terça-feira, 31 de agosto de 2021

O Mapeador de Ausências


Sinopse: Diogo Santiago é um respeitado intelectual moçambicano. Poeta e professor universitário em Maputo, ele volta pela primeira vez em anos à Beira, sua cidade natal, às vésperas do ciclone que a arrasou em 2019. Não se trata apenas de um regresso a certo lugar, mas também ao passado longínquo de sua infância e juventude, quando Moçambique ainda era colônia portuguesa. Entre os vivos e os mortos, Santiago revisitará os personagens que fizeram parte de sua história.

No mês de julho a TAG completou sete anos, e como celebração, eu recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria o envio do livro inédito do escritor moçambicano Mia Couto, que traz em O Mapeador de Ausência, não apenas a grafia vigente no português de Moçambique como alguns de seus fatos históricos. Recebi como mimo uma ecobag do Edgar Allan Poe. Sim, estou com uma coleção de ecobags da TAG, qualquer dia envio um e-mail para enviar em um tamanho maior para usar nas compras de mercado.

Em 2019 o poeta Diogo Santiago recebe um convite para retornar à Beira, sua cidade natal, onde é recebido com honrarias. Entre os lugares de infância, muitas memórias da infância, principalmente da figura do seu pai, um poeta e jornalista pertencente a um grupo de resistência aos portugueses, vão preenchendo os seus pensamentos.


Escrevo a dedicatória, torno-me numa espécie de autor póstumo


Existe uma melancolia no seu espírito, e conforme é dito por ele, essa viagem também é uma recomendação médica, como se os lugares tão conhecidos pudessem responder perguntas a tantos anos feitas, assim como matar um pouco da saudade que o acompanha.

As ausências são acentuadas ao conhecer Liana Campos, sua mestre de cerimônia e neta do inspetor Óscar Campos da PIDE  – sigla para Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a polícia salazarista do ditador português António de Oliveira Salazar - que prendeu o seu pai, o poeta Adriano Santiago, durante a guerra de libertação de Portugal, época que Moçambique ainda pertencia ao país europeu. 


A poesia não é um gênero literário, é um idioma anterior a todas as palavras.


Ela lhe entrega vários papéis que estavam com a PIDE e foram guardados por Campos que são relacionados a Adriano, incluindo cartas, diários pessoais e relatórios, o que faz com que ambos circulem por cidades próximas. 

Em comum, ambos possuem uma busca pendente. Ela está atrás da história de Almalinda – também chamada Ermelinda – sua mãe já falecida que se tornou uma figura do imaginário local., Já Diogo quer saber se o primo Sandro Santiago ainda está vivo, jovem considerado doente pela família por apresentar um comportamento afeminado, que sumiu durante o período que servia ao exército português. 


Levo esse livro ao rosto, aspiro o aroma do papel, cheiro o tempo como fazem as mulheres com a roupa dos ausentes.


Em uma corrida contra o relógio tudo precisa ser feito de forma rápida, pois um ciclone está para chegar, mas eles são atingidos antes pelos ventos das lembranças, e ao se deparar com o passado, eles podem finalmente enfrentar sentimentos que os corroem no presente.

Eu sou suspeita para resenhar qualquer livro do escritor Mia Couto, já que sou uma apaixonada pela sua escrita, e como ocorreu em outros livros dele, como A menina sem palavras, O Mapeador de Ausências me encantou.


Um milagre chamado internet. É uma seita com mais seguidores que qualquer religião. E já tem fanáticos...


Alternando a narrativa em primeira pessoa de Diogo com os documentos que ele lê, vamos acompanhando pouco a pouco, de forma poética mesmo nos momentos mais difíceis, dos títulos de cada capítulo, as frases de abertura, os documentos colocados nem sempre em ordem cronológica, as pequenas "brincadeiras" com a memória, enfim, absolutamente tudo tornam a imersão na história mais completa e profunda.

Além disso temos um conjunto de personagens incríveis, como a mãe de Diogo, Virgínia Santiago, que convive com uma sogra difícil, um marido infiel e com a cabeça nas nuvens, e mesmo assim não perde a simpatia com os outros.


