segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Afirma Pereira


Sinopse: Um momento trágico da história da Europa: crescem o salazarismo português e o fascismo italiano; a Espanha era cenário de uma violenta guerra civil. Um relato preciso que evoca momentos cruciais da vida de um protagonista que se dedica a não ser herói de nada. Pereira, jornalista apagado responsável pela página cultural de uma reduzida gazeta vespertina, protagoniza solidão, sonhos, a consciência de viver e de optar, ou talvez de não optar. Tão humano, se afirma Pereira sempre às margens do precipício.

O livro de agosto da TAG Curadoria foi indicado pela escritora Jhumpa Lahiri, ao qual já resenhei o livro Intérprete de Males aqui no Blog. Afirma Pereira é do escritor italiano Antonio Tabuchi, que assim como Jhumpa também escreve em um segundo idioma.

A história ocorre em Agosto, em pleno verão Europeu. A cidade é Lisboa e o ano 1938. Pereira é um jornalista formado na universidade de Coimbra, viúvo, perdeu sua esposa para a tuberculose e nunca mais se envolveu com nenhuma outra mulher. Durante 30 anos escreveu nas páginas policiais, mas atualmente é o diretor e único responsável pela página cultural de um jornal católico.

Era vinte e cinco de julho de mil novecentos e trinta e oito, e Lisboa cintilava no azul de uma brisa atlântica, afirma Pereira.

A página cultural é publicada todos os sábados, e ali ele coloca a tradução de contos franceses do século XIX e sobre escritores famosos falecidos. Fora isso, as suas preocupações são resumidas a sua alimentação, o seu problema cardíaco e a conversar com a esposa.

Tudo muda ao ler um artigo sobre a morte do recém formado Monteiro Rossi. Pereira que tinha uma fixação sobre não acreditar na ressureição da carne vê no rapaz um possível estagiário para auxilia-lo a antecipar os necrológicos para os grandes escritores da época, afinal, em tempos de guerra, elas poderiam ocorrer a qualquer momento. 

Porque nós fazemos um jornal livre e independente, e não queremos nos meter com política.

Rossi aceita o trabalho, mas ao contrário de contribuir com artigos, o rapaz junto com uma moça chamada Marta acaba abrindo os olhos de Pereira para o mundo presente, e ao acordar, suas ideias sobre a realidade começam a ser questionadas.

Suas dúvidas o levam a se internar em uma clínica para cuidar mais de sua saúde, é quando conhece o Doutor Cardoso, que lhe explica a sua teoria sobre não termos uma única alma, mas uma confederação de almas e um eu hegemônico, que no caso de Pereira quer vir a tona, deixando de viver o passado para recomeçar no presente.

Então me explique tudo, implorou Pereira, porque eu gostaria de fazer minhas escolhas, mas não estou bem informado.

Esta teoria leva o leitor a outro personagem, o Padre António, que após uma discussão sobre a alma ser única ou não, acaba explicando o problema do clero basco e a questão de apoio a república e a repressão da ditadura espanhola de Franco. A soma de tudo é que permitira Pereira decidir sobre como deseja conduzir a sua vida.

Afirma Pereira tem o próprio escritor como narrador, misturando um personagem que passou a visita-lo com um jornalista que ele conhecia, surgiu a figura de Pereira, que lhe conta suas desventuras em um mês muito quente, em um país que fica na Europa e não se sente parte dela, e sobre uma ditadura que passa despercebida aos mais desligados. Por isso a nota do autor, que foi publicada no Il Gazzettino em 1994 é uma espécie de complemento e preparação do que irá vir.

eu não sou companheiro de ninguém, vivo sozinho e gosto de estar sozinho, o meu único companheiro sou eu mesmo.

Confesso que inicialmente o uso numeroso do termo Afirma me irritou, e julguei precipitadamente que o livro fosse ser muito chato. Errei feio. Conforme Pereira foi desvendando o que havia por trás da cortina de boas notícias de Lisboa, as referências históricas e literárias, assim como os jovens que passam a orbitar em volta deste homem tão agarrado ao passado, o livro ganha um ritmo que me agarrou como leitora.

Afirma Pereira é um livro ao mesmo tempo intenso e rápido de ler. Os fatos provocam a necessidade de ir devorando as páginas, ao mesmo tempo que a curiosidade impulsiona para descobrir as respostas junto com Pereira. Conforme a tensão pelo perigo vai tomando conta da história, até ela termina de forma arrebatadora e surpreendente.

Dizem que vivemos numa ditadura, respondeu o garçom, e que a polícia tortura as pessoas.

Uma recomendação é necessária para quem irá se aventurar nestas páginas, faça-o de estômago cheio. Pereira é um homem bom de garfo, entre omeletes, peixes, limonada e vinho branco, seus diálogos ocorrem quase que na totalidade durante as suas refeições. A ponto que a TAG incluiu na revista que acompanha o livro as receitas degustadas ao longo da história. Aliás, a produção gráfica do livro está de parabéns, tanto a Lisboa na luva quanto os limões na capa complementaram a experiência.

