terça-feira, 29 de março de 2022

A Pintora de Henna



Sinopse: Um retrato vívido e irresistível da luta de uma mulher em busca de realização pessoal e profissional em uma sociedade que oscila entre a tradição e a modernidade. A pintora de henna abre ao leitor a porta para um mundo - a Índia pós-independência - que é ao mesmo tempo exuberante e encantador, duro e cruel.

Como associada da TAG Inéditos recebi no mês de janeiro/22 o livro da indiana Alka Joshi chamado A pintora de henna. De mimo recebi um planner para o ano de 2022, sim, igual ao que recebi na Curadoria, este foi de presente para a minha mãe.

A história de A Pintora de Henna ocorre entre setembro de 1955 e novembro de 1956, e a protagonista se chama Lakshmi, uma mulher que apesar de pertencer a casta dos brâmanes, ganha a vida pintando os corpos das ricas mulheres da sociedade de Jaipur.

A independência mudou tudo. A independência não mudou nada.


Filha de um professor, ela foi forçada a se casar aos 15 anos com Hari Shastri, marido do qual foge aos 17 anos. Ao procurar meios de sobrevivência acaba aprendendo a técnica da pintura de henna, que somado com os seus conhecimentos medicinais atraem Samir Singh, um arquiteto renomado que a leva para Jaipur e através da sua esposa introduz os serviços de Lakshmi na sociedade local.

Tudo parecia estar no caminho certo na vida desta jovem mulher, que agora, treze anos depois, constrói uma casa e sonha em trazer os pais para morarem com ela, tendo como auxiliar o sempre experto Malik, um menino perdido que virou seu assistente.

Eu punha um pavão persa dentro de uma concha turca, transformava uma ave das montanhas afegãs em um leque marroquino.


Mas sua bolha vai estourar no dia em que o ex-marido bate na sua porta trazendo uma irmã que ela desconhecia a existência. E quando uma carta sai do lugar, o castelo construído até ali não terá a mesma estrutura, assim como a visão que a própria Lakshmi passa a ganhar de mundo.


Os personagens

O universo de A pintora de henna tem diversas personalidades representadas, e entre inspirações em pessoas reais e os ficcionais, é impossível não se encantar ou se revoltar com alguns deles.

Lakshmi é uma mulher séria e focada, que batalha duro para viver dentro da bolha de proteção que ela construiu para si. Suas reações são por demais humanas quando se vê a frente com a irmã mais nova Radha, ao qual desconhece e precisa aprender a conviver.

Não sabia de que outra maneira agir, porque ninguém havia lhe ensinado um jeito melhor.


Já Radha é a mistura da sua juventude dos treze anos com uma vida curta carregada de dificuldades, começando com a fuga da cidade para encontrar a irmã após o falecimento dos seus pais. Viver na cidade grande acaba confundindo ainda mais a sua cabeça, que ainda não possui maturidade suficiente para lidar com todas as novidades e armadilhas.

Quem presta suporte as duas é o menino de idade não definida Malik, que com a esperteza adquirida de quem nasceu e cresceu nas ruas surpreende não só as irmãs, como quem entra na leitura. Sendo um personagem muito querido.

Eu deveria ficar satisfeita por ela estar se desligando de mim, se tornando independente, tomando as próprias decisões?


Já Samir Singh e sua família representam o que a falta de limites de uma família com dinheiro e influência, mas sem ética e respeito com o próximo, pode fazer. Mostrando que da mesma forma que eles abrem portas, eles também acreditam tornar os indesejáveis invisíveis.

Outra família é as do Agarwal, onde temos Kanta, uma jovem esposa de vinte e seis anos que conheceu o seu marido, também indiano, na Universidade, e teve a felicidade de poder casar por amor. Mas agora enfrenta a pressão da sogra de ter um filho.

Podíamos ter esperança desse amor, mas não havia garantias.


Outras figuras interessantes são as maranis Indira e Latika, madrasta e esposa do atual marajá. É através dela que sabemos um pouco do funcionamento da realeza, como suas crenças para seleção de herdeiros.

Completando o quadro que nos transporta para a Índia dos anos 50 estão vizinhos, outras clientes, figuras importantes do passado de Lakshmi, assim como um médico que se encanta com os métodos naturais dela.


A escrita de Alka Joshi...