Vai falando de si mesmo, sempre de olhos fechados, como se lhe custasse suportar a luz do dia.

A família Fungai também nos complementa e muito a história, como a forte Maniara que nomeia em praça pública os mortos, e seu filho Benedito, que de empregado da família Santiago assumiu o seu papel político, e em pequenos diálogos mostra que mesmo entre as famílias mais engajadas havia invisibilidade.

Somado a isso há o toque de autobiografia e realidade, conforme indicado na nota de abertura do autor, que nos informa que a ficção foi inspirada em pessoas - como o próprio autor do Mia Couto -, episódios - como o massacre cometido pelas tropas portuguesas descritas no livro - e lugares reais, como a própria Beira, cidade natal do escritor. Fazendo o leitor viajar entre o período atual e a década de 1970.


Aprendi que os homens de grandes ideais são, muitas vezes, pessoas de poucas ideias.


Na minha visão o livro explora muito bem os laços que construímos ou não com pessoas e locais, assim como situações da nossa própria história que queremos lembrar, que queremos esquecer ou que muitas vezes mudamos para dar um toque especial em nossas memórias. 

Também nos deparamos com as semelhanças e diferenças dos senhores da guerra com aqueles que combatem, hora espelho, hora contraste, temos um toque de humanidade em meio ao desumano, como se separando os que mandam dos que são mandados. E mesmo entre os que combatem encontramos os que impedem a liberdade, podam entre os seus o direito de fazer suas próprias escolhas, obrigando a se adequar ao que é considerado correto.


Alguém disse que a esperança alimenta multidões. Pois eu digo: o desespero cria exércitos alucinados.


Um livro que decidi ler com calma, e me via espantada ao final de cada dia o quanto de páginas já passadas, ao qual encerrei com um misto de satisfação e tristeza por ter chegado ao fim.

E para quem ficou com vontade de ler, leitura que mais do que recomendo, e não é associado da TAG, a boa notícia é que a Companhia das Letras já está preparando o lançamento da edição que irá para livrarias. Então coloca na tua lista de desejos e já fica de olho.

O Mapeador de Ausências
Mia Couto
TAG - Companhia das Letras
2020 - 293 páginas

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terça-feira, 24 de agosto de 2021

A Biblioteca da Meia-Noite



Sinopse: Aos 35 anos, Nora Seed é uma mulher cheia de talentos e poucas conquistas. Vendo pouco sentido em sua existência, ela coleciona tristezas e arrependimentos. Quando Nora se vê na Biblioteca da Meia-Noite, ganha uma oportunidade para fazer tudo de novo. Como em um passe de mágica, os livros na Biblioteca da Meia-Noite permitem que Nora experimente as vidas que teria vivido se tivesse tomado outras decisões. Com a ajuda de uma velha amiga, ela agora pode reverter cada uma das ações das quais se arrepende, até chegar à vida ideal. Mas nem sempre as coisas correm como o esperado, e o novo rumo que sua vida toma coloca em risco tanto a biblioteca quanto a própria Nora. Antes que o tempo acabe, ela deve responder à pergunta mais importante de todas: O que faz a vida valer a pena?



No mês de Julho/21 recebi pela minha assinatura da TAG Inéditos o livro A Biblioteca da Meia-Noite do escritor inglês Matt Haig. Como mimo uma ecobag da rainha do crime Agatha Christie.

Nora foi o tipo de criança e adolescente prodígio. Ótima nadadora, poderia ser uma futura atleta olímpica. Excelente estudante, parecia que poderia ser o que quisesse e teria muito sucesso. Criando muita expectativa em todos a sua volta e naturalmente nela mesma.

Mas a realidade aos seus 35 anos é que ela se formou em filosofia e trabalha como vendedora em uma loja de instrumentos musicais que está indo mal das pernas. Mora sozinha, seus pais faleceram, tem pouco contado com irmão e sua única amiga, tendo assim como companhia um gato.


Mesmo quando não estava chovendo, ela passava o recreio da tarde inteiro na pequena biblioteca.


