quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Sonhos em tempo de guerra


Sinopse: Em Sonhos em tempo de guerra, uma das vozes mais influentes da literatura contemporânea africana registra com delicadeza um passado que ainda tem muito a dizer ao presente. Ngũgĩ wa Thiong'o nasceu em uma região rural do Quênia, e cresceu sob o impacto da Segunda Guerra Mundial nas colônias britânicas. No cotidiano da família formada por seu pai, as quatro esposas - a terceira delas sua mãe - e os muitos irmãos, Ngũgĩ localiza as origens do futuro narrador: histórias contadas ao redor do fogo e uma sede insaciável de aprendizado após o primeiro contato com a escola.


No mês de agosto/21 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação do escritor brasileiro Jeferson Tenório o primeiro livro do projeto autobiográfico do escritor, pensador e professor queniano Ngũgĩ wa Thiong'o chamado Sonhos em tempo de guerra. O mimo foi um jogo para formar palavras, que já foi para as mãos da minha filha - e cá entre nós, uma ótima forma de estudar a escrita das palavras.

Ngũgĩ wa Thiong'o nasceu em 1938 em um país que ainda era colônia britânica. Quinto filho de sua mãe, e um dos vinte quatro de seu pai, vivia circulando entre as cinco cabanas posicionadas em forma de círculo, onde cada uma pertencia a uma das esposas e a principal era do seu pai.


Minha mãe era muito boa em fazer aparecer uma refeição por dia, mas quando se tem fome, é melhor encontrar alguma coisa, qualquer coisa, para afastar a mente das lembranças de comida.


A convivência familiar era de muitas histórias e contrastes de personalidade. O pai começa como um homem rico para a comunidade e reservado, de pouco contato com seus numerosos filhos, mas por ações dos colonizadores vê suas conquistas escaparem por seus dedos, mudando sua forma de lidar com os familiares ao se entregar a bebida. Já as mulheres sempre foram muito agitadas, fazendo rodas para compartilhar lendas e fatos passados, cozinhando e tratando com afeto todas as crianças que circulam pelo local, vivendo em uma harmonia talvez inesperada para tantas esposas.

Sua mãe sempre incentivou os estudos, algo que os seus irmãos mais velhos não deram sequência. Uma das melhores frases da história vem dela, que sempre perguntava ao filho quando este lhe falava dos seus aprendizados, provas e conquistas: "Foi o melhor que você conseguiu fazer?", mas não em tom de cobrança, e sim se ele havia se esforçado para aquilo. O resultado é um menino que adora aprender e sempre está buscando o seu melhor nas situações mais adversas. 


As esposas de meu pai, ou nossas mães, como as chamávamos, revezavam-se para levar comida à sua cabana.


É ela também a responsável por uma mudança na vida do garoto, quando após um episódio de violência doméstica decide retornar para a casa do próprio pai. O avô materno, ao qual o garoto herdou o nome,  acaba se tornando uma referência masculina, fazendo com que Ngũgĩ sinta muito orgulho de virar seu escriba particular e ter permissão para compartilhar de sua mesa.

E é acompanhando o crescimento do menino Ngũgĩ que o leitor entender como os quenianos viraram soldados para defender a Inglaterra durante a segunda mundial, os riscos que eles corriam por fazer fronteira com territórios pertencentes a Mussolini e as diferenças na distribuição de recompensa quando tudo terminou.


Todos, os professores, os estudantes, parecem esplêndidos em sua estranheza.


Assim como conhecer a Revolta dos Mau Mau, conflito presente em grande parte da sua adolescência, durante os anos de 1952 e 1960 que lutava pela independência do Quênia, citando personagens históricas do país como Jomo Kenyatta, que foi referência do grupo e o primeiro presidente do Quênia.

Neste ponto temos o irmão mais velho por parte de mãe largando a carpintaria para se juntar a luta pela independência, o Bom Wallace é uma referência forte ao menino Ngũgĩ, pois ele também frequentou a escola e apoia o garoto no aprendizado, demonstrando sentir orgulho ao dar importância a todas as etapas e conquistas do irmão mais novo.


A crença em si mesmo é mais importante do que intermináveis temores acerca do que os outros pensam de você.