Utilizando a narrativa em terceira pessoa, Alka Joshi sempre inicia os seus capítulos indicando o local, o mês e o ano em que as personagens estão, sendo que na maior parte do tempo acompanhamos a própria Lakshmi. Logo de início vivemos o dia-a-dia das irmãs, e conforme as circunstâncias entram pequenos saltos no tempo.

Sua forma de escrever é bastante fluída, há uma descrição cuidadosa dos locais, desenhos e acontecimentos, e ao contrário do que se possa imaginar, longe de ser chata.

Eu havia cometido o primeiro pecado, abandonando meu marido, com quem deveria ter ficado por sete vidas.


Muito pelo contrário, através das descrições de Alka Joshi é quase possível sentir os cheiros, sabores, mergulhar nas cores e saber um pouco mais da cultura indiana.

Ela também transmite com veracidade toda a força e as dúvidas dos personagens. Tornando-os tão humanos em suas reações que é fácil de se compreender, se indignar junto com eles e fazer os mesmos questionamentos, o que me permitiu em alguns momentos antever até mesmo os seus arrependimentos.

Por que eu não conseguia formular uma frase sequer que pudesse ajudar minha irmã a entender que tudo que eu estava fazendo era para o bem dela?


Na edição brasileira que eu recebi antes de iniciar a história tem uma lista com alguns personagens, mas ela não está completa, faltam três pessoas importantes na vida de Lakshmi: a sogra que ensinou toda a parte medicinal e as mulheres que ensinaram ela a fazer a henna. Mesmo assim já é uma base, principalmente para quem demora a se acostumar com nomes diferentes dos que usualmente são utilizados por aqui.

No final também há um glossário e algumas das receitas citadas na história, caso alguém queira se aventurar.


O que eu achei...

Eu adorei entrar no universo de A Pintora de Henna, ao mesmo tempo que a escrita tem uma leveza e uma fluidez, ela levanta importante discussões sobre o papel da mulher, educação, diferença de classes, machismo e divórcio.

Mas o livro não se passa em 1955? Sim, se passa. E seria cômico se não fosse triste como muitas coisas ainda não mudaram, como algumas situações podem facilmente acontecer nos dias de hoje, e como a luta das mulheres ainda está longe de terminar.

Que isso pudesse humilhá-la ou envergonhá-la não importava para ele; ela era sua propriedade.


Retornando ao livro, é muito fácil se deixar levar por suas páginas, se encantar pelas duas irmãs e seu fiel escudeiro, torcer para que elas tomem as melhores decisões e principalmente que o destino lhe reserve algo melhor do que vemos em algumas páginas.

E para quem gosta da dupla leia o livro e veja o filme, a Netflix irá fazer uma série adaptando a história, e confesso que já estou em dúvidas se vou querer assistir, pois normalmente gosto de fazer o caminho inverso, isto é, olhar primeiro e ler depois.

Então fica a dica para quem gosta de viajar pelas páginas, conhecer outras culturas, e se encantar com personagens que poderiam facilmente ser reais.


A Pintora de Henna
The Henna Artist
Alka Joshi
Tradução: Cecilia Camargo Bartalotti
TAG - Versus Editora
2020 - 351 páginas

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terça-feira, 22 de março de 2022

A Dama de Branco



Sinopse: Este volume reúne dezessete contos, entre narrativas esparsas - publicadas em jornais, revistas e sites - e textos inéditos, resgatados do computador de Sérgio Sant'Anna depois de sua morte. A segunda parte traz "Carta marcada", novela inacabada na qual o escritor vinha trabalhando com afinco e entusiasmo. Aqui está o estilo implacável e provocador que consagrou o autor de O voo da Madrugada como um verdadeiro mestre da literatura contemporânea.

Com apresentação e organização de Gustavo Pacheco, o livro A dama de branco é a despedida do escritor Sérgio Sant'Anna que morreu em maio de 2020, sendo mais uma vítima da Covid-19.

O livro reúne onze textos publicados no período de outubro de 2018 a maio de 2020 e textos inéditos encontrados em seu computador aos quais estavam sinalizados como finalizados ou tinham qualidade suficiente para comporem o grupo de contos.

Não escrever também exigia aplicação e disciplina diárias, o que ele conseguia a duras penas.


Como sempre ocorre quando há muitos contos, a resenha não irá passar um a um, mas sim dar uma ideia geral do que eu encontrei na leitura.