Tudo transborda em poucas horas quando ela é avisada que o seu gato está morto na rua e que ela perdeu o emprego. Sentindo-se totalmente inútil, e acreditando piamente que só torna a vida das pessoas que estão à sua volta pior, ela resolve dar fim a tudo ao juntar os seus antidepressivos e bebida alcóolica.

Em uma linha tênue que separa a vida e a morte, a sua mente vai parar em um prédio antigo junto à bibliotecária que a apoiava nos tempos da escola. Nas estantes todos os "se's" da sua vida e um livro muito pesado, onde constam todos os seus arrependimentos.


Enquanto olhava fixamente para a expressão calma e tranquila de Voltaire - aquela total ausência de dor -, um sentimento inevitável começou a tomar forma nas sombras.


Usando dois fatores muito comuns na vida de qualquer ser humano, que são escolhas e culpas, o autor Matt Haig nos leva em uma leitura que consegue ser fluída e ao mesmo reflexiva na forma como o ser humano muitas vezes encara a vida. O livro possui muitos clichês? Sim. Mas a verdade é que as questões existenciais são muito comuns em nosso cotidiano, e quando abordadas, não há muito como fugir.

Pois quase todas as pessoas, aqui isento os psicopatas, carregam a sua dose de culpa e arrependimentos. E se eu tivesse feito isso no lugar daquilo? E se eu tivesse ficado quieto? E se eu tivesse falado tudo o que está entalado? Se eu tivesse dito sim? Se eu tivesse dito não? Se eu simplesmente tivesse dobrado uma rua antes? Se eu tivesse...?


O universo tende ao caos e à entropia. Essa é uma lei básica da termodinâmica. Talvez seja uma lei básica da existência também.


E é justamente este leque que o escritor explora. A cada livro que Nora abre, ela para exatamente no momento de vida que estaria vivendo naquele instante. E logo de início a primeira coisa que observamos é que os problemas simplesmente não desaparecem, principalmente quando as suas raízes são mais profundas do que imaginamos.

Em contrapartida, ao ter uma visão diferente de si, ela também se permite compreender que nem tudo era motivo para sentir culpada, que nem tudo era motivo para ter ficado remoendo arrependimentos. E conforme ela vai se isentando e se perdoando, o livro que antes exigia muita força vai ficando mais leve, e a vida ganhando novos contornos.


Cada movimento tinha sido um erro; cada decisão, um desastre: cada dia, um afastamento de quem ela havia imaginado que seria.


Como eu comentei nos parágrafos iniciais, este livro tem nas primeiras páginas um gatilho muito forte para quem sobre de depressão, pois sim, o que leva Nora para a linha tênue é justamente o desejo de acabar com a própria vida, de não ver solução para o que está em sua volta, enfim, de não ter mais esperanças de que nada pode ser diferente.

Colocando a luz sobre as pessoas que sentem vontade de sumir, seja fugindo de tudo ou de todos ou dando fim a própria existência. Muitas alimentadas pela crença de que só atrapalham, de que as pessoas ao redor ficariam muito melhor sem a sua presença, creditando tudo o que acontece de ruim em sua conta. O que torna a sua vida ainda mais difícil e dolorosa, principalmente por algumas parecerem invisíveis aos olhos dos que estão ao seu redor, onde os pedidos silenciosos de ajuda não encontram quem os escute.


Quando você fica muito tempo num lugar, esquece como o mundo é grande e vasto. Não tem noção da extensão de suas longitudes e latitudes. Assim como, supôs ela, é difícil ter noção da vastidão dentro de qualquer pessoa.


A Biblioteca da Meia-Noite foi um livro que li em dois dias, e que sim, mexeu comigo, pois foi inevitável que eu não remexesse no meu próprio livro de arrependimentos e repassasse alguns "se's" que são tão presentes que nunca se tornaram memória. Um encontro ao qual sigo digerindo questões enquanto escrevo esta resenha.