Narrado em primeira pessoa, o escritor Ngũgĩ wa Thiong'o compartilha em Sonhos em tempo de guerra as primeiras memórias da infância até a sua entrada no ensino médio. Entre pequenos acontecimentos familiares, que vão de brincadeiras, comidas, o primeiro uniforme e os homens que admirava, passando por momentos históricos do período.

Para o leitor pode ser bastante perturbador ver a necessidade que os colonizadores tinham de se adonar dos bens das famílias, em uma enorme falta de respeito com os povos que ali estavam quando eles chegaram. Ao mesmo tempo se entende há não compreensão que estes novos habitantes sentiram em relação à cultura, como o costume da circuncisão, algo que ainda hoje é muito discutido, principalmente a feminina. Embora isso não justifique a tentativa de apagar toda a história de vários povos, como ocorreu em quase todos os países colonizados.


Uma conversão bem-sucedida era medida a partir de quão rápida, profunda e completamente alguém se despojava de sua cultura e adotava novas práticas e valores.


Também me chamaram a atenção a busca por manter as próprias tradições por meio da escola, onde o autor frequenta tanto a estrutura organizada pelos missionários quanto as criadas pelos quenianos que completaram os seus estudos. Contando os leitores as diferenças encontradas nas duas formas de ensino, que vai das disciplinas - com ênfase especial para o ensino da língua inglesa-  até o aspecto comportamental que inclui as atividades extracurriculares. 

Eu gostei do livro, mas confesso que apesar de eu adorar livros históricos, confesso que a forma como ela foi abordada na narrativa pesou um pouco na fluidez da leitura. Não, não estou dizendo que é ruim, mas existe nitidamente uma pausa para explicar o contexto histórico, dando uma sensação de explicação de sala de aula - como ele é professor, talvez isso explique o estilo -, quebrando muitas vezes o fluxo narrativo nesta troca de visão pessoal, contexto histórico e retorno as memórias.


Talvez sejam os mitos, tanto quanto os fatos, que mantenham os sonhos vivos mesmo em tempo de guerra.


E apesar do livro ser o primeiro de uma série autobiográfica o seu final não exige obrigatoriamente a leitura em sequência do próximo livro, já que ele fecha de forma redonda. Ficando a opção de procurar os demais para quem quer saber como Ngũgĩ wa Thiong'o e sua família, em paralelo com o próprio Quênia, seguiram durante os seus próximos anos e conquistaram a sua independência, e no que este marco influenciou a vida deles.

Ficando a dica de leitura para quem gosta de biografias, de fatos históricos ou anda na busca de livros que permitam conhecer melhor o continente africano.


Sonhos em tempo de Guerra - Memórias de Infância
Dreams in a time of war: A childhood memoir
Ngũgĩ wa Thiong'o
Tradução: Fábio Bonillo e Elton Mesquita
TAG - Biblioteca Azul
2010 - 248 páginas

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terça-feira, 28 de setembro de 2021

Os cem anos de Lenni e Margot



Sinopse: Lenni é uma adolescente de dezessete anos, dona de uma personalidade especial e de muito carisma. Pode-se dizer que é uma garota cheia de via... exceto que, segundo os médicos, ela está à beira da morte. Como um modo de preencher seus dias no hospital em que está internada e sozinha - e de cumprir uma aposta feita com o padre da capela -, Lenni começa a frequentar aulas de arte terapêutica. E é então que conhece Margot, uma senhora de oitenta e três anos, doce e de coração rebelde como o de Lenni. A conexão entre elas é intensa e imediata, e as duas percebem uma peculiaridade: juntas, têm um século de via! Para celebrar esses cem anos que compartilham, decide montar uma exposição de cem pinturas. Em cada uma, retratam uma memória importante dos anos que viveram. Histórias de paixão, juventude, amadurecimento, alegria, afeto, de quando se encontra em alguém o amor de sua vida. Histórias que merecem, sempre, ser compartilhadas.

No mês de agosto/21 recebi da minha assinatura da TAG Inéditos o livro de estreia da escritora inglesa Marianne Cronin Os cem anos de Lenni e Margot. De mimo veio um livro de colorir com trechos e desenhos que remetem o livro, além de uma caixinha com seus lápis de cores. Mas se junto viesse uma caixa de lenço, não teria sido demais.