Finalizei a leitura batendo palmas para Tabucchi e com saudades do Pereira. E como não poderia deixar de ser, recomendando a leitura para todos de uma Lisboa que poderia ser qualquer cidade, em qualquer época, se nunca olharmos além de nossas próprias janelas.

Afirma Pereira
Antonio Tabucchi
Tradução: Roberta Barni
TAG - Estação Liberdade
1994 - 157 páginas

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Sobre a Ficção - Conversas com romancistas



Sinopse: o jornalista Ricardo Viel, leitor voraz e apaixonado, fez várias perguntas a um time extraordinário de dez romancistas. O resultado são saborosíssimos diálogos sobre o fazer literário e o ofício da escrita.

No kit de junho da TAG Curadoria o mimo enviado para os leitores foi este ótimo livro de entrevistas chamado Sobre a Ficção. O critério de escolha, como o autor Ricardo Viel nos conta em sua introdução, é subjetivo, indo da admiração a um mínimo de relação para um bate papo onde as perguntas iam fluindo.

Rosa Monteiro

Não escolhemos o corpo que nos deram. Não escolhemos ser bonitos ou feios, saudáveis ou doentes.

A primeira entrevista é com Rosa Monteiro, que começa sobre a vida de jornalista, tem pergunta de terceiros, fala de tatuagem, ditadura, de vida e também muito de morte.

Através dos livros de Rosa, Ricardo faz ligações com a vida pessoal da escritora, como sentimentos e álter ego. Assim como da memória, quando cita A Louca da Casa e a mistura de realidade versus ficção.

Pois eu escrevo e leio para tentar dar ao mal e à dor um sentido que na verdade sei que não existe.

E naturalmente sobre o ato de escrever, onde entra a existência ou não de rotina, sua forma de trabalhar, assuntos essenciais e linhas comuns em seus livros. E qual o motivo de se ler e escrever.

Javier Cercas

O segundo entrevistado também é espanhol e autor de um livro que eu gostei muito, chamado Velocidade da Luz. Javier Cercas começa falando de suas mudanças de lugares e lembranças, e o quanto isso influenciou na sua decisão de ser escritor.

Não há ninguém plenamente satisfeito e acho que lemos justamente para obter, com a literatura, coisas que não podemos conseguir fora dela.

Existem paralelos entre a escrita e a insatisfação com a realidade, e também sobre experimentar sensações que no mundo real não podemos/devemos, chegando ao ponto de que a literatura também pode preparar um escritor para vivências futuras, como uma separação.

Na entrevista também é abordado a utilidade da terapia, a existência de boa e má literatura, onde a literatura que vai além do entretenimento pode mudar a vida de uma pessoa.

Cada livro é distinto, não tenho um sistema para escrever e também não quero ter.

Javier Cercas já foi professor universitário, então também é abordado o como conciliar e as diferenças destes dois mundos, a universidade como forma de se ganhar a vida para poder escrever.

Também é abordado uma das marcas registradas de Cercas, que é mostrar como a história foi construída, tornando o leitor mais próximo do protagonista. Outro ponto é sempre haver questões relacionada a ética ou moral. Assim como a mudança de seu olhar em relação ao passado.

Dulce Maria Cardoso

A terceira entrevistada é a escritora Dulce Maria Cardoso, que retorna a infância para falar sobre a criação de mundos paralelos como forma de entretenimento, até a guerra civil que atingiu Angola e mudou a sua vida.

Flannery O'Connor diz que quem sobrevive à infância tem matéria para o resto da vida. E eu concordo.

Dulce tem uma ótima memória, e ela comenta sobre o fato poder ser uma maldição, já que impede esquecimentos que tornariam algumas situações mais suportáveis.

Muito legal foi ver as formas como a escritora resolveu se preparar para entrar no mundo da literatura sem ter cursos na área, passando por curso de datilografia a pegar na biblioteca os livros mais pesados e com mais páginas. Ao mesmo tempo é curioso ver tamanho amor pelos livros ao crescer em uma família que não tinha livros em casa. 

Gosto de escrever, acho que é o que faço melhor, mas a escrita não é o centro da minha vida.

Da carreira de advogada até o primeiro prêmio literário que a permitiu publicar o primeiro livro, seguido de bolsas e outros prêmios, um mix de sorte e talento que nunca exigiram que ela tivesse que correr atrás de editor.

Dulce Maria tem como método de escrita apagar o livro quando finalizado e reescreve-lo, e a curiosidade neste caso é que Ricardo perdeu a primeira versão da entrevista realizada com a escritora, sendo necessário agendar uma segunda. Coincidências da vida.

Juan Gabriel Vásquez

Juan Gabriel Vásquez já quis ser jogador de futebol, mas um deslocamento de retina afastou o colombiano dos campos e os deixaram ao lado de seus amigos de infância: os livros.

Essa ideia de que os escritores são pessoas respeitáveis a quem se deve ouvir me foi passada.

O quarto entrevistado vem de uma família de leitores, também frequentou aulas de direito antes de mudar para as de literatura. Com o apoio da família ele seguiu o rumo dos seus modelos e foi para Paris, seu primeiro destino na Europa.