Por isso foi muito interessante pra eu ver através da ficção que muitas vezes os problemas não mudam de lugar, que os sonhos e desejos alheios não são escolhas nossas, que é apenas ilusão acreditar que o que não foi vivido tornariam o presente mais feliz. Afinal, não existe vida perfeita.


E a gente passa tanto tempo desejando que a vida fosse diferente, se comparando com outras pessoas e com outras versões de nós mesmos, quando, na verdade, a maioria das vidas contém um certo grau de coisas boas e um certo grau de coisas ruins.


E ao mesmo tempo eu tive um sentimento de compartilhar a leveza e a felicidade quando cada arrependimento de Nora se desfaz, ou quando ela se dá conta que determinado 'se' não era a solução dos seus problemas, permitindo que o livro me desse a chance de refletir sobre as situações que me acompanham sem considerar uma medida tão extrema quanto de Nora.

Pois a verdade tanto na ficção e na vida real é que do passado devemos guardar as boas lembranças e o aprendizado, para que cada dia a gente possa decidir por aquilo que realmente é o que desejamos. Que cair, levantar, errar e acertar fazem parte, e não devemos nos colocar nos banco dos réus por cada leite derramado. E para quem já está feliz da vida sem se preocupar com nada disso, fica a leveza da escrita para mergulhar nas muitas vidas de Nora.


A Biblioteca da Meia-Noite
The Midnight Library
Matt Haig
Tradução: Adriana Fidalgo
TAG - Bertrand Brasil
2020 - 319 páginas

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terça-feira, 17 de agosto de 2021

Ada ou Ardor


Sinopse: Este é talvez o romance mais ambicioso de Vladimir Nabokov. Em Ada ou ardor, ele constrói uma narrativa de fôlego, de escopo monumental, em que todos os seus principais temas confluem: há a exploração das lembranças inconstantes da infância, como em Fala memória, há a recriação de territórios fabulosos, como em Fogo pálido; e há o amor proibido por uma menina fugidia, como em Lolita. Carregado de lirismo, o romance é também um feito linguístico, no qual Nabokov arquiteta uma narrativa complexa e fluída, que nos leva através das lembranças de Van Veen em sua tentativa de reconstruir a história de amor que viveu com a prima, Ada. "Nunca antes um romance fez com que a acumulação de experiência humana ao longo de uma vida parecesse tão ricamente romântica", escreve o crítico Boyd, no posfácio deste livro. "Nunca, nem mesmo em Prost, o choque do presente foi tão amplificado por meio da repetição, da recordação, da antecipação, da tristeza, do remorso, da diversão e do êxtase."

A crônica familiar da rica família Veen ocorre na Antiterra - que seria a nossa realidade na Terra em uma imagem distorcida no espelho - durante um período de cem anos, indo de 1868 a 1967. Neste lugar, muitas vezes parece que ainda não ocorreu a Pangeia, tamanha facilidade de deslocamento de um ponto a outro.  E a língua é uma mistura de inglês, francês e russo.

Logo de início iremos conhecer as gêmeas Marina e Aqua, que irão se casar com os primos Demon e Daniel. Estes relacionamentos irão gerar os personagens que são os fios condutores da história, a Ada do título, sua irmã Lucette e o primo Van.


Uma Revelação pode ser mais perigosa do que uma Revolução.


É na mansão de Ardis que Van, então com quatorze anos, e Ada, então com 12 anos, irão começar a ligar o quebra-cabeça que torna a sua aparecia física tão semelhante: a descoberta que eles são na verdade irmãos. Mas isso não irá impedir que eles se aventurem em outras descobertas bem mais íntimas um no corpo do outro, em uma relação incestuosa ao qual mantinham escondida de seus pais.

Entre encontros secretos e saudades aliviadas por cartas, eles crescem mantendo a paixão acessa, mas sem manter nenhuma fidelidade, ao mesmo tempo que vão envolvendo Lucette, ainda inocente, em suas brincadeiras, tornando a sua cabeça jovem bastante confusa.


Verificando que as flores eram artificiais, ele pensou como era estranho que essas imitações sempre tentassem enganar apenas os olhos, em vez de copiar também a sensação úmida e carnuda das pétalas e folhas vivas.