E falando em geral, uma coisa que todos os contos e a pequena história final possuem em comum é o fato de girarem em torno da morte, idade – sendo mais específica a velhice - e do sexo. 

Outros, como eu, trazem a palavra da dúvida de nenhum Deus, do vazio absoluto no infinito do universo.


Algumas das histórias, talvez por justamente serem publicações de jornais e revistas, me pareceram estar mais para crônica do que para o conto. Principalmente as que abrem o livro, como Anticonto e O pregador.

Também há contos relacionados com a memória, seja aquele se e sua eterna dúvida ou sonhos que trazem antigas lembranças como em O bordel e Tarzan e o império perdido.

Ele jamais poderia garantir se aquilo aconteceu verdadeiramente ou se foi fruto da sua imaginação afetada pelos remédios.


Há também a escrita, sempre ela povoando a imaginação dos que a escolhem como profissão, como no conto que abusa da palavra do título Vejo e Um conto quase mínimo.

Outro ponto interessante é que eles possuem muito do cotidiano com um toque de fantástico, como o pregador e suas falas na rua, ou o empresário que mata a mulher ou até mesmo o ser que apareceu no aparelho de tv.

Agora, aos oitenta anos, sinto-me só e não muito lúcido, pois falo sozinho, às vezes me vejo fazendo as coisas com ela.


Uma das curiosidades é o fato de dois contos darem os diferentes caminhos para uma situação que começa igual. É a história de Margarida que descobre sofrer de esclerose lateral amiotrófica e assim, através da narrativa do seu marido nos deparamos com suas escolhas em Por que escrevo? e Em preto e branco.

No geral os contos são bastante curtos, tendo uma média de três páginas, o que permite facilmente para quem gosta, como eu, de intercalar livros de histórias curtas com os de longa narrativa.

E meu inconsciente me mostrava que a fidelidade, como alguém me disse, é uma renúncia, para homens e mulheres.


E como indicado na apresentação, quem fecha o livro é uma novela ao qual ainda não havia passado por revisão chamada Carta Marcada. E por isso ficaram algumas pendências a serem corrigidas, como um problema nítido na linha do tempo, que pula dos anos 1960 para os dias atuais como se houvessem passados poucos anos e os personagens saem da ditadura diretamente para o smartphone e o Uber. Mas como era um projeto que o autor tinha muito carinho, foi incluído em seu último livro.

A carta é direcionada ao grupo de Alcóolicos anônimos ao qual o personagem principal relata episódios de sua vida desde a adolescência. Da aprovação no curso de direito ao seu namoro monitorado com Simone e o interesse pela menina-moça que era Alessandra, a irmã que ficava de acompanhante para que eles não fizessem nada errado.

Vejo, na capela do colégio interno, a imagem da Virgem Maria. E peço a ela que me faça feliz na vida.


Aqui temos um homem em que a bebida não interfere em seu sex appeal, pois nenhuma mulher resiste ao seu charme, e as suas relações são as mais diversas. 

Com emprego garantido pelo seu pai, é um homem que não se esforça em sua profissão, sendo um bon-vivant carioca.


O que eu achei...

A Dama de Branco foi o meu primeiro contato com a escrita de Sérgio Sant'Anna e achei a sua escrita bastante fluída, inserindo facilmente o leitor no cotidiano, com ênfase no carioca, e reflexões dos seus personagens sobre situações comuns.

O que me incomodou, e pode incomodar também outras leitoras é o extremo machismo dos personagens homens, algo facilmente identificado em vários contos. Sendo mais acentuado em Carta Marcada, onde em uma das cenas o personagem aproveita que a esposa está adormecida sob efeito de remédios para ter relações com ela. E a pergunta que ficou martelando o tempo todo na minha cabeça durante a leitura era se descrição da cena não era um estupro mascarado de fetiche? 

E não deixei também de notar que ela estava de bom humor nessa manhã, embora só comentasse, ligeiramente, que seus estudos estavam indo bem.


Exagero da minha parte? Não sei, já que o próprio personagem se questiona sobre isso e depois leva a entender que com o tempo se tornou algo que agradava aos dois. Mas isso só aumentou o bolo que eu já vinha acumulando no estômago após as observações que o mesmo personagem já havia feito sobre uma menor de idade.