Ele conta sobre a angustia e desordem que sentia aos 26 anos, sobre finalmente entender que poderia escrever sobre o seu país de origem e seu tempo como tradutor. Sobre o curioso fato de ser extremamente organizado para planejar a vida para permitir que a sua literatura tenha desordem.

Porque é assim mesmo, a cada página vem a angústia de não saber o que é aquilo que estou fazendo.

Vásquez tem suas próprias manias, como usar no computador a mesma configuração de letra e tamanho de página que terá o livro impresso. De ficar três horas olhando para o teto antes de escrever uma página. O uso de um momento real que ele acrescenta toda uma vida inventada.

O entrevistador também aborda temas como destino, ética e moral, nestas últimas duas fazendo link com Javier Cercas, que é amigo de Vásquez, ao qual Ricardo considera as duas formas de pensamento muito parecidas. 

Escrever permite um grau de empatia que acho que não existe em nenhuma outra atividade humana.

Mas o que me chamou a atenção foi a parte final, Vásquez enxerga na literatura uma forma de exploração e compreensão do ser humano. Citando outros escritores, ele fala sobre os aprendizados que a leitura pode trazer, assim como decisões difíceis que precisamos tomar ao longo da vida.

Bernardo Carvalho

O quinto entrevistado é o brasileiro Bernardo Carvalho. O escritor que já foi crítico de cinema e jornalista, conta que nos primeiros anos de vida não era um grande leitor, sua primeira opção era dirigir filmes, mas sua não aceitação em um curso em Paris resultaram em esboços de romance.

Na conversa ele fala sobre a literatura brasileira nos tempos atuais, os escritores contemporâneos e a importância de ela crescer e ter diferentes perfis de escrita. Da necessidade de o leitor brasileiro aceitar que seus compatriotas tenham como cenários outros países e sejam aceitos como os americanos são.

É uma espécie de fantasia que tenho, mas que é assim: quanto mais bonito eu fizer literatura, mais longe da verdade vou ficar.

E estes outros lugares trazem a necessidade que Carvalho já teve de viajar para sair de sua zona de conforto, participando inclusive de um projeto onde foi para São Petersburgo escrever um livro sobre encomenda.

Carvalho quer provocar o leitor, despertando sentimentos como desilusão, reflexão, alargando o seu mundo. Curiosamente ele já esteve envolvido em uma polêmica na FLIP 2016, quando disse não pensar no leitor, isto é, não se fixa nas demandas do mercado, o que seria um estreitamento da literatura em entregar sempre o que está sendo esperado.

Tem a coisa da rapidez, você lê e não tem tempo de entendimento, é um negócio que você supõe que leu, mas não leu.

E este ponto leva a outro ponto muito interessante, o fato de a internet levar as pessoas a só lerem o que está de acordo com os seus pensamentos, tornando-as agressivas quando se deparam com o diferente. E o impacto disso no negócio do livro é a publicação de apenas escritores que irão retornar dinheiro, provocando a exclusão de outros.

Valter Hugo Mãe

O sexto entrevistado é Valter Hugo Mãe. Aqui se fala sobre homenagens, o cansaço de apresentar um livro para quem prefere o ato de escrever, do isolamento desejado para criar um livro.

Valter Hugo também faz críticas ao seu primeiro livro publicado, a falta de paciência da juventude em colocar uma obra sua no mercado e retorna a sua infância, em uma família que não possuía o hábito de ler.

Quando de repente alcançamos um sonho também já chegamos a um pesadelo qualquer, por isso à medida que realizamos os sonhos também realizamos os pesadelos.

Classificando a infância como triste, a crença que tudo demorava e de que não havia com quem compartilhar nada. Sendo a literatura um refúgio, com existências mais profundas e personagens com quem ele gostaria de dialogar.

Logo Ricardo explora o estilo do autor, que ainda traz um pouco de um hábito infantil de colecionar palavras, o uso da memória para transformar histórias em literatura. Do sentimento de fracasso da adolescência as dores da idade, como não poderia deixar de ser, as fases da vida de um escritor assim como a sua escrita estão irremediavelmente ligadas.

Mia Couto

Então chegamos ao sétimo entrevistado, um autor que eu adoro: Mia Couto. Curiosamente, mesmo lendo palavras, parecia que eu sentia a sua calma respondendo sobre Moçambique, a sua família, a saída de Portugal por motivos políticos, a criação de raízes em um lugar que se escolheu.

Acho que encontrei em Moçambique essa família que eu andava à procura.

Da busca pela língua portuguesa, passando por traços autobiográficos em suas obras, ao uso da literatura como forma de expressão, está tudo lá, em respostas completas, que me permitiram admirar ainda mais a personalidade deste escritor.

Além disso a poesia, música, o primeiro romance Terra sonâmbula e a sua relação com uma guerra que durou dezesseis anos e levou muitas pessoas conhecidas.

Comecei a escrever em 1990 e foi o único livro que escrevi de maneira sofrida, porque era uma resposta a um momento de desumanização profunda que já me atingia também.

Mia Couto também fala da sua relação com a escrita, as várias vidas que a literatura lhe deu, questões de fé, vida e morte, e o conjunto que os seus livros parecem formar devido algumas recorrências.