Lenni é uma jovem de dezessete anos de mente e língua afiada, curiosa e inteligente, como toda adolescente se sente entediada ao ter que ficar muito tempo em um mesmo lugar. E no caso dela isso é rotineiro, pois ela mora no Hospital Princess Royal, na cidade de Glasgow na Escócia. É uma paciente da Ala May, onde ficam crianças e adolescentes com doenças limitantes da vida, mais popularmente chamadas de doenças terminais.


Quando as pessoas dizem "terminal", penso em aeroporto.


A jovem cansada de ficar na cama que se tornou seu lar resolve aproveitar uma obrigação prevista em lei para as pessoas que possuem crenças religiosas e assim passear até a capela do hospital, e assim ela conhece o Padre Arthur, um senhor que muitas vezes me pareceu quase um anjo que aparecia de tempos em tempos na história.

Da mesma forma ocorre com a Sala Rosa, local onde a arte é utilizada como meio terapêutico e logo chama a sua atenção. Os responsáveis até tentam deixa-la em uma turma de adolescentes cujo diagnóstico é bem mais simples que o de Lenni, mas como ocorria antes de sua internação, ela não consegue interagir com pessoas de sua idade. Diferentemente do que ocorre na turma da terceira idade, onde logo ela se sente à vontade e encontra Margot, que está internada por um problema cardíaco.


Dizem que quando alguém morre é porque Deus chamou a pessoa de volta para ele, então pensei em me apresentar logo de uma vez.


A conexão com esta jovem senhora de 83 anos é imediata, e conforme elas conversam, surge a ideia de somar suas idades e fazer uma exposição com desenhos que retratam situações que marcaram suas vidas. Se por um lado Margot desenha muito bem, por outro, Lenni registra tudo o que ocorre e que ela descobre em um caderno. 

E é desta forma que o leitor irá conhecer aos poucos a história destas duas personagens e entende-las um pouco mais. Como o fato de Lenni não se conectar com pessoas de sua idade há muito tempo, não receber visitas de nenhum familiar - o que inclui seus pais -, questionar Deus e não se sentir pronta para morrer. 


Em alguma parte do mundo lá fora estão as pessoas que nos emocionaram, que nos amaram ou que fugiram de nós.


Ou a intensidade de Margot, com seus amores, os anos de guerra e paz, sua avó paterna mesquinha, sua mãe tão forte e presente, suas fugas e procuras.

Narrado em primeira pessoa pelo que Lenni vive e escuta, Os cem anos de Lenni e Margot é uma leitura muito sensível, principalmente trazendo a memória das personagens os diferentes tipos de acontecimentos, dos mais comuns, passando pelos muitos felizes até aqueles que as fizeram cair, para depois se levantarem e seguirem suas caminhadas.


De qualquer modo, não sou boa em perdoar as pessoas porque acho difícil esquecer.


Não poderia deixar de falar dos personagens secundários, como o Padre Arthur que sempre respondeu de maneira muito sincera as perguntas de Lenni, por mais diferentes e provocativas que elas fossem. Da enfermeira nova que não tem o seu nome revelado na história, mas participa ativamente dos acontecimentos. Da moça que tem a ideia de criar a Sala Rosa e encontra perdas e ganhos nos corredores do hospital.

Eu gostei da história, seus diálogos são interessantes, existe uma ironia as vezes direta, as vezes sutil. Como que provocando o leitor a buscar as suas próprias imagens, o que ele desenharia para representar cada ano de sua própria vida, quais os símbolos pessoais que ela carrega.


E agora eu podia dizer com sinceridade que havia experimentado o bolo de meu centésimo aniversário.


Mas não achei o livro de todo leve, por ter a presença constante da morte, principalmente em uma menina tão jovem, com tantas possibilidades e escolhas a serem feitas. Para os mais sensíveis ele pode ser um pouco difícil em alguns momentos, ao mesmo tempo que instiga a dar mais valor em aproveitar este bem tão preciso chamado Vida. 

Na edição da TAG Inéditos há ainda uma entrevista com a autora, com perguntas dos livros favoritos de Marianne Cronin até detalhes da própria Lenni e Margot, sendo um complemento pós leitura.