Em contrapartida, pode-se dizer que ao mesmo tempo que o narrador se exibe com suas façanhas sexuais para os seus companheiros de Alcoólicos Anônimos, ele dá uma visão do comportamento de uma pessoa egoísta e mesquinha, e porque não dizer com um toque considerável de escrotice. 

O importante neste conto quase mínimo é que ele traga momentos muito breves de felicidade, para quem o lê e para quem o escreve.


O que torna muito fácil transferir para os personagens do livro sentimentos que acumulamos de homens reais com atitudes tão ou mais grotescas que os de A Dama de Branco. Ficando a dica para as meninas: se querem uma relação saudável, procurem homens diferentes dos descritos neste livro.

Mas mesmo com todo o incômodo, deixo aqui a dica para quem gosta de contos e crônicas, busca ler mais escritores brasileiros e não se incomoda a ponto de interromper a leitura com personagens que podem facilmente ser encontrados em nossa própria rotina.


A Dama de Branco
Sérgio Sant'Anna
Companhia das Letras
2021 - 188 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.

terça-feira, 15 de março de 2022

Pesado



Sinopse: Uma memória, uma confissão, uma catarse. Entre relatos dilacerantes e sempre vigiado por uma onipresente (e rígida) mãe, Kiese Laymon disseca sua própria vida neste que talvez seja um dos livros mais sinceros dos últimos anos. Um texto escrito não só com palavras, mas também com dor, ginga, peso, subversões da língua e abundância negra. E que reverbera dentro de nós uma pergunta de difícil resposta: até onde a vida nos dobra?

Em janeiro/22 recebi como associada da TAG Curadoria a indicação da maravilhosa escritora Alice Walker chamado Pesado, livro de memórias do autor e professor Kiese Laymon. De mimo recebi um planner para o ano de 2022.

A primeira coisa a se dizer é que Pesado pode ser definido como mais do que um livro. Ele é uma carta, um desabafo, o abrir de um coração com todas as suas dores, mágoas, perdas, complexos e reflexos que levam o leitor através da escrita vestir por algumas páginas todo o peso que um homem carrega desde os primeiros anos de vida.

Eu não queria escrever para você. Eu queria escrever uma mentira.


E por este motivo Pesado entrou na minha categoria de livros que são difíceis de resenhar, apenas porque parece que não há palavras suficientes para explicar a forma como ele mexe com diferentes sentimentos, sejam eles de identificação ou de incredulidade as ações das pessoas. Mas irei tentar.

O autor e professor Kiese Laymon divide suas memórias em quatro partes, mais uma introdução e o capítulo que fecha o livro, mas não a sua história.

A palavra que me surgiu na cabeça foi "felitristeza", assim mesmo, sem espaço e sem hífen, aglutinada.


Como uma carta para a mãe, ele retorna à adolescência e compartilha segredos antes guardados da figura materna, as surras levadas que marcam sua pele, a ansiedade e tristeza que se transformam em uma compulsão por comida, os sentimentos em relação a própria família e os homens com os quais sua mãe se relaciona.

E assim, em cada parte que se inicia, é possível observar que ele cresce não só fisicamente em altura e peso, como em relação a sua visão de mundo, tendo em um primeiro momento um espírito jovem cheio de esperança e força para escolher as suas próprias lutas, nem sempre atuando da melhor maneira conforme sua mãe, até chegar à vida adulta.

Vovó gargalhava e gargalhava até a risada dela se acabar quando eu chamava aquele queijo do governo de queijo afro-americano gourmet.


E conforme ele precisa se dobrar aos que estão em sua volta e se reconstruir, é necessário engolir os próprios sapos, cair, quebrar e se levantar. E foi assim que algumas das suas reações me fizeram lembrar de uma música da Elis Regina, começou com aquela parte que diz 'Ainda somos os mesmos, E vivemos, Como os nossos pais' até na minha mente ela abraçar o próprio livro.


O que você irá encontrar...

O Pesado do título é literal e mental. Kiese Laymon é um jovem gordo e negro, vivendo em no sul dos Estados Unidos, sendo mais específica, no Mississippi, onde o racismo pulsa devido a uma parte da população querer subjugar a outra com base em critérios de puro achômetro, acreditando em uma superioridade nunca comprovada.

Desde os primeiros anos este jovem verá a violência sexual e física de meninas e mulheres enquanto lambe as suas próprias feridas após apanhar de uma mãe raivosa, que parece descontar no menino o que não consegue controlar. Enquanto o pai é uma figura muito distante, ao qual as vezes até esquecemos da sua existência.