Milton Hatoum

A primeira imagem que temos de Milton Hatoum é de paciência e um toque metódico quando Ricardo descreve a forma como monta o seu cigarro.

O oitavo escritor entrevistado tem como fato marcante na sua vida a saída de Manaus aos 15 anos, o seu interesse por arquitetura e a importância de um tio que lhe apresentou diferentes livros. 

A distância temporal é importante, para dar também espaço para a invenção.

Entre a sua escrita e vivência em outras cidades do mundo ele conta sobre pessoas que conheceu e contribuíram com a sua forma de escrita, assim como o seu trabalho como tradutor e a sua decisão em virar escritor.

Hatoum não tem pressa em publicar, nem em escrever, considerando a paciência um exercício necessário para escrever romances. Assim como prefere exaltar outros livros e escritores durante a apresentação dos próprios livros.

Nós não temos nenhuma razão para sentir complexo de inferioridade, temos João Cabral, Drummond, Bandeira, Murilo Mendes, nós temos grandes poetas e ficcionistas.

Tatiana Salem Levy

A nona entrevistada teve Luiz Ruffato como padrinho e a sua tese de doutorado foi a sua primeira publicação. Tatiana Salem Levy nasceu em Portugal durante o exilio dos pais no período da ditadura brasileira, na vida adulta ela viveu na França e nos Estados Unidos, para depois se tornar escritora de romances, contos, crônicas, peças de teatro e livros infantis.

Na entrevista ela conta a influência das histórias familiares na escrita do primeiro romance, a questão da ditadura, e os seus livros em si.

A história da maneira como comecei a publicar, por exemplo, para mim é o acaso.

Na conversa também é abordado a sua desilusão com o Brasil, país que não tem mais vontade de voltar a morar, da saudade da sua terra que foi embora após as eleições de 2018, sobre se posicionar politicamente em colunas, mas não em seus romances.

Djaimilia Pereira de Almeida

O livro encerra com a entrevista de Djaimilia Pereira de Almeida. Em sua casa, diferentes objetos que ela usa para serem usados por seus personagens, tornando a ficção ainda mais real.

A escritora conta a Ricardo o fato de não gostar de fazer o lançamento de seus livros, sua relação com o mundo virtual e o saldo que deu para atender o seu desejo por escrever.

Estava acostumada a ler livros, mas não estava habituada a ler comentadores de livros, não sabia muito bem o que era crítica literária.

Também é abordado a forma de escrita, onde vai da solidão a mesa de jantar dividida com as tias. Sua carreira acadêmica e o encontro com um novo mundo, e o seu desinteresse em discutir os próprios livros. Além da preocupação de como são transcritas as suas entrevistas, para ver se foi entendida.

Há também a questão da mulher negra, onde ela fala da raridade de encontrar alguém com o cabelo natural na sua adolescência, que deu origem ao seu romance Esse cabelo. Também fala em cultura, origens e os inúmeros questionamentos que ela se fez ao chegar aos trinta anos.

Acho que há uma progressão no que tu vais fazendo, vais aprendendo a fazer coisas, vais ganhando mão e capacidade que não tinhas.

A entrevista também aborda as diferentes formas narrativas, que acompanham a própria evolução. Assim como a importância da música e do rádio durante o seu processo de escrita. 

Realizadas entre o ano de 2015 e 2020, é interessante que a primeira página tem a visão do entrevistador sobre o entrevistado, além de um breve resumo sobre a pessoa e o local onde a conversa foi realizada.

Curiosamente, apesar de haverem perguntas bases, cada entrevistado tem um direcionamento, uns são mais pessoais, outros mais acadêmicos. Tem também os sentimentais, os políticos e os que tem uma pitada mais narcisista, mas sem exceção, todos extremamente interessantes.

E com isso o leitor conhece um pouco mais da motivação que levou estes dez escritores a escolherem a literatura como profissão, quem são as suas referências, e um pouquinho de suas histórias pessoais.

Um livro para quem pensa em escrever, para quem curte um bate-papo ou pela simples curiosidade de saber mais sobre escritores que se admira.

Sobre a Ficção - Conversas com romancistas
Ricardo Viel
TAG - Companhia das Letras
2020 - 161 páginas

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Adultos


Sinopse: Jenny não é amada, não tem emprego e não tem filtros emocionais. Seus poucos amigos parecem cansados dela enquanto suas redes sociais retratam sua vida como um mar de rosas. Adultos é o que você quer que seja. Uma desventura da maturidade, uma sátira à nossa era de autopromoção, um olhar terno sobre a impossibilidade da feminilidade, uma história de amor, um motim. 

O livro de agosto, número 023 da intrínsecos, é Adultos da escritora Emma Jane Unsworth, um romance que ocorre nos dias atuais e narra a relação extrema com as redes sociais. Entre momentos engraçados e tediosos, está o fato de que neste caso a semelhança não é mera coincidência para muitas pessoas.