O resultado deste amor proibido irá afetar a todos e nortear os caminhos do casal, em um processo de reencontro e repetição ao longo das páginas. Dividida em cinco partes, elas acompanham Van ao longo dos anos, com um grande enfoque para as mulheres que encontra, os livros que escreve e o momento em que começa a ter consciência do tempo e do próprio envelhecimento.

Para os fãs de clássicos, ao longo da narrativa será fácil encontrar os vários easter eggs que alimentam a história, para confirmar ou entender ao que estou me referindo, basta ler na parte final as anotações de Ada assinadas por um anagrama do autor. São referências a outros autores - como Tolstói, Júlio Verne e Jane Austen -, lugares e as expressões usadas ao longo da história agora traduzidas. Nem todas as opiniões são exatamente positivas, o que de certa forma podem gerar uma comparação de opinião entre o que diz o escritor e o que pensa o leitor.


Ambos buscavam nos livros o máximo de excitação intelectual, como o fazem os melhores leitores; ambos encontraram em muitas obras famosas nada mais do que pretensão, tédio e falsas informações.


No Posfácio o escritor e professor Brian Boyd, considerado o maior conhecedor do autor na atualidade - faz uma análise de Ada ou Ardor, traçando uma linha de comparação com Ulisses de James Joyce, além de resgatar cenas e analisar os personagens e a forma narrativa - como o uso de repetição e recordação. Além, é claro, referenciar outras obras de Vladimir Nabokov, como o polêmico e surpreendente Lolita. Complementando assim a experiência de leitura e possibilitando mais interpretações pós leituras, já que a história é rica em simbolismos.

O livro mistura narrativas em primeira e terceira pessoa, visto que Van é o narrador e o personagem central da história por ele contada, embora possua anotações de Ada durante as suas revisões, ficando claro ao leitor que ele está lendo as memórias deste homem com uma vida digamos bastante intensa.


Pensamentos estranhos e malevolentes atormentavam a mente dele.


Apesar de percorrer o final dos anos de 1800 e mais da metade dos anos de 1900, não é um livro para encontrar referências históricas como as duas grandes guerras, pois cabe recordar, como eu escrevi lá no início, que não estamos falando da Terra e sim da Antiterra. 

Com isso o leitor irá passear por referências filosóficas, eróticas e de ficção científica enquanto acompanha em um misto de romantismo e deboche os movimentos de uma família milionária ocupada dentro da própria bolha, com direito a compra de muitos imóveis e duelos para sossegar os pensamentos após desconfiar de traições.


O prazer de destruí-los não iria curar seu coração, mas sem dúvida limparia seu cérebro.


Mas ao contrário do que ocorreu na leitura de Lolita, ao qual considerei o livro fantástico, em Ada ou Ardor tiveram algumas coisas que me incomodaram, como se os anos de diferença entre uma leitura e outra, o que inclui várias mudanças na forma de olhar o mundo e a maternidade, parecem ter influenciado bastante.

Começo com a mais banal de todas, o uso recorrente de parênteses (). Eles estão em abundância no texto, e eu, particularmente, sinto a leitura travar quando há excessos deles. Sim, eu entendo, é o estilo da escrita, já que parecia alguém revisando e os utilizando para explicar determinada situações ou apenas comentando ou relembrando algum fato complementar da memória. 


Aceitou o toque da mão cega que lhe subia pela coxa e maldisse a natureza por ter plantado uma árvore nodosa estourando de seiva vil entre as pernas dos homens.


As próximas duas se misturam, então vou começar com a que mais me desagradou aqui, que foi a sexualização de meninas ainda crianças. Em Lolita eu relevei este fato por me parecer uma história de pedofilia, em Ada ou Ardor ela é naturalizada pelo narrador e pelos que estão na sua volta, como o velho que cada vez buscada meninas mais jovens para deflorar ou no próprio comportamento de Ada.

Essa sexualidade antecipada faz companhia ao machismo, de homens que duelam por sua honra a olhares que percorrem corpos femininos da unha do pé ao último fio de cabelo, dando uma amostra que o dinheiro compra o respeito alheio, mas não é concedido automaticamente aos seus donos.


