terça-feira, 27 de dezembro de 2022

As horas não importam mais



Sinopse: Em uma viagem de carro pela BR-290, a narradora atravessa o passado e o presente, vivendo um caleidoscópio de emoções que insistem em atormentá-la como feridas à flor da pele.

Na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul uma mulher dirigi o seu carro pela BR-290, uma das mais importantes rodovias do Estado com 726km de extensão, ligando o Brasil a Argentina.

Acompanhada de música, cigarro e memórias a primeira informação que o leitor recebe da narradora e protagonista da história é que ela tem sangue nas mãos.

Não precisava pensar muito, apenas seguir em linha reta e obedecer às placas.


Sem um nome para identifica-la, ela percorre a estrada sem contar ao leitor o seu destino, parando em diferentes pontos e encontrando o pior em cada um deles.


A escrita de Kelli Pedroso

Antes de tudo uma curiosidade, para quem acompanha o blog desde o início, o nome talvez não lhe soe estranho. A Kelli participou dos primórdios da criação do Literatura Amores e Horrores, havendo nos primeiros anos algumas resenhas suas. Com o tempo ela, como os demais, seguiram caminhos diferentes, restando a pessoa que vos escreve.

Mas voltando As horas não importam mais, a escritora utiliza mescla a forma de Road novel com narrativa intimista para se movimentar não só pela estrada, mas também pela própria alma da personagem ao escavar memórias obscuras. São duas estradas percorridas em paralelo, com pontos de intersecção que alimentam o deslocar aparentemente errante, mas que a narradora sabe de cor.

Tudo é lembrança quando não podemos estar juntas. Eu não só não lembro a data em que ela resolveu abreviar a sua vida.


Em capítulos rápidos, a narrativa intimista é direta, apenas com as informações necessárias para compreender o tipo de situação vista ou vivenciada, tornando o destino final um mero detalhe para quem embarca na jornada.

Outro diferencial no livro é que a orelha e a contracapa não trazem sinopse ou resumo da história, mas a consideração de dois outros escritores de como se sentiram em relação a leitura, são eles:Gustavo Melo Czekster e Rafael Bán Jacobsen.


O que eu achei de As horas não importam mais

Apesar de ser um livro curto, ele é bastante intenso nas sequencias de cenas. Intercalando presente e passado sem informar datas, com várias sequencias de adormecimento em um trajeto de aproximadamente 9 horas se percorrido na integra (Uruguaiana - Osório) me causaram estranheza no início.

Mas por ser um livro que foge do tradicional, onde não sabemos o nome da personagem, de onde ela vem e para onde ela vai, muito menos as suas motivações, ele abre a possibilidade de o próprio leitor criar suas teorias. E abaixo eu compartilho a minha, que pode ser completamente diferente da sua pós leitura.

Não importava a época do ano, o percurso sempre era interessante. Cada estação trazia uma mudança de panorama, não de cenário.


O sentimento que eu fiquei era que a narradora estava em uma espécie de purgatório. Suas lembranças são dolorosas, revivendo a dor não cicatrizada na alma. E parece não haver nenhuma cidade no decorrer da estrada, apenas casas espalhadas, que me fizeram questionar se poderiam ter relação com a personagem em vida.

Suas paradas são com o pior que há na espécie humana, tanto no aspecto físico quanto no psicológico. Ela tenta corrigir, fazer o certo, mas a forma ou não é convencional, ou não encontra ouvidos dispostos para chegar à solução. O que curiosamente me remeteu ao clima tenso do filme Mad Max, mas no lugar do deserto, o verde dos campos e florestas que acompanham a estrada fora das áreas urbanas.

Será que no dia em que eu morrer estarei só ou acompanhada? Será que vão encontrar o meu corpo logo? Ou quando ele estiver já em decomposição?


O que também pode despertar no leitor a dúvidas se ela está realmente vivendo aquilo, ou é apenas sonhos sequenciais (outra teoria que se passou pela minha cabeça). E assim acaba-se esquecendo onde ela está, que estrada percorre e o sentindo das horas, pois como o próprio título avisa, elas não importam mais. 


