Sinopse: Gaspar é o filho que o pai tenta, em uma cruzada solitária, resguardar do destino que lhe é designado. A mãe do garoto morreu em circunstâncias obscuras, em um suposto acidente. Ele, assim como o pai, recebeu o chamado para ser médium em uma sociedade secreta, a Ordem, que se relaciona com a Escuridão em busca de vida eterna, sacrificando o presente em rituais atrozes. Para tais rituais, é imprescindível a presença de um médium, mas o destino desses detentores de poderes especiais é cruel, já que o desgaste físico e mental é rápido e implacável. As origens da Ordem, comandada pela família da mãe de Gaspar, remontam a séculos, quando o conhecimento da Escuridão foi trazido da África para a Inglaterra e dali se estendeu à Argentina.
No mês de maio/21 recebi da minha assinatura da intrínsecos o livro de realismo fantástico Nossa Parte de Noite da escritora da escritora argentina Mariana Enriquez, título que ganhou o Premio Herralde, premiação importantíssima para a literatura em língua espanhola.
Juan é um homem bonito, sua aparência que atrai olhares esconde a sua fragilidade cardíaca e o seu dom em ser o oráculo da escuridão. O dom, que parece mais uma maldição, o fez ser afastado da sua família de origem ainda criança, quando o cirurgião cardíaco Dr. Bradford, que pertence a uma ordem muito antiga, o identificou como médium, induzindo aos seus pais entregar o então menino Juan para ele.
Outros meninos teriam também esse sono tão superficial, tão alerta?
Ao conviver com a rica família dos Bradford, o menino é testado e usado para atender aos desejos dos superiores da ordem. É quando conhece Rosário, a filha de uma das mulheres mais influentes do grupo, os dois crescem juntos e acabam formando uma família.
Ao identificar cedo que o filho apresenta o mesmo potencial que o pai, tanto Juan quanto Rosário decidem que ele precisa ser protegido da família materna, buscando apoio entre pessoas de confiança. Desejo que é fortalecido após o estranho acidente que custou a vida de Rosário, espírito que Juan busca incansavelmente e nunca encontra.
O que se escondia ao fim do corredor estava assustado e não era perigoso, mas era antigo e, como tudo o que é muito velho, era voraz, infeliz e invejoso.
E nesta queda de braço entre o médium e os poderosos, o leitor é levado a acompanhar os acontecimentos políticos e sociais na Argentina durante os anos de 1960 a 1997, onde os atos humanos são tão ou até mais assustadores que os sobrenaturais apresentados no livro.
Mariana Enriquez divide o seu mundo de escuridão em seis partes, em um vai e vem entre o passado, onde o leitor começa a encontrar as peças que vão fechar o quebra cabeça. Utilizando a narrativa em terceira pessoa, a história gira em torno de Juan, Gaspar e Rosário, trazendo não só visões adultas, mas também infantis e do final da adolescência. Ainda há dois capítulos que acompanham o olhar de outros personagens, para nos fazer compreender melhor a crença na escuridão e o risco de se deparar com ela sem os devidos cuidados.
A demonologia cristã podia funcionar em outros espaços, mas nunca com tanta eficácia como nos lugares consagrados.
Identificado como terror, Nossa Parte de Noite muitas vezes me pareceu ser uma espécie de metáfora para os anos de ditadura na Argentina, com pessoas de todas as idades sendo tiradas de suas famílias, tendo os seus corpos torturados e por fim largados em qualquer lugar. Somado a isso, há o outro tipo de poder, o das diferenças sociais, sendo bem forte a linha que separa os que dependem e os que possuem o poder.
Pois sim, o livro é uma grande crítica as questões sociais e políticas. A Ordem da Escuridão é só uma base para ilustrar as diferenças de classes, os desaparecidos, o que se pode fazer pelo poder, em como atender a sua vaidade custe o que custar, principalmente quando se acredita que não é a sua vida que está em risco.
Depois viu como os Iniciados não conseguiam deixar de levantar os braços e tocar a Escuridão, que comia dedos, mãos.