Os cem anos de Lenni e Margot
The One Hundred Years of Lenni and Margot
Marianne Cronin
Tradução: Flávia Souto Maior
TAG - Planeta
2020 - 351 páginas

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terça-feira, 21 de setembro de 2021

O deus das avencas



Sinopse: Em O deus das avencas, Daniel Galera expande seu universo narrativo para nos trazer um livro diferente de tudo o que já fez - especulativo e por vezes sombrio, mas extremamente humano. Na novela que dá título ao volume, um casal se fecha em casa à espera do nascimento do primeiro filho, e mergulha numa incerteza crescente, tanto sobre o destino deles como sobre os rumos do país. Em "Tóquio", Galera avança algumas décadas para retratar a vida de um homem solitário, obrigado a enfrentar o passado num mundo que atravessou um desastre ambiental e tecnológico. E por fim, em "Bugônia", dá um passo além ao recriar a história de uma comunidade pós-apocalíptica em simbiose com a natureza, que, pressionada pelas ameaças externas de um planeta devastado, precisa se transformar radicalmente.


O deus das avencas foi a minha primeira experiência com a literatura do autor brasileiro Daniel Galera, ao qual ouvia muito falar, em muitos casos as obras acompanhadas de elogios, o que fez a minha curiosidade aumentar ao receber o livro.

Como é indicado na sinopse são três histórias com personagens, lugares, contexto e tempo diferentes. Mas isso não me impediu de fazer uma ligação entre elas, mas primeiro vou falar um pouquinho de cada uma e apercepção que tive.

Sabem que é ilusão, mas também que, em certo sentido, estão realmente silenciando um pouco o mundo, construindo um abrigo contra o cerco das demais urgências.

A história que abre o livro é a que dá o título também, em O deus das avencas o leitor irá para o centro histórico de Porto Alegre, onde moram o casal Lucas e Manuela. É o ano de 2018, véspera das eleições presidenciais no Brasil. Manuela está grávida de quarenta semanas, sentindo as contrações, mas sem dilatação, o que gera o pedido da médica para que ela siga em casa caso mantenha a decisão de um parto humanizado.

Entre o isolamento tedioso do casal dentro do apartamento e caminhadas pelas ruas da cidade, eles vão de preocupações reais a diálogos e pensamentos que podem dar um ar de um pouco pedante e superficial, do estilo que se acha cheio de sabedoria, mas não consegue nem ter independência financeira familiar, já que os mesmos pais criticados por sua opção de voto são os que mandam dinheiro para a dupla se sustentar.

Às vezes tudo que precisava era ser um pouco usada, sabendo que dali a pouco, quando recobrassem as forças, ela seria amparada no que fosse necessário, sem riscos e sem cobranças.

Entre a preocupação com a natureza e fumar ao lado de uma gestante, fica claro que muitos dos assuntos discutidos são para preencher vazios de uma relação sem profundidade, cujo único laço é a criança que irá chegar.

Uma das curiosidades para mim foi as respostas que a obstetra dava aos telefonemas, ao qual me deixou em dúvida se Manuela ligava à toa durante toda a gestação ou se ela era realmente muito descansada. Sim, os personagens se tornam reais para mim durante a leitura.

Mesmo agora, porém, teme que os invoca de maneira precipitada, ao mesmo tempo tarde e cedo demais.

E assim todas as tragédias aqui imaginadas são refletidas nas duas histórias a seguir, ambas em um futuro distante, mas abordando dois estilos de vida que diferenciam as classes sociais após grandes momentos de caos.

Em Tóquio, a segunda história que se segue, tem início na cidade de São Paulo, em uma roda de terapia bastante peculiar em um local chamado APPPH - Associação de Pesquisas e Práticas em Pós-Humanidade.

Passei a odiar mesmo minha mãe depois de uma certa noite, em Tóquio, quando eu tinha dezoito anos.

Todos os presentes, incluindo o personagem que conduz o leitor pela história, possuem em comum o fato de um familiar ter realizado o escaneamento da sua mente, abandonando o seu corpo original para habitar os mais variados objetos, que podem ser de um robô a uma peça do tamanho de um chaveiro.

As pessoas aqui precisam reaprender a lidar com as engenhocas tecnológicas após as empresas responsáveis terem ido à falência. Sem assistência, são vozes cheias de memórias que podem ser ligadas e desligadas conforme a resistência de seu portador.

Não pensava na minha mãe, uma maluca que tinha decidido abrir mão dessa vida aos cinquenta e seis anos para digitalizar o conteúdo de seu cérebro, crente de que isso lhe garantiria a vida eterna.