Quero examinar a essência do Tempo, não sua passagem, pois não creio que sua essência possa ser reduzida a seu transcurso.


E ao me sentir desagradada, a leitura acabou me trazendo uma reflexão de que a postura masculina descrita não é algo que ficou no passado, que não posso denomina-la como algo característico da época em que o livro foi escrito, pois as situações permanecem atuais, tanto de abuso infantil como a visão da mulher objeto. E talvez seja essa razão de eu não conseguir me divertir com a história.

Então sim, acho que terei que reler ele em um outro momento, para buscar a leveza e fluidez inteligente citada por Brian Boyd. Enquanto os anos não passam, eu deixo a dica para os leitores do blog, principalmente para os que adoram ler um clássico.


Ada ou Ardor - Crônica de uma família
Ada or Ardor - A family chronicle
Vladimir Nabokov
Tradução: Jorio Dauster
Alfaguara
1969 - 605 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Susan não quer saber do amor


Sinopse: Ninguém mais sabe como lidar com Susan Green. A família tem dificuldade com seu jeito arredio e os amigos não conseguem entendê-la. Para Susan, no entanto, só importa que tudo esteja funcionando adequadamente . O que ela não imaginava era que precisaria administrar ao mesmo tempo a morte da mãe, uma batalha judicial contra o irmão e uma gravidez inesperada. Pelo visto, perder o controle vai ser só o início dessa jornada.

Em junho/21 recebi da minha assinatura da intrínsecos o primeiro livro da escritora inglesa Sarah Haywood que já teve os direitos comprados para virar filme na Netflix. De mimo veio o jogo Torre, que virou divertimento da minha filha aqui em casa.


Não sou o tipo de mulher que guarda rancor, fica remoendo problemas ou questionando os motivos de outras pessoas agirem da forma que agem.


Susan não gosta de jogar conversa fora, é bem objetiva em suas respostas, está sempre procurando aumentar a produtividade, não gosta que toquem nela, tem uma coleção de cactos e muito menos quer dividir o seu teto com alguém. Formada em direito, optou por um emprego estável de analista de dados para não ter que ouvir as histórias alheias. Possui um relacionamento com um cara, onde se encontram uma vez por semana em locais impessoais, completando o controle total que sente da sua vida aos 45 anos.

Mas em um mês de agosto o seu mundo controlado e metódico começa a apresentar rachaduras, uma gravidez inesperada, o falecimento da sua mãe e a surpresa de um testamento que deixa a casa em usufruto para o irmão irresponsável, que irá abrir a caixa de segredos familiares.


Talvez essa sensação fosse fruto da minha fobia quase patológica à vida suburbana, a sua mediocridade sedutora e a impressionante obsessão com o mundano.


E a partir daí mês a mês, acompanhamos os acontecimentos se desenrolarem na vida de Susan, e se inicialmente ela nos causa estranhamento, aos poucos situações passadas e atuais nos mostram a razão pela qual ela não confia em ninguém e não quer depender de ninguém.

Seu pai era alcoólatra, sua mãe tinha uma clara preferência pelo filho caçula, sua tia é superficial, seu irmão gosta de coloca-la nas piores situações possíveis e suas primas só contribuem para todo o desgaste. Somado a isso ela passou por bullying na escola e um fim de relacionamento traumático. Só que no lugar de ficar se lamentando, ela construiu a própria armadura, o que resultou em evitar qualquer contato pessoal demais com os que estão à sua volta.


E, de qualquer modo, disse a mim mesma, eu era forte, já tinha prática em me manter distante do que estava acontecendo ao meu redor e de sufocar qualquer reação emocional a isso.


A primeira coisa que eu devo dizer é que o título escolhido para a tradução em português, que não tem nada a ver com o original, engana. Não se trata de uma história romântica, onde uma fria heroína é conquistada por um herói que irá modifica-la completamente.