As horas não importam mais
Kelli Pedroso
Editora Pergamus
2017 - 72 páginas


terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Parque Industrial



Sinopse: livro de estreia de Pagu, Parque Industrial é um marco na literatura brasileira. Publicado pela primeira vez em 1933, este romance proletário trata da vida de operários no bairro paulistano do Brás. Aqui, os conflitos fabris são conjugados a dramas cotidianos e íntimos, formando uma pintura intricada da sociedade brasileira do começo do século XX.

Na década de 1930 o maior parque industrial da América do Sul ficava em São Paulo. No bairro do Brás moradores de ruas inteiras caminham em direção as fábricas. Lanches são embrulhados em papel pardo e verde enquanto as moças compartilham o perfil de homem ao qual gostariam de se casar, indo do trabalhador ao sonho de se casar com um homem rico.

Pelas cem ruas do Brás, a longa fila dos filhos naturais da sociedade.


Nas oficinas é proibido conversar, mesmo que seja para afastar o perigo. Malandro, Vagabunda são usados em uma época que não existe a mínima possibilidade de processar alguém por assédio moral.

Há os que se indignam, homens e mulheres que tentam captar a atenção de seus colegas para o fato de os operários não serem valorizados, mesmo sendo os principais responsáveis pela produção que gera a riqueza de seus donos. Partidos e sindicados começam a aparecer como solução em uma vida de muitas horas de trabalho, crianças sozinhas em casa e demissão fácil.

Que importa morrer de bala em vez de morrer de fome.


Em paralelo mulheres são enganadas, se tornam mãe solo e se veem despejadas e desempregadas. Para elas só restam trabalhar onde a vida não é nada fácil ou enlouquecer.

Há também as que conquistam o seu passe para a vida de luxo, e logo se esquecem dos que ainda possuem uma vida difícil.

O Carnaval continua. Abafa e engana a revolta dos explorados. Dos miseráveis.


Um pequeno pedaço de Brasil com muitas faces, como ocorre em todas as épocas desde 1500.


A escrita de Pagu

Pagu ou Patrícia Galvão, escreveu este livro aos 22 anos com o pseudônimo de Mara Lobo. Sua escrita é rápida, fluída e direta, sem filtros nos diálogos ou situações da época. Os capítulos não possuem números, mas títulos que dão uma dica do que será abordado.

Trazendo para o leitor do século XXI a realidade nua e crua das mulheres que trabalhavam na indústria têxtil paulistana nos primórdios do século passado.

As criancinhas da classe que paga ficam perto das mães. As indigentes preparam os filhos para a separação futura que o trabalho exige.


Por ser ela própria uma militante do Partido Comunista, muitas referências são feitas a ele entre os personagens que lutam por um meio de trabalho melhor. Mas mesmo eles eram conservadores em relação a escrita de Pagu, que escancarou a desigualdade de classes, falou de sexo, perversão e corrupção em Parque Industrial.

Mas o que era um choque na época, com o tempo tornou Parque Industrial uma amostra de o porquê ela ter se tornado um dos grandes nomes do movimento modernista, que completou cem anos em 2022.


O que eu achei de Parque Industrial

As cento e onze páginas de Parque Industrial foram rapidamente percorridas por mim. Como um retorno ao passado, consegui enxergar através do olhar de Pagu as ruas cheias e vazias, as festas, as reuniões, os confrontos nas manifestações, os amores e as decepções.

O trabalho nada fácil, as cobranças e o se ajudar. Me fazendo refletir que apesar de ainda termos situações bastante críticas, conseguimos sim evoluir muito nas questões trabalhistas e no papel da mulher.

Grupos agiram, na manifestação, cartazes rubros, amassados. A tinta borrada dos impressos pede mais pão.


Mas não, o livro não é para se conformar, mas para inspirar na busca por mais igualdade, por mais respeito e claro, mais oportunidades.

Confesso que me surpreendi com a escrita de Pagu, sua história é ao mesmo tempo fluída e reflexiva. E para quem como eu que não viveu na década de 1930, a primeira pergunta é o que tem de ficção e de realidade?

Como posso dormir sabendo que meus filhinhos sofrem fome?