Ele também vai abordar as questões sexuais, seja pelo fato de utilizar o sexo como forma de canalizar energia para rituais, até os tempos atuais onde escancara os preconceitos, a escolha de parceiros até a chegada da Aids, doença que ainda era sentença de morte nos anos 90. Aqui vi algumas semelhanças nos caminhos escolhidos entre o personagem Pablo e o César do livro Gostaria que você estivesse aqui, mostrando que a realidade no país vizinho não era diferente da nossa.
O livro também é uma espécie de roadtrip, visto que as viagens pelas estradas argentinas, as caminhadas pelas pequenas e grandes cidades, e até mesmo a passagem de parte dos personagens por Londres, nos leva mentalmente sair das páginas e se sentir realmente vendo o que é narrado.
Os crimes da ditadura eram muito úteis para a Ordem, forneciam corpos, álibis e correntes de dor e medo, emoções que eram úteis para manipular.
Eu adoro o estilo realismo fantástico, e sim, devorei o livro muito mais rápido do que imaginei. Pois ele me instigava a confirmar teorias, ao mesmo tempo que se desejava entender que fim aquela queda de braço teria.
Na história ninguém é 100% bom, todos, sem exceção, possuem um lado sombrio. Motivo pelo qual a ambição e o desejo de imortalidade afetam a todos. Existem os que carregam culpas e são corroídos por elas, existem os sem opção, e tem os que amam tudo o que está ocorrendo, em uma troca constante de quem manipula quem.
Andava com as mãos esticadas e, se percebia que estavam muito quietos, os tateava para confirmar qual deles estava vivo e qual tinha morrido.
O resultado disso é um livro bastante pesado, que pode levar o leitor mais sensível a temer a própria escuridão que o rodeia. Não é fácil se livrar de seus ecos mesmo após finalizar a leitura, já que a sua fantasia nem sempre é tão fora da realidade, o que torna toda a opressão e os misticismos apresentados ainda mais intenso.
Eu gostei bastante do livro, e acho que para quem curte o gênero é uma ótima opção de leitura, ao qual recomendo sem medo de ser xingada. Só não vale me culpar se depois só querer dormir de luz acessa.
Nossa Parte de Noite
Nuestra parte de noche
Mariana Enriquez
Tradução: Elisa Menezes
intrínseca
2019 - 542 páginas
Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado é pago integralmente pela autora.
Fiquei curiosa com essa leitura, confesso que não conseguiria dormir de luz apagada, já foi época, pois depois de velha ando medrosa kkk, mas não deixo de ler, gosto muito desse estilo.
ResponderExcluirPela sua resenha realmente é um livro pesado como você mencionou, pois fala de questões sociais e políticas, quem gosta desse gênero com certeza vai valer a pena a ler, confesso que fiquei bastante curiosa, bjs.
ResponderExcluiroi
ResponderExcluirEu adorei a sugestão não conhecia o trabalho da autora, gosto de livros deste gênero
Realmente o livro Nossa Parte de Noite da escritora da escritora argentina Mariana Enriquez, reflete muito dos acontecimentos da ditadura na Argentina. Já tive a oportunidade de morar lá e percebi que a memoria desse momento obscuro não é esquecido, inclusive serve como lembrete.
ResponderExcluirEsta resenha é muito interessante, não conhecia este livro. Abordar estas questões contemporâneas. Não é muito o genero que tenho costume de ler, mas parece uma boa leitura.
ResponderExcluirOi, tudo bem? Ah, gosto tanto de acompanhar os livros que vem nas caixinhas literárias. Já assinei a Tag e amei a experiência. Não conhecia esse livro mas achei a proposta bem interessante. Concordo com você, o tema é sensível o leitor precisa estar preparado. Um abraço, Érika =^.^=
ResponderExcluirParece uma leitura bem interessante, gosto de livros profundos e dependendo do meu estado de espírito leio bastante.
ResponderExcluirQue dica interessante de um tema que deve ser cada vez mais apesar de ser forte é importante conhecer para não deixamos nunca mais acontecer, obrigada pela dica.
ResponderExcluirEu não conhecia o livro, mas alguns pontos me deixam realmente com vontade de fazer a leitura. Essa pegada roadtrip e essa metáfora que aos seus olhos liga o enredo aos anos de ditadura na Argentina parece bem interessante e diferente do que tenho lido. Adorei. Dica anotada.
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