Aqui me lembrei de outro livro lido recentemente e resenhado aqui no blog, pois assim como em Nossa Parte de Noite, os escaneados são pessoas ricas em busca da imortalidade, uma ambição tão desmedida que as faz ignorar todos os riscos e perigos em uma busca sem limites pela eternidade.

E o que é a eternidade em meio ao caos desta São Paulo protegida em uma bolha, no que parece ser um ambiente pós apocalíptico, onde apartamentos viraram fazendas de cultivo após devastação dos campos, o caminhar é feito por túneis climatizados devido ao calor insuportável que aflige a Terra, e ninguém parece se importar com os que estão fora deste "campo de força".

O mundo nada mais é do que o lugar do qual não podemos fugir.

A cidade de Tóquio aqui é onde o personagem sem nome vê a mãe pela última vez, perde o amor de sua vida, e descobre os planos maternos para se imortalizar. Fazendo com que uma relação de amor e ódio substitua o cordão de ligação entre os dois. As lembranças desta viagem fazem paralelo com o tempo presente da história, o que nos permite compreender com mais amplitude como tudo chegou naquele ponto.

Confesso que esta foi a história que mais gostei, pois ela proporciona reflexões interessantes não apenas sobre as relações humanas, mas também sobre o que determina o que somos? O nosso corpo? A nossa mente? Nossas lembranças? Ou os nossos sentimentos?

Sabe que deveria procurar em tanta complicação a leveza das possibilidades, mas na maior parte do tempo encontra um peso indistinto e difícil de carregar que a arrasta para longe da paz.

Quem fecha é Bugônia, ao qual fiquei em dúvida se seria em um futuro após Tóquio ou em tempo paralelo com ela, já que aqui temos uma comunidade que vive no mundo externo, longe das metrópoles fechadas. Sendo bem possível que a comunidade do Topo enxergasse apenas as luzes de São Paulo.

Nesta história fui conduzida pela jovem Chama, que nos apresenta quem são as lideranças do chamado Organismo, onde adultos e crianças dividem tudo, como em uma sociedade hippie pós apocalipse que encontrou um lugar aparentemente seguro. Para sobreviver aos inúmeros vírus que exterminaram parte da raça humana, eles consomem necromel frequentemente, que como o nome indica, é gerado pelas abelhas livres que também moram no topo a partir do corpo de pessoas mortas.

Que a diferença entre estar vivo e não estar vivo é um pouco como sonhar sabendo que está sonhando e de repente acordar e não ter certeza se ainda está sonhando ou não.

Tudo muda na comunidade com a chegada de uma nave e seu astronauta estrangeiro, trazendo diferentes sentimentos à toa, e comportamentos quase selvagens. Somado a isto eles se veem sob o risco de confrontar um outro grupo, este mais extremista e também perigoso, que de certa forma me remeteram ao filme Mad Max.

Todas as mudanças e ações são pelos olhos de Chama, que mesmo sem estudo, usa o seu conhecimento para avaliar o que é justiça e realizar questionamentos sobre o que é correto e o que deveria ser avaliado, demonstrando ser uma opção de liderança diferente entre os já conhecidos guias.

Há entre eles quem acredite na existência da alma, uma excrescência do corpo que persiste após a decomposição e precisa de carinhos e certas palavras e cantos para descansar de vez.

Esta leitura foi bastante curiosa e intrigante, se em um primeiro momento eu cheguei a achar o livro uma viagem, mudei totalmente de ideia ao prestar a atenção com outro olhar no jornal da noite, toda a destruição da natureza pelas queimadas, o derretimento do gelo, a pandemia que vivemos e seus negacionistas, o que fez acender aquela luz de que talvez esse futuro não seja nem irreal nem tão distante assim se não mudarmos os rumos atuais.

O que pode parecer um exagero de Daniel Galera, onde no lugar de carros voadores e soluções para todas as doenças temos o medo de novos vírus e uma Terra caindo aos pedaços, me fez pensar no quanto nós, como humanidade, não damos importância para tudo o que influência o nosso dia-a-dia, o que vai das escolhas pessoais, dos sentimentos que guardamos até chegar a forma como cuidamos do nosso planeta.

Queria entender exatamente o que se reconfigura nas relações entre as coisas para agitar nela tais efeitos, mas sabe que ainda tem acesso somente a cintilações insuficientes.

