terça-feira, 26 de março de 2024

Meu pai e suas apostas



Sinopse: Meu pai e suas apostas é uma história poderosa e comovente sobre a busca pela dignidade e a luta contra adversidades intransponíveis. Louise Meriwether tece uma narrativa cativante e, com elementos autobiográficos, que oferece um registro perspicaz da experiência de viver no Harlem dos anos 1930, sob o prisma de Francie, uma corajosa garotinha de doze anos. Este livro é uma jornada tocante pelas lutas e triunfos de uma família determinada a vencer as probabilidades e encontrar seu lugar no mundo.

Minha assinatura da TAG Curadoria começou o ano enviando em janeiro/2024 a indicação da jornalista Fernanda Bastos Meu pai e suas apostas da escritora norte-americana Louise Meriwether. O mimo foi um planner, como já virou tradição nos meses de janeiro para os assinantes.

Francie tem doze anos, vive com os pais e dois irmãos mais velhos em condições bastante precária no Harlem dos anos de 1930, tempos de recessão americana, e consequência direta da grande depressão que ocorreu nos Estados Unidos em 1929.

Sonhei que um bagre grande pulou do prato e me mordeu. Madame Zora dá os números cinco e catorze para peixe.


Enquanto a menina dorme em um sofá velho, o pai sustenta a família recolhendo as apostas e esperanças da vizinhança, mas o dinheiro é insuficiente para sustentar a todos e muito menos para convencer os filhos que o único caminho para melhorar de vida é a escola.

Sua melhor amiga tem explosões de violência, única forma encontrada pela menina de se libertar de tudo o que a sufoca, tornando Francie uma de suas vítimas. A vizinhança em sua volta vive em comunidade que se ajuda trocando xícaras de açúcar pela janela e tentando em meio ao sobreviver compartilhar seu apoio para as dificuldades do cotidiano. Sorrindo e sofrendo juntos conforme os obstáculos que enfrentam.

Meu pai tinha consertado o vazamento grande, mas não havia adiantado muito e, quando chovia lá fora, pingava dentro também.


O resultado são crianças criadas juntas e por conta, já que quando todos cuidam, nenhum cuida. E nisso as meninas irão vivenciar o assédio aos seus corpos, o preconceito e o abuso social sem receber as devidas explicações, enquanto decidem se os sonhos para o futuro conseguirão se manter vivos.


A escrita de Louise Meriwether

Ao optar em utilizar uma narrativa em primeira pessoa, onde o narrador é uma menina se despedindo da infância, a escritora norte-americana Louise Meriwether consegue dar leveza e fluidez em uma história onde racismo, fome, preconceito, injustiça social imperam em suas páginas.

As duas eram mais velhas que o restante de nós porque haviam repetido bastante de ano, e todos, inclusive as professoras, tinham medo delas.


Para quem vive em uma bolha como a minha, em alguns momentos chega a ser chocante a tranquilidade de como os personagens encaram as situações, sejam ela de assédio sexual, seja da desistência de sonhos, uma normalidade que nunca deveria ser considerada normal.

O fato de conter dentro da ficção momentos de autobiografia também mexerem com a minha cabeça, pois como uma boa escritora, Louise Meriwether nos coloca nas ruas do Harlem e não raro me peguei questionando em quantas ruas brasileiras não teriam meninas e famílias vivendo exatamente as mesmas situações, por mais inaceitáveis que elas sejam.


O que eu achei de Meu pai e suas apostas

Em Meu pai e suas apostas, mais do que pobreza, temos o limite com a miséria extrema, onde a família passa fome e frio, e o simples cargo de síndico para ganhar desconto no aluguel é suficiente para que eles não tenham auxílio do governo.

Eu tentava imaginar o que a havia deixado tão malvada.


Apesar dos pais de Francie desejarem que os filhos estudem, tentando acender o desejo de eles almejarem ir para uma universidade, as situações adversas desmotivam os irmãos da personagem, como nos lembrando que dependendo da situação, é mais do que querer, as vezes não sobra nada para poder.

O livro também permite que o leitor acompanhe o declínio de uma relação afetada pela fome, o marido que não aceita que a mulher trabalhe e se sente humilhado ao ter que aceitar que ela vá buscar dinheiro na rua, pode despertar conflitos de opiniões para quem vive quase cem anos depois, principalmente ao ver o cansaço e desespero diário que a mãe de Francie precisa administrar.

Simplesmente não se devia interferir nas brigas de rua do Harlem, ainda mais entre um homem e sua mulher.


