certo tempo para abrir os ensaios literários, mas que ao final me surpreenderam positivamente e me abriram a mente para ler outros livros da autora.

Gostei principalmente dos textos finais, onde ela deixou o lado mais técnico e colocou uma leveza e em alguns casos o próprio coração - como no texto do Thomas Hardy - tornando a leitura muito mais envolvente e despertando em mim a curiosidade em conhecer os livros de alguns dos escritores citados.

Ficando a recomendação não apenas para quem é fã da Virginia Woolf, mas como uma alternativa para quem quer começar a ler a autora, para quem gosta de ler textos sobre literatura, para quem busca novos títulos para sua lista de desejos e naturalmente para os ratos de biblioteca que não resistem a virar páginas.


Gênio e Nanquim - Ensaios Literários
Genius and Ink: Virginia Woolf on How to Read
Virginia Woolf
Tradução: Stephanie Fernandes
TAG - Harper Collins
2021 - 175 páginas

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