Às vezes você me batia com toda a sua força bem no meio da minha boca com cintos, sapatos, punhos e cabides.


Este menino também irá crescer e viver com pedidos como não ande a noite, não corra, cuidado com o corte de cabelo...nunca se sabe o que a polícia irá pensar. Até chegar à universidade e ser hostilizado pelo que ousa escrever e publicar, e mais tarde ver que nem sempre terá reconhecimento, por mais que se esforce.

E assim os leitores terão uma visão realista das escolhas, da humilhação e do sofrimento imposto por tamanha desigualdade enfrentada pela comunidade negra nos Estados Unidos, mesmo eles sendo tão americanos quanto os brancos que o julgam.

Ser duas vezes mais excelente do que os brancos vai te conseguir metade do que eles conseguem.


E como é impossível se manter 100% são nestas condições, Kiese Laymon apresenta compulsão, e esta compulsão também irá se modificar ao longo do caminho, tendo outros direcionamentos enquanto ele cresce. E embora ela mude o foco, em nenhum momento desaparece de sua vida.

Mas apesar de tudo, ele não desiste, e se o jovem Kiese desperta o desejo de entrar no livro e acolher o menino em um forte abraço, o homem Kiese provoca o desejo de lhe dizer: levanta e não desiste, sua luta é justa, siga evoluindo, aprendendo e fazendo a diferença.


O que eu achei...

Eu gostei muito da leitura. Quem acompanha o Instagram do blog deve ter notado uma longa distância de tempo entre uma leitura e outra, justamente porque Pesado não é um livro para se ler rapidamente.

O tempo inteiro ele mexeu com os meus sentimentos, algo em mim doía quando ele apanhava sem motivo algum, algo em mim entendia quando ele tentava transformar o que lhe consumia em atos como comer ou fazer muito exercício. 

Eu queria o dinheiro, a segurança, a educação, as escolhas saudáveis e as segundas chances que eles nos proibiram de ter.


Ao mesmo tempo achei muito interessante o uso frequente de uma frase, que aparecia nas situações mais tranquilas e harmônicas onde ele dizia que alguém deu risada e deu risada e deu risada até que a risada acabou. Nesta hora algo era aquecido com o calor daquela gargalhada que parecia sem fim.

Um livro para sentir o racismo na prática, sem lente de aumento, sem anestesia, onde é impossível não sentir raiva com as situações diversas.

E eu sabia que o poder de cometer abusos destruía o interior dos homens tanto quanto destruía o interior e o exterior das mulheres.


De bônus há muitas referências literárias, afinal, ele além de ser professor vem da casa de uma professora, e os livros são instrumentos cotidianos de informação e educação.

Como não sei se consegui transcrever em palavras tudo o que senti, fica apenas a dica: leia. 


Pesado
Heavy, an american memoir
Kiese Laymon
Tradução: Davi Boaventura
TAG - dublinense
2018 - 288 páginas

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Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.

terça-feira, 8 de março de 2022

Belo Mundo, onde você está?



Sinopse: Alice, Felix, Eileen e Simon ainda são jovens, mas sentem cada vez mais as pressões decorrentes do passar dos anos. Eles se desejam, se iludem, se amam e se separam. Eles se preocupam com sexo, com amizade, com os rumos do planeta e com o próprio futuro. Seriam eles as últimas testemunhas do ocaso? Conseguirão encontrar uma forma de viver mais uma vez em um belo mundo?

A escritora irlandesa Sally Rooney usa como enfoque em seu livro Belo Mundo, onde você está? pessoas com cerca de 30 anos, ainda incertos sobre as suas escolhas, independente de eles terem atingido o sucesso ou não, tentando se adaptar a chamada vida adulta e todos os desafios que ela apresenta. 

Na história temos Alice, uma escritora que resolve se mudar temporariamente para uma cidade pequena na costa da Irlanda depois de se sentir sobrecarregada com o sucesso de seu livro. Embora diga a melhor amiga que irá dar um tempo, segue em viagem promovendo o que escreve.

A mulher junto à janela o notou, mas, além de observar, não fez nenhum esforço a mais par chamar sua atenção.


Sozinha ela se utiliza do Tinder, um popular aplicativo de encontros, e assim conhece Felix, um homem que trabalha com encomendas em um armazém, curte uma cerveja e encontrar com seus amigos. 