No geral eu gostei bastante do livro, embora tenha alguns problemas de revisão, isto não impediu de a leitura ser fluída e chocante. Pois existe uma naturalidade latente em situações difíceis de aceitar, como de homens que trocam pão por passarem a mão no corpo das meninas. Ou na luta diária das mulheres sem rede de apoio, fazendo o possível e o impossível para garantir cada dia da sua família.

E claro o racismo pulsante, onde a violência é aplicada para admitir o que não se fez, onde sentenças injustas são proferidas, um dia-a-dia que não permite aos jovens criarem expectativas sobre qualquer futuro.

Ele só me incomodava quando eu estava sozinha, então eu sabia que ele não nos seguiria.


Um livro que não te permite finalizar a leitura de forma indiferente, seja pelo que se viveu pelas páginas, seja pelas comparações que podemos fazer com a nossa própria realidade.

Ficando a dica para quem gosta de livros com toques autobiográficos, que abordem períodos históricos, racismos e crítica social. E claro, para quem gosta de ler.


Meu pai e suas apostas
Daddy was a number runner
Louise Meriwether
Tradução: Petê Rissatti
TAG
2023 - 189 páginas
Publicado originalmente em 1970


sexta-feira, 15 de março de 2024

Arte importa



Sinopse: Uma emocionante ode de Neil Gaiman à criatividade, à imaginação e ao poder transformador da arte. “O mundo sempre se ilumina quando você faz algo que não existia antes”, diz Neil Gaiman na epígrafe de Arte importa, uma reunião de quatro textos breves e inspiradores do escritor sobre o fazer artístico. Com artes de Chris Riddell, ilustrador renomado e parceiro de longa data de Gaiman, o livro explora como ler, imaginar e criar livremente podem ser elementos revolucionários capazes de mudar o mundo. Com leveza e humor, Arte importa é um livro emocionante e necessário, um apelo inspirador à imaginação e à coragem de criar diante de momentos difíceis. “Seja valente. Seja rebelde. Escolha a arte. Ela importa.”

Em um livro curto, onde ilustração e texto se conectam de forma que o leitor não imagina um sem o outro, o escritor britânico Neil Gaiman explica os motivos de porque a imaginação de cada ser humano pode mudar o mundo em quatro partes, cujos títulos já despertam a curiosidade.

 Em Crença o autor nos convoca a refletir sobre ideia, da dificuldade de eliminar uma pela sua invisibilidade, sobre não censurar os que discordam de uma ideia, desde e não permitir que isso se transforme em violência para calar os que a defendem.

 
Creio que é difícil matar uma ideia, pois ideias são invisíveis, contagiosas e se disseminam rápido.

 

Violências como o ataque terrorista ocorrido no Charlie Hebdo, onde o jornal francês e seu conteúdo viraram notícias no mundo inteiro. Se a ideia do ataque era calar, o efeito foi exatamente o contrário, disseminando aos quatro cantos do mundo.

 Porque corretas ou incorretas, o autor acredita no direito de existir de cada ideia. Conectando a sua existência a liberdade de expressão, onde as únicas saídas permitidas é o debate ou virar as costas e ignorar, sem jamais censurar.

 As ideias já se propagaram, escondendo-se atrás dos nossos olhos, espreitando nossos pensamentos.


Em Porque nosso futuro depende de bibliotecas, leituras e devaneios o autor nos lembra de um dos melhores hábitos que podemos ter: ler por prazer. A ficção, com a ajuda de bibliotecas e bibliotecários pode fazer com que qualquer pessoa se apaixone pela leitura em uma relação mais eterna que a maioria dos relacionamentos.

 E pessoas que leem são mais capazes de - atenção para o link com o primeiro texto - trocarem ideias, argumentarem com as que são contrárias, sem desejar costurar a boca de quem a pronunciou.

 O modo mais simples de criar crianças leitoras é ensiná-las a ler e mostrar como a leitura é uma atividade prazerosa.


Motivo pelo qual um livro não teria faixa etária, tendo como função despertar que as crianças busquem mais e mais livros. Alimentando assim não só a imaginação, mas a empatia que cresce quando você se solidariza com cada um dos personagens.

Em Fazendo uma cadeira entre a montagem de uma cadeira de escritório há vários devaneios entre os passos que ele precisa executar e comparações com a escrita de um livro e que tipo de instruções ele deveria ter.

Bibliotecas representam liberdade. Liberdade de ler, liberdade de expressar ideias, liberdade de se comunicar. 


Quem fecha é Faça boa arte que começa falando da relação do autor com a escola, sua necessidade de escrever e os melhores conselhos que ele não seguiu ao escolher o mundo da arte como profissão.