Jenny está em um café, observa atentamente os croissants, ela precisa que ele seja perfeito, pois irá fazer um post sobre ele no Instagram, e isso irá lhe definir como ser humano. Ela precisa da frase perfeita, da hashtag perfeita. Depois da foto postada, o alimento vai para o lixo e começa a ansiedade pelas curtidas.

Talvez terapia não seja apenas um stand-up ruim que a gente não tem coragem para apresentar.

Logo ela vai conferir o perfil da sua influencer preferida, que nos últimos tempos a tem seguido de volta, motivo pelo qual ela fica nas nuvens, curtindo e comentando todas as fotos de forma que acompanha-la é quase uma obsessão.

Na vida real sua melhor amiga está de saco cheio de Jenny pedir para ela avaliar as suas frases. O namorado está cansado de competir com o celular. E a relação com a mãe é recheada de mágoas desde a infância, o pai é desconhecido.

Minha mãe estava aliviada. Ela não tinha que se preocupar com a possibilidade de eu ficar desamparada.

O recomeço de Jenny vem com uma série de rompimentos e a mãe se mudando para sua casa. Entre bebedeiras, brigas e fotos para o Instagram, vamos entendendo o que levou a jornalista a preferir o mundo virtual em relação ao real.

Quando iniciei a leitura de Adultos, achei o livro chato. Fiquei pensando onde está a parte engraçada de uma doida  que não larga o celular nem para transar. Os rascunhos de e-mail e as conversas de WhatsApp não melhoravam o clima.

Relacionamentos não devem ser julgados pela longevidade, mas pela qualidade.

Foi quando a minha ficha começou a cair. 

Conforme as páginas lidas foram se acumulando, foi impossível não reconhecer pessoas do dia-a-dia e até a si mesmo nos conflitos reais e virtuais de Jenny. Como uma cebola, a cada camada que se retira, descobrimos o porquê dessa mulher de trinta e cinco anos de gênio forte e rápidas respostas na verdade esconder muitas fragilidades.

Na verdade, eu não tinha amigos.

Na coluna que escreve, os comentários negativos, mesmo que minoria, são os que ficam martelando em sua mente, mesmo havendo vários elogios. O sentimento de ser um fracasso, uma fraude, a acompanham, e o número baixo de curtidas em suas fotos é uma prova disso para ela.

Em um mundo fútil, de aparências, o virtual passa a influenciar no real. Segredos são descobertos, comportamentos são revistos, e mesmo tardiamente parece que finalmente a maturidade começa a chegar para Jenny.

Meses depois, no hospital, as enfermeiras me fizeram duvidar de mim mesma de novo.

Narrado em primeira pessoa, tendo a visão da personagem principal, a história mistura extremos tecnológicos com dramas muito conhecidos pelo universo feminino. Aqui estamos lidando com menstruação, maternidade, solidão, carreira e um misto de sentimentos que vão de culpa, inferioridade a necessidade de competição e observações ácidas, mas também por laços que podem se tornar mais fortes depois de anos. 

E ao final eu estava me divertindo e me solidarizando com as figuras femininas de Adultos. E neste universo tão peculiar me vi rindo, pensando nas questões, não indo com a cara de Art e com vontade de dar um abraço em Jenny nas duas vezes que ela ficou indevidamente sozinha.

Não é culpa sua, mas é o que você foi criado para ser.

O resultado de tudo é que no final eu adorei o livro, achei louco, absurdo, verdadeiro e surpreendente. Um retrato de uma geração que nasceu no analógico e tenta criar uma nova vida no virtual. De bônus ainda uma Londres intensa, com os seus pubs e parques, já que Jenny está sempre circulando.

A propósito, a cena do Prólogo só ganha um significado quando terminamos o livro, a ponto que eu retornei e pensei: Parabéns, Jenny.

Adultos
Adults
Emma Jane Unsworth
Tradução: Ana Rodrigues
2020 - 398 páginas

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A Única Mulher


Sinopse: Hedy Kiesler sempre se destacou por sua beleza. Ainda jovem, interpretou o papel principal de um filme polêmico e se casou com um magnata austríaco da indústria armamentista. Mas, longe de ser apenas um rosto bonito, a protagonista foge do marido controlador e da sua Áustria natal após entender os planos do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Refugiada em Hollywood, ela se torna uma grande estrela de cinema - ao mesmo tempo em que desenvolve uma ferramenta capaz de acabar com o conflito entre eixos e aliados.

Misturando realidade e ficção, a autora e historiadora Maria Benedict mostra aos seus leitores outras faces da famosa atriz Hollywoodiana dos anos de 1940 e 1950 chamada Hedy Lamarr. Considerada a mulher mais bonita da sua época, foi inspiração para o rosto da Branca de Neve. Mas Hedy era muito mais do que um rostinho bonito.

Nascida Hedwig Eva Maria Kiesler, era a filha única de uma família de classe alta judia na cidade de Viena, na Áustria. Após crescer com inúmeras críticas da mãe e muitos incentivos para alimentar a sua inteligência pelo pai, a jovem Hedwig acaba tendo o seu primeiro reconhecimento por um filme pelo qual ela se arrependeu de fazer. No filme Êxtase ela se torna a primeira mulher a realizar uma cena de orgasmo feminino.

