quarta-feira, 30 de novembro de 2022

A Estrada Lincoln



Sinopse: Em junho de 1954, Emmett Watson, um jovem de dezoito anos, é levado para casa, em Nebraska, Estados Unidos, pelo tutor da instituição juvenil onde ficou internado por quinze meses após ter cometido um homicídio culposo. Sem a mãe, que foi embora de sua vida anos antes, o pai, que morreu recentemente, e a propriedade da família, tomada pelo banco, Emmett só quer pegar o irmão mais novo, Billy, e partir para a Califórnia, onde poderão começar uma nova vida. Mas quando o tutor Williams vai embora, Emmett se depara com dois amigos da instituição ― o astuto e carismático Duchess e o zeloso e nada convencional Woolly ―, que fugiram escondidos no porta-malas do carro que o trouxera. Agora, juntos, os quatro pegarão a estrada e terão que conciliar os diferentes planos para o futuro ― um dos quais os levará a uma fatídica jornada a Nova York, direção oposta ao destino final de Emmett.

No mês de junho/2022 recebi pela minha assinatura do Clube intrínsecos o livro A Estrada Lincoln do escritor norte-americano Amor Towles. O mimo foi um jogo americano com o nome do restaurante favorito de um dos personagens.

Emmett é um rapaz tranquilo, que quando provocado inúmeras vezes deixa a razão ser ofuscada pela raiva. E é assim, em uma briga que ele acidentalmente mata outro rapaz na cidade onde mora. Motivo pelo qual é enviado para um reformatório no Kansas, onde conhece Duchess e Woolly.

Adquirira suas concepções nos livros e com a própria experiência, e dispunha de um amplo vocabulário para transformar em conselhos.


Quando sua pena é completada ele retorna para uma casa cuja hipoteca foi executada após a morte recente do seu pai. Restando apenas o Studebaker Land Cruiser 1948, comprado por ele, um dinheiro escondido e a responsabilidade de cuidar de uma criança de oito anos.

Convencido por Billy, seu irmão caçula, a ir para a California recomeçar a vida, e quem sabe reencontrar a mãe que foi embora há muitos anos, mas deixou um rastro do seu caminho por cartões postais, o veículo se torna parte essencial do plano.

Entre todas as pessoas do mundo, ele não podia acreditar que éramos nós.


Até descobrirem que Duchess e Woolly fugiram do reformatório e estão ali na porta dos dois, querendo que Emmett mude a sua roda para que Woolly pegue a herança ao qual tem direito e possa dividir com todos. O que fará com que os quatro rapazes tenham os dez dias mais diferentes das suas vidas.


A escrita de Amor Towles

O livro é separado em dez partes, que representam a contagem regressiva de 10 dias corridos na vida dos quatro personagens principais, que dão nome aos capítulos.

A narrativa que nos coloca no dia-a-dia de Emmett, Billy e Woolly ocorre em terceira pessoa. Já de Duchess e Sally é utilizado em primeira pessoa. Não sendo abordado todas as visões todos os dias, muitas vezes sabemos o que está ocorrendo com os faltantes acompanhando a narrativa de outro deles, normalmente Emmett e Duchess, que são os personagens principais desta história.

Por mais de um ano, acordou com o som de uma corneta e a agitação de quarenta garotos às seis e quinze da manhã.


Como personagem coadjuvante temos Sally, a jovem vizinha de Emmett e Billy que muitas vezes atua como anjo da guarda dos irmãos, ao mesmo tempo que passa questionar a própria vida, questiona o machismo e começa a repensar quais caminhos deve tomar. 

E há também narradores que fazem uma participação especial, como do Pastor John e Ulysses, homens que encontram os irmãos em um vagão de trem e vão atuar de forma distintas no destino dos dois. Assim como Abacus, o autor do livro que Billy carrega para cima e para baixo e que já foi lido diversas vezes.

Do ponto de vista de um homem, a única coisa necessária é que você se sente a seus pés e ouça o que ele tem a dizer, não importa quanto tempo ele demore a dizer ou quantas vezes já o tenha dito.

Explorando personagens ecléticas, o autor entrelaça entre as viagens de carro e de trem, dramas familiares, autodescobertas, influências de fatos de infância, sobrevivência, assim como o grande conflito de responsabilidade com curtir a vida, de certo e errado, de razão e emoção.

Tudo em uma escrita que mistura objetividade e sensibilidade, pois apesar dos pesares, não há lágrimas, e as reações são absurdamente humanas, dando verossimilhança a história.


O que eu achei de A Estrada Lincoln

Na minha opinião ao contrário do que o nome induz, não é exatamente uma Road trip, mas uma série de desventuras de três jovens rapazes e um menino, onde a maior parte das encrencas são originadas por Duchess.

Woolly é o personagem que me deu um nó na garganta. O leitor sabe desde cedo que há algo com ele, que toma medicações diárias, que é um rapaz rico colocado na instituição pela família após o mesmo ser expulso de todos os bons colégios. Da bonita relação com uma das irmãs que o acolhe apesar de todas as loucuras, do lugar de infância marcado na memória.

Por experiência própria, eu sabia que as melhores explicações lançam mão do inesperado.


Já Emmett é o rapaz que precisa virar adulto de um dia para o outro com a perda do pai, assumindo a educação e o sustento de Billy, que aos oito anos vê o irmão mais velho como um dos heróis do seu livro, e não se deixa ficar para trás quando Emmett precisa corrigir o percurso desorganizado por Duchess.

Motivo pelo qual muitas vezes pensei se não era Duchess o personagem principal da história. É ele quem convence Woolly a fugir do reformatório quando faltam poucos meses para serem liberados, para pegar a herança do rapaz. 