Pois sim, para mim parece um tanto óbvio que os últimos acontecimentos políticos, virais e que envolvem a natureza influenciaram a escrita. E mesmo que você não concorde com o primeiro casal de protagonista, vale refletir sobre o comportamento atual de governantes e governados, antes que seja tarde demais. Assim como as linhas tênues que separam vida e morte, esperança e uma rua sem saída.

Em relação a escrita, as duas primeiras histórias são narradas em primeira pessoa e apenas a última tem um terceiro como narrador. Sendo que na primeira história temos um único e longo capítulo, acompanhando as horas que passam de sexta até domingo. Em Tóquio o capítulo também é único, mas há espaços maiores entre os parágrafos separando os tempos do personagem. Em Bugônia temos os capítulos, como que dando um maior respiro entre os acontecimentos na comunidade.

Sobrevivíamos sim, mas amaldiçoados.

E ao final das três jornadas eu realmente gostei do livro, de suas ligações invisíveis, do olhar pessimista com um leve toque de esperança. Um livro diferente, de escrita fluída e leitura que pode trazer diferentes pensamentos mesmo após a página final.

O deus das avencas
Daniel Galera
Companhia das Letras
2021 - 247 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Hamnet


Sinopse: Com base em poucas informações sobre a biografia de William Shakespeare, Maggie O'Farrell cria a trama protagonizada por Agnes, uma mulher excêntrica e selvagem, que tinha o hábito de caminhar pela propriedade da família com seu falcão pousado na luva, além de possuir dons extraordinários como prever o futuro, ler pessoas e curá-las fazendo uso de poções e plantas. Após o casamento com um professor de latim, ela se tornou uma mãe super protetora e a força centrífuga na vida do marido, que seguiu para Londres, onde consolidava sua carreira como dramaturgo.  A vida de ambos é severamente abalada quando o filho, Hamnet, sucumbe a uma febre repentina.

Recebi no mês de julho/21 da minha assinatura da intrínsecos o livro Hamnet da autora inglesa Maggie O'Farrell. De mimo veio o livro Era uma vez em Hollywood e um pôster que mistura Shakespeare e Tarantino.

Antes do primeiro capítulo o leitor já é informado que o menino Hamnet morreu aos onze anos em 1596, e inspirado neste menino, o pai escreveu e encenou a peça que se tornou imortal: Hamlet.


Ele dá cada passo devagar, desliza ao longo da parede, as botas pisando firme e ruidosamente.


Já sabendo a base da história, o leitor irá se deparar com um Hamnet apavorado em 1596 atrás de um adulto, pois sua irmã gêmea, Judith, estava passando mal, apresentando os primeiros sintomas da peste negra que assolava o local. Do avô só recebe violência, as mulheres todas saíram de casa, e o médico não está no consultório.

Retorna-se alguns anos no tempo e encontramos o pai de Hamnet dando aula de latim em uma fazenda para alguns meninos como pagamento de uma dívida de seu pai. É pela janela que ele se encanta por Agnes, também chamada de Anne, uma mulher forte, conectada à natureza, que muito cedo perdeu a sua mãe.


Está cauteloso, as palavras do pai lhe ecoam na mente: fique longe do seu avô quando ele estiver com o humor sombrio.


Ela é mais velha que o rapaz, mas isso não impede a paixão entre eles, e entre contrários e a favores, eles se casam em uma cerimônia discreta, tendo três filhos, o que agonia Agnes, já que em uma visão, ela enxergou apenas dois de seus filhos em seu leito de morte, e a faz ficar de olho na menina que julga mais frágil.

E quando a morte vem, e isso não é um spoiler visto que a nota histórica já avisa o leitor, embora não o prepare devidamente, a dor ecoa com força pelas páginas, atingido os mais sensíveis e principalmente aqueles que tem todo o amor do mundo pelos filhos, o que me fez pensar que uma caixa de lenço deveria ter sido enviada como mimo extra nesta caixa.


A cena que o recebe é tão imprevista, tão desconcertante, que ele leva um instante para se situar, para determinar o que está acontecendo.


Maggie O'Farrell divide o seu Hamnet em duas partes, na primeira temos o passado e o presente intercalados. Das primeiras descobertas do casal, a luta contra o tempo de uma mãe desesperada, que a tantos ajudou e agora nada consegue fazer pelo seu filho. A bonita ligação dos gêmeos, cujo amor vem desde o útero, e descreve uma das cenas mais bonitas do livro.