Não. É um livro sobre relações. Sobre como o impacto que as convivências familiares em uma criança irão ecoar em sua vida durante um período muito longo, moldando suas atitudes, personalidade, visão de mundo e relacionamentos na vida adulta. E principalmente, o quão difícil e surpreendente é derrubar todas as barreiras construídas após anos de mágoas.


Se eu decidisse negar na presença do pai, seria possível que a criança se ressentisse de mim por isso quando crescesse, apesar da minha justificativa de que desejava preservar minha independência?


Só que ao contrário do que se possa imaginar, a escritora Sarah Haywood conseguiu dar leveza nesta história, me fazendo dar boas gargalhadas em algumas partes, já que Susan tem uma língua bastante afiada e uma dose de ironia que a tornam uma personagem muito interessante.

Além disso a escrita de Sarah é fluída, ao dividir em meses a história, ela vai desenvolvendo e resolvendo os acontecimentos, em um ritmo que torna a leitura rápida e ao mesmo tempo incentiva a não parar de acompanhar a personagem. Deixando até mesmo uma saudade ao finalizar a história de Susan.


Mamãe sempre tratou os meus feitos e conquistas com uma aprovação moderada e desinteressada, e as minhas decepções, com pesar igualmente moderado e desinteressado.


E os personagens secundários são ótimos, como a sua vizinha Kate, que após o divórcio se aproxima de Susan, trazendo de bônus seus dois filhos pequenos. O agente duplo Rob, amigo de seu irmão, que acaba fazendo o papel de intermediário e se tornando próximo dela também. De sua única e super sincera amiga Brigid, cujas conversas não possuem melindros. 

Não poderia deixar de falar de Edward, o irmão imaturo que não nos faz discordar das opiniões de Susan, nem das primas gêmeas, que são o tipo de parente que exigem uma dose extra de paciência.


A menina foi incapaz de aceitar sua responsabilidade pela situação em que se encontrava e não parou de reclamar de fome.


Também não foram raras as vezes que imaginei os cuspes lhe caindo na testa após ela discursar como seria a criação de seu bebê. Afinal, quem já é mãe, sabe que a teoria foge e muito da experiência prática.

Um livro que me surpreendeu positivamente, cuja história é bem diferente do que o título insinua, afinal, Susan se tornou distante justamente pela falta de amor, algo que, como todos nós, ela queria, mas simplesmente havia cansado de se magoar. 

Susan não quer saber do amor
The Cactus
Sarah Haywood
Tradução: Ana Rodrigues
intrínseca
2018 - 335 páginas

Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado é pago integralmente pela autora.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Espelho Partido


Sinopse: Espelho Partido é um livro de bastidores. As antigas criadas contam às mais jovens as lendas e os mistérios que envolvem a família Valladaura, mas o quadro completo pertence ao leitor, senhor dessa teia de segredos. Nas palavras da autora Mercè Rodoreda, expoente da cultura catalã do século XX, "Espelho partido é um romance em que todo mundo se apaixona por quem não tem de se apaixonar e quem sente falta de amor procura obtê-lo seja como for: no intervalo de uma hora ou no intervalo de um momento". O passado surge como os tentáculos de um polvo negro e viscoso: um suicídio em Viena, um filho perdido e rejeitado, uma amante cançonetista e uma filha bastarda. Fratricídio. E é com cores intensas que a autora salpica essa narrativa dolorida, que vai do cruel ao comovente, cujo fim se dá um pouco após a Guerra Civil Espanhola.


No mês de junho/21 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria o livro Espelho Partido, da escritora catalã Mercè Rodoreda, indicação de uma outra autora espanhola, cuja escrita eu adoro: Rosa Montero, e tem o seu livro A Louca da Casa foi publicado resenhado aqui no blog. O mimo foi um bonito álbum de fotos com frases sobre memórias.

Teresa é uma jovem muito bonita, que ao ficar órfã recebe o pedido de casamento de um senhor velho e rico. Assim ela abandona a vida como vendedora de peixes, entrega o seu filho ainda bebê, junto com um bom valor em dinheiro, para ser criado pelo seu amante e a esposa. E assim ela recomeça uma nova vida, se adaptando ao novo meio social.


