terça-feira, 26 de setembro de 2023

Memphis



Sinopse: Joan, de dez anos de idade, a mãe e a irmã mais nova fogem do temperamento explosivo do pai e buscam refúgio na casa ancestral da mãe, em Memphis. Não é a primeira vez que a violência altera o rumo da trajetória da família. À medida que cresce, Joan encontra alívio pintando retratos da comunidade de Memphis. Um dos seus modelos é a Srta. Dawn, uma enigmática vizinha que afirma saber algo sobre maldições e cujas histórias sobre o passado ajudam Joan a ver como sua paixão, imaginação e esperança implacável são, de fato, a continuação de uma longa tradição matrilinear. Joan começa a entender que a mãe, a mãe de sua mãe e as mães antes delas perseverarem, fizeram escolhas impossíveis e deixaram seus sonhos de lado para que sua vida não tivesse de ser definida pela perda e pela raiva. Desdobrando-se ao longo de setenta anos através de um coro de vozes inesquecíveis que se movem pelo tempo, Memphis pinta um retrato indelével sobre legados, celebrando toda a complexidade do que passamos, em família e como país: brutalidade e justiça, fé e perdão, sacrifício e amor.

Julho é o mês de aniversário da TAG Curadoria, motivo pelo qual a escolha do livro a ser enviado é deles. E o livro enviado foi Memphis da escritora norte-americana Tara M. Stringfellow, livro que frequentou algumas listas de melhores publicações de 2022, quem lhe fez companhia na caixinha foi uma vela aromática como mimo.

No ano de 1995 Joan e sua irmã Mia passam horas dentro de um carro enquanto a mãe Mirian foge da violência que sofreu do marido, sendo obrigada a correr para casa que foi de seus pais. Hoje habitada pela irmã August e seu sobrinho Derek.

Ao bater, ao abrir a porta, eu sabia que deixaríamos sair toda espécie de fantasmas.


Mas ao mesmo tempo que a mãe foge de suas dores, ela leva a sua filha mais velha de encontro as suas. Não importa que os médicos digam que ela era muito pequena e iria esquecer. Toda a dor está lá, latente e o medo escorre em forma de xixi em suas pernas infantis.

Só que as mulheres da família North são fortes, e desde Hazel que perdeu o seu grande amor e nunca desistiu de lutar para criar suas meninas bem, suas filhas e netas seguiram sua trilha para sobreviver e também aprender a viver, descobrindo na passagem dos anos que sim elas podem escolher os próprios caminhos e se tiverem coragem suficiente, realizar os próprios sonhos.

Deus era um duende. Uma fada. Podia assumir a forma que Ele quisesse.


O que permite o leitor acompanhar o crescimento, lutas, amadurecimento, dores e alegrias de três gerações da mesma família em uma escrita fluída que nos faz viver em Memphis nas suas pouco mais de trezentas páginas.


A escrita de Tara M. Stringfellow


Logo de início encontramos uma dedicatória a Gianna Floyd, filha do afro-americano George Floyd, cuja cenas do seu estrangulamento em maio de 2020 chocaram o mundo. A escritora americana Tara M. Stringfellow define o seu livro como um conto de fadas negro, e ao mesmo tempo que diz a menina que talvez ela ainda não esteja pronta para a leitura, transfere o questionamento para os leitores que abrem o seu livro.

A autora divide a história da família North em três partes em um vai e vem no tempo. Na primeira parte temos 1995, 1978 e 1988. Já a parte dois temos 1997, 1937, 1943, 1955 e 1978. Já na terceira e última página temos 2001, 2002, 2003, 1968 e 1985. E ao contrário do que se possa imaginar, o vai e vem de passado e presente, não torna a leitura confusa, muito pelo contrário, ela vai preenchendo os vácuos ao pouco, ao mesmo tempo que nos ajuda a entender mais da personalidade das irmãs Mirian e August.

Ela repreendera a filha apenas por querer existir como uma criança.


Existe diferença também na forma narrativa. Joan narra em primeira pessoa, o que nos permite ver e sentir tudo com o seu olhar. Já as demais personagens - Miriam, August e Hazel, já possuem um olhar externo, tendo a narrativa em terceira pessoa. Mia não tem capítulos próprios, tendo parte da sua história contada pelas outras.

E nestes capítulos elas abordam diferentes pontos de vida desde um amor que aquece o coração de quem lê, até a violência física e psicológica sofrida pelas mulheres. Do desbravamento de profissões em diferentes épocas - onde não só o gênero, como a cor pesam muito - até as disputas territoriais, a maternidade solo e a importância de uma rede de apoio. Com a busca pela força e coragem que muitas vezes as mulheres acreditam que não possuem, mas as encontram em momentos chaves.

Talvez eu não fosse tão diferente de meu pai. Um pensamento desconfortante. Talvez ele me tivesse feito dessa forma, percebi. com raiva.


Além disso a autora coloca vários fatos históricos como pano de fundo nos acontecimentos dos personagens. Desde a parte musical com o blues o rock'n'roll, passando pelo pós guerra, o assassinato de Martin Luther até o atentado de 11 de setembro. E naturalmente o racismo, pulsante em diferentes situações, e que influenciam até mesmo na escolha de uma profissão.

Tudo isso em uma escrita envolvente, fluída, que não só nos aproxima dos personagens, como nos faz sentir as mesmas sensações, nos gera questionamentos e indignações.


O que eu achei de Memphis


Memphis inicia com impacto, uma situação pesada envolvendo duas crianças já apertaram o meu coração. Mas a forma como as três gerações de mulheres da família North levanta a cabeça e recomeçam após cada queda, independente da dor, é surpreendente e encorajador para seguir virando página e mais página, se sentindo cada mais próxima delas.