Cidadãos alemães judeus não só foram vítimas de ataques violentos, como foram privados dos direitos de cidadania.

Tentando recuperar sua imagem de boa moça ela aceita o papel de Sissy, a imperatriz, no teatro e assim conquista um fã, o magnata austríaco da indústria armamentista Friedrich Mandl. Inicialmente ela não deseja aceitar a sua companhia, mas Hitler e seu desejo de unificação da Áustria com a Alemanha fazem seu pai a convencer de que não é uma boa ideia rejeitar quem pode lhe salvar em uma guerra iminente.

O ano é 1933, e o chanceler austríaco Dofffuss se tornou uma espécie de ditador em um país cercado de vizinhos governados por nazistas e fascistas. Mandl é amigo e parceiro de negócios do exército austríaco, não sendo apenas um vendedor de armas, mas também um homem envolvido com as estratégias políticas da Áustria. Motivo de aflição e aceitação de seu pai para que tal homem entre em sua casa.

Em geral gosto de escolher eu mesma, mas neste caso é aceitável.

Fritz se mostrou encantador para Hedy, parecendo respeitar não só a sua inteligência como a sua opinião. Mais do que lhe levar para um mundo cheio de luxo com pratos banhados a ouro, ele lhe mostrou ser muito diferente dos garotos com os quais ela estava acostumada a sair. O pedido de casamento não demorou, e ela encantada com aquele homem não viu isso inicialmente como um sacrifício.

Mas ela não estava preparada para o que aconteceria após o sim. No lugar de uma parceria cheia de amor, o que veio depois foi a prisão em castelos de luxo, casada com um homem dominador e ciumento, Hedy se tornou mais uma peça a ser mostrada por Fritz aos que lhe cercavam. 

Governantes e movimentos podem ascender e cair, mas o poder do dinheiro sempre prevalece.

Foi graças ao poder do marido que ela se viu frente-a-frente com figuras como Mussolini, mas foi ao ouvir o plano do ditador nazista que ela resolveu mudar o rumo de sua vida e rever sua origem judaica, algo que durante toda a sua vida não dera importância por viver em uma família não praticante. O resultado é a fuga para os Estados Unidos.

O sucesso em Hollywood veio rápido, mas o sentimento de culpa por não ter avisado seus compatriotas judeus dos riscos a consumiam, fazendo com que ela se dedicasse a formas de ajudar na guerra. Como ocorre em à Rede de Alice, sua genial invenção feita em parceria com o compositor George Antheilx não é aceita pelos militares, pelo motivo de ter sido projetado por uma mulher, mas os benefícios são usufruídos até hoje por todos nós.

Eu nunca era Hedy Kiesler, aspirante a inventora, pensadora curiosa e judia.

Narrado em primeira pessoa, o livro possui duas partes, a primeira trata da sua vida em Viena e a segunda após a sua fuga do país de origem. Existe um foco maior na primeira parte, quando a necessidade de sobrevivência a faz aceitar ser subjugada e sofrer violência doméstica. Já a segunda parte tem como foco a união de artistas europeus - não "existiam" judeus em Hollywood -, e em uma única invenção militar, não sendo citado as outras, como durante o seu relacionamento com Howard Hughes e sua sugestão para aperfeiçoar as asas de seus aviões.

Na edição da TAG Inéditos há no final uma nota da escritora Marie Benedict em que ela complementa a sua história, onde é incluído as tão erradas suposições sobre a incapacidade das mulheres, aos quais, a cada dia que passa, me fazem crer ser um dos motivos responsáveis pela Segunda Grande Guerra ter durado tantos anos. Após a nota, há uma entrevista com a autora, que também já escreveu sobre outras figuras femininas históricas e a sua forma de pesquisa.

A verdade passava de boca em boca, como se fôssemos os primeiros povos habitando a Terra, sujeitos a uma história apenas oral.

A escrita é bastante fluída, e o contexto histórico é bem explorado, embora eu tenha achado a parte de Viena em alguns momentos mais arrastados, e tenha sentido falta de explorar mais o lado inventora de Hedy com outros itens além da invenção militar, eu realmente gostei do livro que me permitiu conhecer as várias faces desta mulher incrível.

Um livro para quem adora cinema, história, lutas femininas e entender mais um pouco de política, preconceito, violência física e psicológica contra a mulher e escolhas que estão longe de serem as melhores.

A Única Mulher
The Only Woman in the Room
Marie Benedict
Tradução: Isadora Prospero
TAG Inéditos - Planeta
2019 - 317 páginas


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Todo esse amor que inventamos para nós




Sinopse: As casas, aqui, nunca apresentam paredes intactas. Nessas casas, silêncio ferido. As sombras arrastam-se passado adentro, afundam-se nas raízes do que sempre fomos. Nessas casas, o que somos embrenha-se no nascimento de todas as outras e fere nossos modos de porta afora escapar. As casas nasceram em nós de portas abertas.

O livro com 30 pequenos contos foi comprado no escuro, em uma iniciativa da TAG Livros de apoiar as pequenas editoras. O livro do escritor Raimundo Neto foi vencedor do Prêmio Paraná de Literatura e faz uma interessante analogia entre casa e o corpo de seus personagens. 