E mesmo tendo alguns diálogos que levam ao panfletarismo do que a jovem Pagu acreditava na época, isso não atrapalha em nada a leitura, mesmo que você não se identifique com a posição política da escritora, pois o olhar, como o crítico Kenneth David Jackson salientou é de um "documento social e literário".

E foi justamente isso que me fez gostar do livro, este retorno a um Brasil que parecia tão distante, mas cujos ecos de sua realidade ainda ecoam nas comunidades mais pobres. Pois talvez os mais desavisados podem achar que evoluímos muito nestes quase cem anos.

A mãe fora educada na cozinha de uma casa feudal, de onde trouxera a moral, os preceitos de honra e as receitas culinárias.


Mas basta um olhar mais atento para os que se tornaram invisíveis para uma parte da sociedade para saber que entre os mais pobres os anos de 1932 é agora.

É agora porque ainda existem mães que precisam deixar os seus filhos sozinhos para atender os herdeiros das classes mais altas. É agora quando ainda existe trabalho escravo e lugares insalubres, onde se ignora a idade de quem trabalha.

Por que nascera mulata? É tão bonita! Quando se pinta, então! O diabo é a cor.


É agora quando para muitas só resta a prostituição para viver um dia de cada vez. É agora quando milhares de brasileiros passam fome enquanto escrevo estas linhas.

E não é necessário compartilhar as ideias políticas de Pagu para saber que existem situações que são inaceitáveis pela sua desumanidade. Então por todos estes motivos eu recomendo e muito a leitura.

A dor do pobre é o dinheiro.


E seguindo a dica do Geraldo Galvão Ferraz, que faz o prefácio do livro, já coloquei na minha fila de leituras futuras Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade, para fazer a comparação sugerida de dois livros do período do Modernismo.


Parque Industrial
Pagu
Companhia das Letras
Edição 2022
111 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.


quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Apocalipse Bebê



Sinopse: Valentine desapareceu. Filha de uma família abastada porém disfuncional, ela some no caminho da escola e deixa todos desesperados. A jovem detetive Lucie Toledo é contratada para encontrar a adolescente, e pede ajuda a sua amiga mais experiente do ramo, a Hiena. Juntas, as duas começaram um périplo vertiginoso. A busca as leva de Paris a Barcelona, em uma viagem na qual encontram um mosaico de personagens que tiveram algum contato com Valentine. Um submundo sombrio é descortinado, expondo os desejos e os medos da juventude de uma geração.

Em outubro/2022 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria o livro da escritora francesa Virgine Despentes Apocalipse Bebê, uma indicação da escritora Scholastique Mukasonga. O mimo foi um pacotinho de café, acho que para aguentar o tédio do que eu considero um dos piores livros enviados pelo clube desde que comecei assinar em 2017.

Lucie trabalha em uma agência de detetives em Paris, sua missão é seguir a adolescente Valentine, uma menina de quinze anos filha de pais separados, que agride a madrasta e se relaciona com qualquer menino que se depara. Mas um dia Lucie se distrai, e agora no lugar de seguir Valentine ela precisa encontrar a menina.

Não faz muito tempo, eu ainda tinha trinta anos. Tudo podia acontecer.


É um dono de um bar que apresenta Lucie a Hiena, uma detetive particular conhecida no meio, que aceita o caso apesar da baixa remuneração oferecida pela avó da adolescente.

Assim começam as conversas com parentes próximos e conhecidos, o que leva a dupla até Barcelona, em busca da mãe que abandonou a menina muito cedo e não manteve contato com a filha. 

A diferença entre os verdadeiros durões e aqueles que optam pela redenção: uns têm escolha, outros não.


Enquanto em paralelo Lucie que até então se declarava heterossexual vai conhecendo os detalhes do mundo lésbico da Hiena e encontrando o amor.


A escrita de Virgine Despentes

O uso de primeira ou terceira pessoa vai conforme a personagem escolhida como central no capítulo, que com exceção de Lucie, já são identificadas no nome do mesmo. 

No caso da narrativa em primeira pessoa, quem assume a voz é Lucie, que aparece em vários capítulos e é uma das protagonistas da história, sua visão distraída dos acontecimentos é dividida com o leitor.