Além de Felix, Alice troca e-mails com Eileen, sua amiga do tempo de faculdade, onde questões existências e do cotidiano se misturam. Ao contrário de Alice, Eileen se acomodou no cargo de assistente editorial, no momento ainda lamenta o término de um relacionamento e usa o ombro e o restante do corpo do seu amigo Simon, enquanto se vê envolvida nos preparativos do casamento da irmã mais velha.

Nada mudou em sua relação extrínseca com o mundo que possibilitasse a um observador determinar o que ela sentia quanto ao que via.


Simon é mais velho que Eileen e a conhece desde a infância, advogado por formação, atua como assessor parlamentar e é o tipo de amigo que está sempre disponível para ouvir, mesmo quando os seus sentimentos vão além de uma simples amizade colorida.


Os Personagens

Como é possível observar no resumo inicial, os personagens são a história, é a vida e os pensamentos deles que assistimos no virar das páginas.

Alice é irônica, vive a contradição de se manter longe das outras pessoas e ao mesmo tempo sentir falta de afeto. Existe um medo de baixar a guarda e sair magoada, vestígios de um passado recente que não foi curado e exige um pouco de paciência dos que estão ao seu redor.

Não preciso de todas essas roupas baratas e comidas importadas, e embalagens de plástico, eu nem acho que elas melhorem a minha vida.


Assim como Eileen, que apesar de se relacionar com outras pessoas acaba se acomodando em situações que não lhe agradam mais, sem ao menos ter uma justificativa para isso. Ela limita o próprio potencial, assim como os seus desejos, mesmo quando eles podem ser realizados. Um medo inexplicável de ir além, que a impede de ser feliz. 

Já Simon, por ser apaixonado por Eileen, acaba mantendo a própria vida afetiva em pausa, e mesmo que se relacione com outras mulheres, nunca se entrega a elas, pois está sempre disponível para atender a amiga.

Todos os dias me pergunto por que minha vida tomou esse rumo.


Por fim temos Felix, o menos trabalhado na narrativa, que parece estar ali para dar a real, as vezes de uma forma um tanto grosseira, nos outros três personagens.

E fazendo aquela participação especial estão os amigos de Felix que são bem legais e a família da Eileen, onde principalmente a irmã é bastante desagradável.


A escrita de Sally Rooney...

A narrativa em terceira pessoa permite ter uma visão do quarteto enquanto eles caminham, tropeçam e levantam pelo caminho. Sem usar o travessão para os diálogos, descrições, pensamentos e conversas se misturam, exigindo uma atenção a mais do leitor. Então não, leituras dinâmicas para este livro não são recomendadas.

Qual é a diferença entre uma namorada e alguém com quem você está saindo?


Mas isso não torna o livro difícil de ler, muito pelo contrário, pois a história é fluída, as passagens de um personagem para outro se realiza pelo fim dos capítulos, embora não haja o nome no início de cada um.

E se no início eles estão mais separados, como se atraídos pelo magnetismo do centro da Terra aos poucos eles e os leitores se preparam para o encontro presencial, onde poderão se olhar olho no olho e assim falar e ouvir o que desejam ou não.


O que eu achei...

Creio que Belo Mundo, onde você está? consegue retratar bem as incertezas deste período, onde você já está entrando em uma segunda fase da vida adulta e assim não é mais considerado tão jovem para rever suas escolhas, e inevitavelmente começa a confrontar a realidade com os sonhos de infância, como se preenchesse um check list.

Ao mesmo tempo existe os resquícios da adolescência, muitas vezes fortalecido pelas opiniões e influências familiares e da própria sociedade, que parece cobrar cada vez mais de você.

Não nego que você esteja sofrendo, aliás - sei que está, e é por isso que estou tão surpresa por você se sujeitar a isso tudo outra vez.


Confesso que as vezes os achava inseguros demais, momentos nos quais o Felix as vezes me representou em suas falas, pois os três são privilegiados em relação a liberdade que tiveram em suas escolhas, embora eles nem sempre enxerguem isso. 

O que fez com que em certos momentos a história não conseguisse me cativar, para em seguida surgir alguma situação que eu me visse um pouco neles, pois o processo de evolução e amadurecimento não ocorre magicamente aos 21, sendo uma constante eterna em nossas vidas. 