Seguido pelos motivos dele ter escolhido determinados caminhos, de não pensar nas dificuldades, das indecisões que vão surgindo, da necessidade de equilíbrio entre sonhos e vida real.

 E naturalmente fazer uma boa arte, pois tudo é motivo para criar uma.

 

A escrita de Neil Gaiman

Escrito em primeira pessoa, Arte Importa parece uma conversa do escritor Neil Gaiman com os leitores. Ao refletir sobre assuntos ligados a ideias, imaginação, livros e escritas, ele compartilha experiências pessoais e opiniões.

As ilustrações de Chris Riddell complementam a experiência, tornando o bate-papo quase real, como se o leitor estivesse sentado em um sofá ouvindo o autor falar e gesticular, mostrar fotografias ou simplesmente acompanhando a montagem da cadeira.

 A ficção é a mentira que nos conta a verdade. Todos nós temos a obrigação de fantasiar. Temos a obrigação de imaginar.


O que torna o livro não só rápido de ler, mas também reflexivo.

  

O que eu achei de a Arte importa

 Recebi o livro Arte Importa como mimo na minha assinatura da Intrínsecos (que não existe mais) e ficou na fila para ser encaixado entre as leituras mais densas. E foi assim que ele entrou nas leituras de verão.

Achei a leitura bastante agradável, e nesta conversa em que apenas um fala concordei e discordei de algumas opiniões. O que, como o próprio livro diz, é saudável para seguirmos evoluindo. Compartilho abaixo os dois pontos cujas questões ainda estão martelando na minha cabeça.

Fazer um livro é um pouco como fazer uma cadeira. Talvez devesse vir acompanhado de alguns avisos, como nas instruções da cadeira.  


Em Crença Neil Gaiman defendeu a liberdade ampla das ideias após um ataque covarde a sede de um jornal, eu, por outro lado, lendo após sobreviver a uma pandemia onde ideias antivacinas completamente tortas contribuíram para milhares de mortes, me peguei pensando se realmente pode ser ampla para tudo. O que fazer quando uma ideia se transforma em desinformação e passa a prejudicar os outros, tornando sua disseminação tão mortal quanto um vírus?

E se por um lado eu concordo plenamente que nenhuma ideia é justificativa para ato de violências - aliás, não existe absolutamente nada que justifique um ato de violência - por toda a experiência pós-pandemia eu sigo com uma pergunta na minha cabeça: deve ou não haver limites legais para as ideias?

Se você não sabe que é impossível, fica mais fácil fazer.  


Já no texto sobre leituras, me fez lembrar de um livro que a minha filha pediu para ler e eu disse para ela esperar um pouco mais. O autor diz não haver livro impróprio, eu como leitora concordo que os livros instigam a imaginação e o conhecimento, proporcionando uma visão do cotidiano que muitas vezes não é discutido em casa ou sala de aula.

 Mas será que realmente não devemos levar em conta a idade de uma criança ou adolescente antes de lhe dar um livro para abrir? 50 tons de cinza ou a série Game of thrones são leituras para uma criança de 10 anos? E neste ponto eu discordo e acho que sim, como tudo na vida, a tipos de leitura para cada fase, conforme o amadurecimento do ser humano que estamos criando para o mundo.

Os problemas do fracasso são problemas de desencorajamento, desencanto, necessidade. Você quer que tudo aconteça, e quer na hora, e as coisas dão errado. 


De forma geral o livro foi uma grata surpresa, ao qual combina perfeitamente com o início de ano, já que ele de certa forma nos faz repensar não só a arte, mas a própria vida e de como podemos fazer o novo ano ser melhor. Afinal, todo dia é dia para usar a imaginação, buscar a própria sorte e escolher caminhos.

 

Arte Importa - Porque sua imaginação pode mudar o mundo
Art Matters: Because your imagination can change the world
Neil Gaiman
Ilustração: Chris Riddell
Tradução: Augusto Calil, Ângelo Lessa e Editora Intrínseca
intrínseca
2021 - 112 páginas
Primeira publicação na Grã-Bretanha em 2018

 

sexta-feira, 8 de março de 2024

O guarda-roupa modernista


Sinopse: Entre 1923 e 1929, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade formaram um par icônico da cultura brasileira. O casal Tarsiwald - apelido cunhado por Mário de Andrade -- se consagrou como um símbolo tanto no campo das artes visuais quanto no da literatura. Em O guarda-roupa modernista, a professora e pesquisadora Carolina Casarin mostra como os dois se apropriaram da moda para deixar a sua marca. Inédita, esta farta pesquisa revela como os ideais modernistas e as contradições do movimento podem ser compreendidos a partir da escolha das roupas de dois notáveis intérpretes do Brasil. 