O fato da escrita ser fluída também convida a imersão, sendo muito fácil ir descobrindo o passado de cada uma e acompanhar o presente que vai virando futuro em um tempo que não é nada linear. O que me fez pensar em um quadro que está sendo pintado aos poucos, e a cada capítulo uma parte nova dele me era revelada, até ter sua visão completa no final. Como se fosse uma das obras da sensível Joan.

O fato de estar acordada ou de ficar na cama em nada mudava o caos dentro ou fora de sua casa.


Sim, muitas vezes questionei a escolha de Miriam, que foge da violência e leva Joan para o cenário de sua experiência mais traumática. Entendi o orgulho de August, mas não o fato de ela não querer expor sua bela voz. Assim como não consegui nem me surpreender com Jax ao não se preocupar com as filhas após a partida, algo tão comum ainda nos dias de hoje. Mas acima de tudo admirei a coragem de cada uma delas em tomar as rédeas de suas vidas, fazerem suas próprias escolhas, errarem, acertarem, chorarem e sorrirem. 

Ficando a dica deste livro sensível e bem escrito, que facilmente pode prender a sua atenção como prendeu a minha.


Memphis
Tara M. Stringfellow
Tradução Carolina Candido
TAG - Alfa Books
2023 - 336 páginas
Publicado originalmente em 2022

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Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

A Fina Flor de Stanislaw Ponte Preta



Sinopse: "O diabo não frequenta os inferninhos de Copacabana com medo de ficar desmoralizado", anota Stanislaw Ponte Preta. Um dos mais irresistíveis intérpretes de nossa cultura e de nossos costumes, o pseudônimo (ou seria heterônimo) de Sérgio Porto misturou lirismo e humor para retratar como ninguém a beleza e o absurdo do Brasil durante as décadas de 1950 e 1960. Parte de uma geração de cronistas que revolucionou a literatura nacional, Porto foi campeão de audiência, lido e comentado por brasileiros de diferentes classes e idades. Nesta farta seleção, o leitor tem acesso às melhores crônicas de um autor que marcou época. Saboroso, hilariantes, implacáveis e debochados, seus textos se revelam mais atuais do que nunca.

Com seleção e apresentação de Alvaro Costa e Silva, A Fina Flor de Stanislaw Ponte Preta leva o leitor através desta coletânea de crônicas de volta aos anos de 1950 e 1960 no Brasil e apresenta - ou relembra conforme a idade do leitor - personagens como Tia Zulmira , Primo Altamirando e Rosamundo do cronista Stanislaw Ponte Preta, ou melhor do carioca Sérgio Porto.

Separado em oito partes identificando entre parênteses o ano,  quem nos introduz ao mundo de Stanislaw Ponte Preta é justamente Tia Zulmira, uma mulher que já foi condensa, vedete, cozinheira e dona de uma personalidade forte. Entre os personagens apresentados, ela foi a minha preferida. Adorei a ironia, o deboche e as situações sem noção envolvendo essa figura.

Depois fez ver que existem certas coisas que chateiam a gente de maneira tão sutil, que raramente a gente dá pelo motivo da chateação.


Quem segue a Tia Zulmira é justamente um primo criado por ela: o Primo Altamirando, um cara de caráter duvidoso, mas figurinha carimbada em noventa por cento das famílias. Assim como outras figuras que aparecem pelas crônicas.

Mas não, A Fina Flor não é um caso de família em livro, mas sim crônicas recheadas de ironias e deboche, as vezes escancarados, outras bem disfarçadas sobre os aspectos culturais, comportamentais, morais, urbanísticos e naturalmente políticos daquela época.


O que eu achei de A Fina Flor de Stanislaw Ponte Preta

O conjunto de crônicas que compõe A Fina Flor de Stanislaw Ponte Preta apresentam um retrato bastante interessante da década de 1950/1960 no Brasil. Permitindo uma visão mais divertida para quem não viveu a época onde importantes fatos históricos ocorreram no país.

Seja com parentes fictícios, seja com anedotas, não raro me recordei de outros cronistas do cotidiano, como o Luís Fernando Verissimo e o David Coimbra, já citados no blog por suas obras.  Pois a escrita de Sérgio Porto possui leveza e aquele toque de quem está sentado na mesa do bar contando história para os amigos.

Por que teria saído da casa de câmbio tão enfezada? Vai ver foi o preço do dolár.


Por ser uma obra do "século passado" algumas histórias e termos podem ferir os leitores mais sensíveis, já que naquela época não havia politicamente incorreto. Em compensação muitos dos comportamentos apresentados ainda estão longe de serem aposentados. Demonstrando que a sociedade não mudou tanto assim.

Outro ponto presente é a crítica ao governo, que pode ser sutil, irônica ou bem direta. Lembrando que o período englobado pega tanto o período do Jango quanto da ditatura militar, havendo muita censura nesta última e exigindo uma escrita onde a crítica está escondida no deboche do dia a dia dos personagens.

Tá na cara que um camarada distraído assim não dava certo em emprego nenhum e, de decadência em decadência, ele acabou arrumando um reles empreguinho de vendedor de bilhetes de loteria.


No geral me deparei com crônicas engraçadas, outras que retratam bem um período, algumas sem noção e outras que achei chatas mesmo. Não foi um livro que li direto, de uma única vez. Levei alguns meses intercalando com outras leituras, algo que livros de crônica e contos permitem com tranquilidade.

Um livro bem interessante para ver um pouco do Brasil em décadas passadas com uma visão mais bem-humorada, motivo pelo qual deixo a recomendação para quem se interessa pelo período.

A Fina Flor de Stanislaw Ponte Preta
Stanislaw Ponte Preta/Sérgio Porto
Organização: Alvaro Costa e Silva
Companhia das Letras
2021 - 358 páginas