Quanto mais penso em sexualidade, mais confusa e variada ela me parece, e mais reles o nosso jeito de falar sobre ela.


E embora não tenha achado o livro maravilhoso, também não o achei ruim, pelo contrário, gostei do estilo utilizado pela escritora e me fez repensar na postura e comportamento de pessoas nesta mesma faixa etária que estão na minha volta apresentam e muitas vezes eu não entendia. 

No meu achômetro este livro pode cair no gosto justamente deste grupo, ao ver parte de sua própria realidade refletida, e quem sabe ajudar a colocar em ordem as suas próprias prioridades. Afinal, ficção serve tanto de divertimento como de terapia.

E a morte não é apenas o apocalipse em primeira pessoa?


Ficando a dica para a turma que está entrando nos trinta, para quem convive com esta geração, ou para quem quer simplesmente curtir uma leitura com vários questionamentos sobre vida, amor, amizade, relações familiares e medos.


Belo Mundo, onde você está?
Beautiful World, Where Are you
Sally Rooney
Tradução: Débora Landsberg
Companhia das Letras
2021 - 332 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.

terça-feira, 1 de março de 2022

Na estrada com o ex



Sinopse: Dylan e Addie se apaixonaram há alguns verões, sob o sol da Provença, na França. Quase dois anos atrás, porém, o relacionamento acabou, e eles pararam de se falar. Às vésperas do casamento de uma amiga em comum, os caminhos dos dois se cruzam novamente. Ou melhor, colidem. Quando, logo no início da viagem para a festa, o carro em que Dylan vai com um amigo bate no que Addie está com a irmã e um sujeito que pediu para ir junto, os planos mudam. Addie se vê obrigada a oferecer carona para a dupla, e, espremidos no carrinho, os cinco retomam a jornada. Com muitos imprevistos no trajeto e seiscentos quilômetros pela frente, Dylan e Addie serão forçados a confrontar as escolhas que os separaram e refletir se ter colocado um ponto-final no relacionamento foi a melhor decisão.

O clube de assinatura da intrínsecos encerrou o ano de 2021 com o novo livro de Beth O'leary chamado Na estrada com o ex. De mimo veio um livro do Neil Gaiman e decorações para a árvore de natal com citações dos livros enviados no ano de 2021, ao qual achei muito fofo.

Dylan está dirigindo a Mercedes do pai do seu amigo Marcus para irem em um casamento quando reconhece a motorista do Mini a sua frente, o que o impede de evitar uma colisão com o outro carro, onde estão sua ex Addie, a irmã e um colega da noiva Cherry, pois eles também vão ao mesmo casamento.


A estrada da amizade nunca flui suavemente, escute o que estou dizendo.


Ironicamente o Mini é o carro que sobrevive a batida, e com a Mercedes sendo rebocada para conserto, cabe a boa educação superar as mágoas e apertar os cinco passageiros dentro do carro e assim trazer todas as lembranças do passado.

Passado em comum que começa no sul da França, quando Addie está de caseira da casa de campo de Cherry, a noiva que os uniu. Entre os hóspedes que vem e vão, um dia no lugar de uma família inteira quem chega é o jovem Dylan.


Ele é tão familiar que, por um momento, tenho a sensação de estar olhando para o meu próprio reflexo.


O que começa com um papo, rapidamente evolui para o beijo até chegar a declarações de amor. Só que a diferença dos dois vai além do dinheiro. Enquanto ela já definiu o que deseja para o futuro, ele ainda se encontra perdido, sem coragem de enfrentar a própria família. 

Só que este amor não termina bem, e agora após dois anos do término eles se reencontram em um espaço apertado em um longo caminho pela frente, tendo muito mais a dizer um ao outro do que pensavam.


Os personagens


Tem famílias e personalidades para todos os gostos em Na estrada com o ex, e como o núcleo é pequeno, assim como o tamanho do carro, eles se revelam em seus diálogos e brigas ao longo do caminho.

Dylan é o cara que faz o tipo rapaz bonzinho, sempre atento, disposto a ajudar, no passado ele demonstra ser bastante inseguro e facilmente influenciável. Possui um grande medo de seu pai, um homem preconceituoso que deserdou o filho mais velho quando este se assumiu homossexual e agora cobra a escolha de uma carreira aceitável do filho mais novo.


Estou o quê? O que eu estou? Uma bagunça.