Me interessam mais o estado das baterias do meu material e os arranhões na lente do que a pessoa que estou seguindo.


Quando muda para os capítulos únicos, a visão passa a ser em uma terceira opinativa, que faz um breve resumo do que as personagens viveram até chegar ao momento do desaparecimento de Valentine, assim como quais são os seus sentimentos em relação a menina, que desperta os diferentes tipos de reações entre as pessoas que a conheceram.

Despentes usa uma linguagem mais debochada, ácida, recheada de clichês e termos grosseiros, que usados a exaustão perdem força e se tornam palavras comuns no texto. E o que parece ser escrito para chocar, acaba dependendo muito do perfil do leitor, que pode achar muito louco e de uma verdade nua e crua, até uma história entediante que parece não ir para lugar nenhum.

Eu me abstenho de contar que também cresci com uma madrasta, o que me faz ter simpatia por qualquer pirralha que espanque a sua. 


Mas ao contrário do que se imagina na sinopse, o livro de Despentes não é um suspense onde as duas detetives, junto com o leitor, montam um quebra-cabeça. Pelo contrário, com o andar da leitura ele se mostra mais uma crítica ao estilo de vida dos ricos franceses e a cidade de Barcelona, ao mesmo tempo que aborda a descoberta do homossexualismo pela detetive Lucie.

Sendo muito mais um livro sobre a personalidade das pessoas do que sobre o mistério de um desaparecimento. Sobre pré-julgamentos e preconceitos. Não podendo deixar de fora as escolhas que cada um faz sobre como viver a sua vida, concessões, ônus e bônus.


O que eu achei de Apocalipse Bebê

Uma ideia de base ótima, uma execução que deixa a desejar, com um capítulo final ótimo que poderia até mesmo ser um conto. Assim eu resumiria Apocalipse Bebê, um livro em que é possível pular tranquilamente todos os capítulos do meio que não irá se perder nada, já que o forte da trama está nos capítulos iniciais e finais, onde outros personagens, que não as duas detetives, entram na história. E o final sim, é muito bom, mas ao mesmo tempo acentua todas as falhas da narrativa conforme o perfil do leitor.

O livro foi comparado com Todos nós adorávamos caubóis - já resenhado por aqui - pelo fato de também serem duas mulheres lésbicas viajando, no caso do livro brasileiro pelo interior gaúcho, no caso do francês entre Paris e Barcelona. Eu colocaria a semelhança pelo fato de as personagens dos dois livros serem péssimas companheiras de viagem, pois como reclamam, é muita amargura ao passar por locais maravilhosos.

Todos que são honestos, ou que têm honra, ou que são gentis, foram exterminados.


Por outro lado, faltou desenvolvimento em relação a personagem Valentine. Suas motivações não são bem trabalhadas, apesar de ser a personagem com maior carga para se aprofundar. Já que definitivamente a conhecida frase pobre menina rica não se aplica como justificativa suficiente para suas ações.

Ao contrário do que ocorre com Lucie e a Hiena as duas personagens cujos os umbigos recebem o foco total da história, pois tanto as ações quanto os diálogos são fracos.

Nunca durma com alguém que está abaixo de você, essa é a condição primeira do respeito à sua feminilidade.


Eu particularmente achei o livro chato, apesar de ter uma boa base de início, não me incentivando a ler aquela página a mais, ficando quatro dias de um feriadão parado em um cantinho. E no retorno comecei a aplicar a boa leitura dinâmica nos capítulos que não acrescentavam em nada a história.

Mas como eu sempre digo, gosto literário cada um tem o seu, então como sempre ocorre, independente de eu ter literaturado a história, deixo a dica para quem curte livros com protagonistas LGBTQIA+, para quem gosta de livros envolvendo estrada, para quem quer uma outra visão de Paris e Barcelona, ou para quem ficou curioso com tudo o que eu escrevi.


Apocalipse Bebê
Apocalypse Bébé
Virgine Despentes
Tradução: Natalia Borges Polesso
TAG - Companhia das Letras
2010 - 319 páginas

Ficou interessado em assinar a TAG? Indique o meu código de amigo ANDJ8CMF e ganhe 30% de desconto na primeira caixinha e eu ganho o mimo do mês.
Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.