Em O guarda-roupa modernista: o casal tarsila e oswald e a moda, a escritora alagoana Carolina Casarin compartilha sua pesquisa de doutorado relacionando diferentes registros da época: vestimentas, fotografias, pinturas, obras literárias, correspondências, depoimentos e recibos, para contar não só a história de um casal que marcou época pela sua personalidade, mas do próprio Brasil que começava a conhecer o modernismo.

O primeiro ponto a se observar é que, como já cantava Cazuza: vivemos em um museu de grandes novidades. E assim podemos dizer que o poeta Mário de Andrade foi quem iniciou a moda de shippar um casal com a utilização do Tarsiwald, sem a # por conta da época, obviamente.

Poucas peças do guarda-roupa de Tarsila e Oswald foram preservadas, e nem todas as que sobreviveram estão acessíveis ao publico.


Assim como mostrar uma sociedade intelectual burguesa que bebe muitos vinhos, viaja para a Europa e não dispensa a moda francesa para transmitir a sua mensagem e realizar o seu marketing pessoal através da roupa. 

No caso de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade as cartas registram as trocas de mensagens entre viagens, além de amenidades, listas de compras e indicações de estilistas, como Poiret, o favorito do casal modernista que curiosamente já havia perdido a popularidade na Europa por não se atualizar nas suas criações.

E, para Oswald, a "passagem" do Império para a República é um deslizamento de poder percebido de forma natural, mais continuação do que ruptura.


O livro aborda principalmente o período entre os anos de 1923 e 1929, tempo de relacionamento do casal título, que terminou justamente no ano da grande recessão, afetando não só os bolsos, mas como as relações sociais e amorosas da elite paulistana. Mas possui também citações de outros anos de ambos ao comentarem suas memórias.

Uma mistura de moda, busca pelo reconhecimento, arte e poesia entre os protagonistas do grande movimento cultural chamado modernismo no início do século XX, ao qual os ecos repercutem até os dias de hoje.


A escrita de Carolina Casarin

Por ser um livro baseado em uma pesquisa e de não-ficção, confesso que a escrita da autora Carolina Casarin me surpreendeu positivamente. Pois existe fluidez nos capítulos, tornando a leitura agradável.

Fazendo um paralelo com um documentário, os capítulos são bem divididos, e os textos conseguem misturar bem a pesquisa sobre as roupas e os fatos que estavam acontecendo tanto com o casal, quanto com os outros integrantes do movimento que originou o Modernismo.

Tarsila soube desfrutar de sua rara condição de autonomia, que lhe garantiu a liberdade de mulher adulta, manteve o desejo de independência e propiciou o contato com as novidades oferecidas pela vida cosmopolita.


A inclusão das fotos permite um entendimento melhor não só do estilo de roupa optado da época, como também observar por uma fresta um pouco da vida e as próprias obras da Tarsila, ao qual confesso ser fã.

Para quem deseja saber mais, ao final do livro estão listadas todas as biografias, notas e origens das informações utilizadas.


O que eu achei de O guarda-roupa modernista

Eu ganhei estes livros em uma ação comemorativa aos 100 anos do Modernismo feito pela editora Companhia das Letras. E devido ao meu tempo livre ter se reduzido nos últimos tempos, acabei postergando a leitura. Mas confesso que foi uma grata surpresa.

Por ser um trabalho de pesquisa dedicado ao detalhamento das roupas, dei uma pulada em algumas partes por ter achado mais maçante, até porque não sou da área nem uma aficionada em moda. Mas para os fashionistas de plantão, fiquei com a impressão que pode ser bem interessante, até pelo fato de a moda ser bastante cíclica.

O movimento modernista brasileiro foi amplo, com várias fases, e englobou literatura, artes plásticas, música e literatura.


O que realmente me atraiu foram os fatos históricos, as relações interpessoais da época, as personalidades que fizeram acontecer o movimento do modernismo, principalmente de Tarsila. 

Achei muito interessante conhecer um pouco mais da artista através das cartas trocadas e de comentários retirados de antigas entrevistas. Assim como o relacionamento do casal com a escritora Pagu, e fiquei imaginando se uma parte de Parque Industrial foi inspirada no que ela viveu junto ao grupo. 

As fotografias de grupo são exemplares para conhecermos os gestos, as poses e as fisionomias apreendidas pelos retratos.


Um livro de não-ficção que conta um pouquinho de uma geração do início do século XX que pode surpreender desavisados como eu e também quem curte saber sobre a influência da moda na nossa própria história.


O guarda-roupa modernista
o casal tarsila e oswald e a moda
Carolina Casarin
Companhia das Letras
2022 - 275 páginas