Era um dia encoberto; de vez em quando, entre duas nuvens, aparecia um raio de sol pálido que não durava tanto.


Após ficar viúva é apresentada por amigos a Salvador Valldaura, um homem traumatizado pela perda abrupta de um amor inocente e idealizado. Mas ao ver Teresa, ele se apaixona por ela e a pede em casamento, e assim começa a história da família no impressionante palacete em Sant Gervasi, onde terão uma única filha e mais tarde seus netos como moradores.

Mas ao contrário do que é indicado na sinopse, a história aqui não é contada apenas pelas criadas, e apesar de haver alguns personagens mais explorados, não existe exatamente um principal, pelo menos na minha opinião.


Aqueles olhos aveludados e aquele riso contagiante o deixaram apaixonado.


Narrado em terceira pessoa, cada capítulo traz o olhar de um personagem, sendo que Teresa é a que mais se repete, pois, o leitor a acompanha da juventude até a sua velhice. Mas além dela estão seus amores, seus filhos, seus netos, as criadas, fantasmas e animais.

Em comum tudo está centralizado no palacete, com seu enorme jardim, o seu loureiro, as torres, e no interior seus armários, livros, fotos, cortinas, papeis de parede. Cada móvel uma lembrança, uma memória, que pode ser guardada ou simplesmente destruída. Sendo uma forma simbólica de união, separação, ostentação, degradação, e sobretudo, passagem do tempo.


Tinha-o à frente, estranho, distante de sua vida de mulher rica, quase como se fosse algo encostado...


São três gerações que passam por baixo do enorme teto, entre alegrias e tristezas, há naturalmente as diferenças de opiniões, objetivos e caráter, afinal, família não se escolhe, simplesmente se nasce nela, assim como os sentimentos que corroem cada ser humano, o que provoca indiferença, o que gera arrependimento, o que pode consumir a alma e o que nos devolve a vida.

Eu já havia lido A Praça Diamante de Mercè Rodoreda, também resenhado aqui no blog, e gostei muito do estilo de escrita da autora, de colocar o leitor na rotina de seus personagens, de dar a visão do todo, nos permitindo formar as nossas próprias opiniões e nos sentir extremamente junto a eles, compartilhando o sobe e desce das escadas, os cheiros nas cozinhas ou tendo os olhos ofuscados pelas joias.


Se, em vez de ter nascido para servir, tivesse nascido para ser uma senhora, não teria usado joias - ou teria pouquíssimas.


O que me fez encontrar algumas semelhanças entre os dois livros, como o uso dos pássaros, se na Praça Diamante tínhamos as pombas agora em Espelho Partido são as rolinhas, e eles nunca estão à toa na história. Assim como uma leve pitada de fantástico, que sutilmente nos arrepiar a nuca e nos levar além das paredes literárias. Além é claro de ambos proporcionarem uma viagem por Barcelona, cenário que sempre mistura o colorido e o gótico em suas ruas e prédios.

Em relação a Guerra Civil Espanhola, ao contrário da Praça do Diamante cujos personagens a vivem com força, em Espelho Partido é tudo muito sutil, pois todo o seu impacto e consequências são evidenciados muito mais no próprio palacete do que na vida dos que ali viveram.


Não tenho palavras, não posso dizer o que acontece comigo, minhas palavras não estão em lugar nenhum.


De bônus, para quem gosta de ir além da história, há um Epílogo onde a escritora fala sobre a criação de um romance, inspirações, suas obras, e o que há em comum em seus livros, como anjos e metamorfoses. Um verdadeiro presente para quem admira Mercè Rodoreda e tinha curiosidade em saber mais.

Um leitura que eu recomendo para quem gosta de viajar por outras cidades sem sair do lugar, para quem gosta de acompanhar gerações de famílias, para quem quer conhecer livros de outras culturas, para quem simplesmente gosta de ler.


Espelho Partido
Mirall Trencat
Mercè Rodoreda
Tradução: Luis Reyes Gil
TAG - Planeta
1974 - 315 páginas

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