Falando em descrição, é na primeira parte que temos o caminho da peste que atinge a família, tudo começando em um macaquinho em um porto distante que encontra um rapaz do mar. Aqui é muito fácil fazer uma associação com os dias atuais, sendo praticamente uma explicação de como uma doença se espalha fácil, superando distâncias e fronteiras.


Não quer uma cerimônia realizada a milhas de distância da cidade, em uma igrejinha com um padre esquecido e com ela e o noivo entrando sorrateiramente em uma capela.


Na segunda temos toda a dor do luto, sentida por cada membro da família de uma maneira diferente, causando reações e expectativas totalmente individuais. Um capítulo único, pesado, e longo como a eterna saudade da perda, que em alguns momentos exige um tempo para respirar e assim se livrar um pouco da sensação de sufocamento que a ausência tão amada provoca.

E como mérito da escritora temos a possibilidade através de sua ficção de uma nova visão de Anne Shakespeare. Casada por 34 anos com o dramaturgo, eles, como na história do livro, viviam em cidades separadas, ela na terra natal com os filhos e próxima aos irmãos e sogros, e ele em Londres escrevendo e encenando suas peças, alcançando o sucesso popular.


Passou a noite ali: não se levantou, não comeu, não dormiu nem descansou.


Somado as casas separadas o que gerou algumas conclusões não muito gentis entre os biógrafos foi a diferença de idade entre os dois - cerca de oito anos - e o fato de ela casar grávida, algo que chocava muito a sociedade local em 1582.

O que fez com que alguns a descrevessem como uma solteirona que seduziu o pobre rapaz para obriga-lo a casar, fazendo com que Shakespeare cometesse um erro desastroso. O que explicaria nesta visão machista o fato de em seu testamento ele ter deixado apenas a cama do casal para a esposa, deixando quase todos os bens nas mãos da filha mais velha Susanna.


Ela, que sempre soube, sempre sentiu o que iria acontecer antes que acontecesse, que sempre se moveu com serenidade num mundo totalmente transparente, foi enredada, pega de surpresa.


Em meio ao desconhecido, a escritora preenche estas lacunas com suas próprias especulações de forma muito verossímil, mantendo a característica de Agnes ser uma mulher à frente do seu tempo, em um misto de força, gentileza, delicadeza, que nada teria com a megera muitas vezes descrita.

Então sim, adorei a forma como ela misturou o pouco que se sabe e contrariando historiadores criou uma ficção sobre a força e sofrimento feminino. Onde no meio de tanta intensidade e dor é possível se colocar no lugar dos personagens facilmente, principalmente quando também vivemos em meio a uma pandemia. Afinal, qual mãe não teme perder os seus filhos?


Pousa a agulha com cuidado porque ela não pode espetá-lo, nem mesmo agora, e estende os braços.


É muito fácil gostar de Agnes e seus filhos, a generosidade de como ela procura auxiliar os doentes que a procuram, o abrir mão do convívio diário para que o marido encontrasse sua vocação e fosse feliz. São várias as escolhas que ela faz ao longo do livro, e é ela que precisa administrar sozinha os acertos e erros de cada uma.

Sobre a narrativa em si, mesmo Maggie O'Farrell utilizando da terceira pessoa, consegue criar uma aproximação muito forte com os personagens. A forma como ela descreve as cenas, nos faz imaginar cada casa, rua e árvore, mas sem ser tedioso, já que ela faz isso durante a movimentação de cada um deles, em uma procura, caminhada ou olhar.


Pegou a morte do filho e a tornou sua, pôs a si mesmo nas garras da morte, ressuscitando o menino em seu lugar.


Uma curiosidade é que nem todos os personagens são nomeados, incluindo William Shakespeare, que é chamado como o professor de latim, o filho, o pai, o marido. Como que dizendo, não, este livro não é sobre você, mas com você. Quebrando a visão, por um momento, de que um dos personagens é o grande escritor para transforma-lo em um ser humano com falhas e dores.

Um livro que apesar de triste, me encantou, e me despertou uma maior curiosidade sobre a época e as obras do próprio Shakespeare, ao qual só li Sonho de uma noite de verão, que eu imagino ser a comédia citada no livro. Ficando a minha recomendação para você ler e lavar os olhos.

Hamnet
Maggie O'Farrell
Intrínseca
2020 - 384 páginas

Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado é pago integralmente pela autora.