E a criança nasceu nos olhos abertos da mulher que sonhava.

Escrito quase todos em primeira pessoa, misturam em diferentes momentos uma linguagem rebuscada, poética ou desbocada, dependendo do local onde sua personagem circula ou o que ela estava vivenciando.

As casas aqui pertencem a homossexuais masculinos, e nas páginas há deboches por sua forma de andar, violência, prostituição, relacionamentos escondidos de suas namoradas/esposas, a dificuldade de lidar com as reações maternas e a morte.

Avisou, por telefone, que havia passado na casa para desocupá-la do que era teu, que eu precisava me arranjar com as contas.

Os dos primeiros contos colocam o foco em pessoas trans que possuem o desejo de terem filhos, ao mesmo tempo que tratam prostituição, medo da violência a questão do nome. 

Casa de boneca abre os contos que falam da não aceitação paterna ao homossexualismo identificado ainda na infância. Assim como Maquiada abre a porta com a relação materna, que vai da raiva a surdez, raramente a aceitação.

E a criança gritava tão alto que as bonecas acordavam da vida que não tinham e quase eram felizes no sonho da criança.

Os contos também abordam os que se escondem atrás de namoradas e esposas para viverem seus relacionamentos, viagens inventadas, apartamentos decorados, uma vida dupla e muitas separações. Há também situação de saia-justa, quando uma criança revela a verdadeira opinião de uma amiga.

O problema para mim, como leitora, é a semelhança dos contos. Em alguns momentos eu me sentia em um looping, e ficava em dúvida se as páginas haviam sido desmarcadas e eu havia retornado para uma história já lida. Não sei se isso foi pensando com o objetivo de fortalecer a situação pelos quais as personagens estavam passando, mas o fato é que o sentimento de déjà-vu muitas vezes me convidava a realização da leitura dinâmica.

Eu nunca pedi pra ter um filho como tu.

No decorrer da leitura muitas vezes me peguei pensando se eram os mesmos personagens dando seguimento à sua história. O que me fez cogitar durante inúmeras vezes se no lugar de contos, fosse um romance ou pequenas histórias, tendo diferentes olhares, a casa não seria mais bem estruturada e convidativa. 

Claro que há a influência de gostos, eu sempre associo contos aquela paulada final, que você devora rapidamente e fica sem ar, algo que não encontrei em Todo esse amor que inventamos para nós, onde temos uma narrativa linear, onde o foco está muito mais em tristezas, sofrimentos e separações.

Passamos quase uma vida toda dos nossos trinta e oitos anos tentando desocupar nosso nascimento.

Pessoalmente foi um livro que literaturei, e muitas vezes fiquei com vontade de fechar. Mas como gosto literário é como queijo, cada um tem o seu preferido, fica a dica para quem se interessar.

Todo esse amor que inventamos para nós
Raimundo Neto
Editora Moinhos
2019 - 151 páginas

terça-feira, 4 de agosto de 2020

A Dança da Água



Sinopse: Primeiro romance de uma das principais vozes contemporâneas dos Estados Unidos traz enredo repleto de elementos fantásticos sobre os horrores da escravidão. Por toda a América as plantações de tabaco floresceram e trouxeram riqueza aos senhores de terra durante o século XIX. Quando a bonança começa seu declínio, Howell Walker já vislumbra o próprio fim e sabe que precisará de um substituto para administrar os últimos dias de Lockless, sua propriedade no coração da Virgínia, Estados Unidos. Logo fica claro que seu único herdeiro, Maynard, não tem a menor aptidão para a missão. E mesmo o jovem Hiram, com sua resiliência e memória infalíveis, não poderia fazê-lo, além de filho ilegítimo de Walker, ele é um escravo. No entanto, quando os meios-irmãos se afogam nas águas do rio Goose, a vida de Hiram é poupada por um poder misterioso e até então oculto dentro dele, uma herança materna que se perdera junto com as lembranças da mãe, vendida e levada para nunca mais voltar. Desse breve encontro com a morte brota uma grande urgência: Hiram precisa escapar do lugar que foi seu lar e prisão desde o dia em que nasceu. A dança da água narra toda a atrocidade infligida a homens, mulheres e crianças negros ao longo de gerações, os grilhões da escravidão e o desmembramento cruel de inúmeras famílias, compondo um relato comovente e místico sobre destino e propósito, perda e separação.

O exemplar número 22 do Intrínsecos, e o meu segundo no clube de assinatura, levou ao leitor o primeiro romance de ficção do escritor Ta-Nehisi Coates, considerado uma das vozes negras de maior relevância nos últimos anos. A capa dura azul combina totalmente com o clima fantástico do livro, sendo uma espécie de fábula das memórias que os escravos perdiam enquanto a sua vida é consumida pela submissão imposta pela violência. Os que tem o dom da condução, são os de boa memória, os que não conseguem esquecer, e assim conseguem se transportar através da água para lugares conhecidos e transportar pessoas com as quais possuem relação para lugares que podem ser pertos ou distantes.