Adeline, chamada pelo apelido de Addie, é uma jovem que escolheu ser professora por profissão, vem de uma família bastante equilibrada e amorosa, que apoia tanto ela quanto sua meia-irmã Deb. O que as fez se tornarem mulheres bastante independentes e conscientes de suas escolhas.

Marcus é o amigo inconveniente de Dylan, como outros do ciclo de amizade dos dois, é rico, gasta horrores de dinheiro em bebida e drogas, além de ter uma vida sexual bastante ativa com diferentes parceiros. A questão aqui é que ele seria um amigo de infância do personagem principal, mas suas ações nos deixam em dúvida se ele é apaixonado por Addie ou Dylan, ou se vive em constante competição com Dylan por uma inveja inexplicável. O que torna o tipo de amigo do amigo insuportável de aturar.


É como se... houvesse uma música de fundo tocando, ou como se a saturação das cores estivesse mais forte.


Deb que também está no carro e também estava na França no início de tudo, foi quem segurou a barra durante a separação da irmã e agora sai pela primeira vez para uma festa após abraçar uma maternidade independente. É ela que garante boas risadas na história junto com Rodney.

Rodney é aquele cara da música dos Paralamas do Sucesso "entrei de gaiato no navio..." que em um grupo entre os convidados para o casamento consegue carona com as duas irmãs e se vê em uma viagem muito maluca.


Ela é como uma ninfa das águas, com o cabelo escuro e molhado e os olhos azuis feito um rio.


Cherry é a noiva amiga de todos que liga de tempos em tempos desesperada para as irmãs querendo saber quando é que elas vão chegar, tão apavorada com coisas bobas que até surpreende os que a conhecem de longa data.


A escrita de Beth O'leary


Utilizando a narrativa em terceira pessoa, Beth O'leary utiliza o mesmo recurso que eu havia visto em A Troca: dois narradores contando os seus pontos de vista, com a diferença que temos um antes e depois.

Com isso o leitor vai descobrindo os motivos de cada reação ou palavra no agora ao ser transportado para o antes e entender como os personagens viveram a situação ou lembrança que vem a toma através de diálogos ou pensamentos. 


Algum dia vai aceitar uma única coisa boa que eu digo sobre você?


Ao mesmo tempo que acompanhamos as mudanças de cada um, suas evoluções e novos comportamentos em relação as situações encontradas, o que pode ser surpreendente após dois anos de afastamento.

E assim como em A Troca, há um grupo para colocar os dois personagens principais em diferentes situações, embora no Antes a história logo de início acaba sendo muito mais focada no relacionamento físico de Dylan e Addie.


O que eu achei...


Eu amei A Troca, então estava dando pulos de alegria quando vi que receberia outro título da autora no final do ano. Mas as vezes criar muita expectativa não é bom, e confesso que me decepcionei com Na estrada com o ex.

Achei o começo bem chato, talvez a palavra correta seja arrastado, sendo que quando faltava cerca de um terço para finalizar a história deu uma melhorada com o acréscimo de cenas mais engraçadas e maior dinâmica nos capítulos, com os desenlaces finais.


Explica muito sobre várias atitudes irracionais cometidas ao longo da história: todo homem que já foi à guerra deve ter gostado muito de alguém.


O curioso é que a narrativa trouxe vários assuntos bem interessantes que poderiam ser abordados além da superfície, e mesmo de forma leve, ter tornado o livro muito mais envolvente, como questões de confiança em um casal, o preconceito hipócrita que vem de dentro da família, desvios psicológicos que precisam ser tratados e o desejo de maternidade.

Só que eles não foram desenvolvidos, ficando apenas fragmentos a serem explorados enquanto eram disponibilizadas muito mais páginas para as cenas quentes dos personagens principais.


Para ser verdadeiro consigo mesmo, antes de mias nada é preciso ter uma noção clara de quem se é.


Mas sim, posso estar sendo chata, e meu espírito não estar no ritmo de leveza ou obviedade que a escritora propôs. Então como sempre, deixo a dica literária, principalmente para quem gosta de um romance romântico bem leve, pois com certeza pode ganhar o seu coração e ainda garantir aquela torcida pelo happy end da última página.  


Na estrada com o ex
The road trip
Beth O'leary
Tradução: Ana Rodrigues
Intrínseca
2021 - 416 páginas

Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado é pago integralmente pela autora.