Quem nos conta a história é Hiram em uma narrativa em primeira pessoa. Sabemos que ele está nos dizendo o que aconteceu no passado, principalmente quando ele observa a mudança do seu olhar em relação a determinada situação. Um detalhe que pode passar despercebido para quem faz leitura dinâmica.

Eu sempre evitava aquela ponte, manchada com a lembrança das mães, dos tios e dos primos que tinham ido para Natchez.

Tudo começa com uma dançarina sobre uma ponte de pedra que permite carroças atravessarem o rio Goose, no estado da Virgínia. Não é qualquer dançarina, nem qualquer ponte. A mulher envolta a luz azul fantasmagórica é a mãe de Hiram, e a ponte é a que usaram para leva-la embora quando ele ainda era um menino. O que acontece a seguir é o inesperado, em um momento ele e seu meio-irmão branco estão em terra e após a visão, dentro da água. Hiram tem certeza que é o seu fim, escuta os gritos de socorro Maynard e prepara-se quase que alegremente para a morte, mas ele é encontrado em um lugar completamente diferente.

Apesar de Ta-Nehisi Coates utilizar a palavras Tarefas e Tarefeiro, o leitor logo se dá conta que estamos falando do período da escravidão americana. Hiram é filho de uma escrava com o dono da fazenda. Conhecido por sua memória fantástica, o rapaz não consegue lembrar da própria mãe, como uma forma de proteção. Sozinho no mundo, ele primeiro se encanta pela casa do pai, mas é ao se apaixonar por outra escrava e tentar fugir que toda a sua vida muda.

Todas aquelas almas acorrentadas comigo desaparecendo.

E neste momento vamos conhecer os clandestinos que lutavam pelo fim da escravidão através de estratégias e antigas lendas africanas. Em relação aos outros títulos com a mesma temática, achei A Dança da Água mais poética em comparação aos demais títulos que eu já havia lido. Existe o lado doloroso, como a separação das famílias, mas mesmo em decadência a violência física em Lockless fica em segundo plano.

O que temos aqui é a memória, as lembranças de um povo retirado de sua terra, as gerações futuras separadas de seus pais, mulheres subjugadas aos desejos de seus patrões, famílias desfeitas. São as lembranças que permitem os de boa memória se transportarem de um ponto para outro, revendo rostos e situações que o marcaram, em um jogo de amores perdidos.

Eu temia muito que vissem isso em mim, em algum sorriso indevido ou calma improvável.

Na história não acompanhamos a vida inteira de Hiram, mas os acontecimentos que fizeram ele deixar de ser menino para ser um homem. Suas reavaliações em relação a sentimentos e palavras. Enquanto ele aprende sobre dor e amor, o leitor pode aprender sobre uma luta que ainda não acabou. Como o fato de a liberdade trazer responsabilidades, mas não o respeito. E o preço que muitas vezes pode ser a traição daqueles que consideramos amigos.

Entre os personagens, as femininas são muito fortes. Começando com Thena, cujo jeito frio esconde a tristeza por ter perdido toda a da família, mas isso não a impede de abrir o coração para receber o menino Hiram quando este vive a mesma situação. Há também Sophia, uma mulher bonita, que mesmo sendo escrava, tenta escrever o seu próprio destino e quando possível, realizar as próprias escolhas.

Mas liberdade, a verdadeira liberdade, também é um senhor, sabe?

As formas tradicionais de fuga me fizeram recordar outro livro, chamado The Underground Railroad, onde a personagem Cora leva o leitor por diferentes estados e visões sobre a escravidão. A rodovia é a expressão utilizada para definir a rede encontrada por Hiram, onde a clandestinidade move as estratégias dos abolicionistas, nos dando uma visão complementar, ao utilizar na ficção personalidades reais como Harriet Tubman. 

Neste livro duas coisas me incomodaram um pouco, a primeira foram algumas bobeiras na revisão do texto, um exemplo é o capítulo 3, que começa com o personagem dizendo que era o outono dos seus doze anos, para cinco páginas depois dizer que ele tinha apenas onze anos. A segunda mais do que um incomodo foi uma dúvida. Em livros como a Terceira Vida de Grange Copeland a falta de estudo está nos diálogos, algo que não acontece em A Dança da Água. Embora o personagem principal tenha recebido estudo para melhor auxiliar o seu meio-irmão, os diálogos quase sempre corretos me causaram um certo estranhamento. Como eu disse, é um eco de outras leituras, que não atrapalha em nada a leitura desta história.

A luz da estação lançava um brilho fantasmagórico naqueles casarões que, apenas um ano antes, ofegavam com suas últimas energias e sentimentos.

A Dança das Águas é dividida em três partes, e as indagações de Hiram me fizeram percorrer as páginas na mesma rapidez que as águas de um rio, e mesmo com algumas pedras me incomodando ao longo do caminho, o percurso conseguia mesclar doçura e tristeza na dose correta, sem perder a chance de nos fazer refletir. Um livro necessário para auxiliar na compreensão dos reflexos do passado nos dias atuais.

A Dança da Água
The Water Dancer
Ta-Nehisi Coates
Tradução: José Rubens Siqueira
intríseca
2019 - 397 páginas