Alguns prédios se pareciam tanto, que, quando se ia de uma cidade para a vizinha, a impressão que se tinha era a de que se estava no mesmo lugar.


Também é ele quem rouba o carro de Emmett com a mochila que tinha todo o dinheiro para o seu recomeço, fazendo com que os dois irmãos se exponham a riscos desnecessários atrás de seus bens.

Além de um rastro de violência, já que Duchess resolve aproveitar o carro do amigo para acertar contas passadas e rever antigos conhecidos. Gerando uma eterna dúvida do verdadeiro caráter do rapaz.

Mas, para a maioria das pessoas, o lugar onde residem não faz diferença. Quando se levantam de manhã, não têm a pretensão de mudar o mundo.


E tudo isso de certa forma quebrou a expectativa que o nome do livro - a estrada Lincoln cruza os Estados Unidos, indo de Nova York a São Francisco - havia gerado em mim, pois imaginava algo mais na estrada mesmo, do que uma busca pelo carro roubado na cidade de Nova York. 

E até agora estou em dúvida se gostei ou não. Eu sei que não adorei, as vezes achei a narrativa arrastada, em outras tinha vontade de sacudir o Duchess, me encantei pelo Billy e pelo Woolly, então também não tenho como dizer que desgostei.

A maioria dos criadores de mapa são particularmente talentosos em encolher as coisas.


E o final... não, não vou revelar ele aqui, mas também não contribuiu para a minha decisão, na verdade só deixou mais minhocas na minha caixola.

Ficando a dica para quem gosta de narrativas longas - neste caso mais de quinhentas páginas -, curte voltar no tempo - a história ocorre em 1954 e pega o sentimento daquele intervalo entre as guerras da Coreia e do Vietnã -, e principalmente gosta de desventuras em série.

Apesar da juventude dos personagens não espere um romance jovem adulto, o que temos aqui está mais para romance de formação, cujos personagens podem captar toda a sua atenção.


A Estrada Lincoln
The Lincoln Highway
Amor Towles
Tradução: Regina Lyra
intrínseca
2021 - 576 páginas

Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado - que foi encerrado em setembro - era pago integralmente pela autora. 

terça-feira, 22 de novembro de 2022

A ilha das árvores perdidas



Sinopse: A história de Ada começa em um lugar que ela nunca conheceu: na ilha de Chipre, em 1974, quando dois jovens apaixonados se encontravam escondidos debaixo de uma figueira. A árvore, que testemunhou o amor do casal e a chegada da guerra que viria a desolar a ilha, foi levada para Londres, e dezesseis anos depois é a única ligação de Ada com a sua ancestralidade. A garota, então, embarcará em uma busca pela própria identidade, tecendo uma linha até o passado dos pais e revelando tudo o que se perdeu no tempo.

No mês de setembro/2022 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a edição mais bonita do ano. Indicado pela jornalista Adriana Ferreira Silva, A ilha das árvores perdidas é uma linda obra da autora Elif Shafak. O mimo foi uma deliciosa caixinha de chá verde da Tea Shop.

Um grito que sai da alma e carrega saudade, raiva, incompreensão e solidão. Um grito longo, que não pode ser parado antes de chegar ao seu final em plena sala de aula, na véspera da parada dos feriados de natal e ano novo. Grito que sai de uma adolescente que desconhece o passado de seus pais, e não convive com nenhum familiar.

Mas as lendas existem para nos contar o que a história esqueceu.


Uma figueira que originalmente morava na ilha de Chipre, no meio de um bar, e agora se vê derrubada pelo mau tempo na Inglaterra e é cuidadosamente enterrada no pátio de uma casa, cujo amor pelo morador começa a crescer.

A chegada de uma tia que só pode visitar a sobrinha após a morte dos seus pais, cheia de superstições, tem o sonho de usar roupas coloridas, e faz comidas tão cheirosas que parecem ultrapassar o limite físico das páginas.

Era capaz de detectar a tristeza de outras pessoas da mesma forma que um animal era capaz de farejar outro de sua espécie a um quilômetro de distância.


Um homem que perdeu o amor da sua vida e agora tem dificuldade de se comunicar com a filha adolescente, ficando em uma espécie de bolha junto a suas plantas.

E duas histórias de amor que conseguem tocar o coração ao mesmo tempo que nos mostram como uma guerra é injusta com os inocentes e como suas marcas são eternas.

A guerra é uma coisa terrível. Todas as guerras. Mas as guerras civis talvez sejam as piores, quando velhos vizinhos se tornam novos inimigos.


A escrita de Elif Shafak

A delicadeza deste livro começa pela narrativa. Alternando entre primeira e terceira pessoa, temos a voz da Figueira, que a tudo assistiu e é a responsável por completar as informações que os humanos não veem ou não ouvem.

Em terceira pessoa acompanhamos o tempo presente de Ada, Kostas e Meryem, cada um, de sua maneira, tentando superar a perda de Defne, a mãe, esposa e irmã dos três personagens.

Histórias, talvez, mas eu acreditava nelas. Assim como acreditava em lendas e no fundo de verdade que tentavam transmitir. 


E também no tempo passado conhecemos a Ilha de Chipre onde os jovens Kostas, descendente de gregos, e Defne, descendente de Turcos, se apaixonam e vivem um romance proibido. Quem ajuda este casal são dos donos do bar Figueira Feliz, onde a narradora se originou, também com descendências diferentes, Yusuf e Yiorgos são figuras apaixonantes na história.

Neste vai e vem, a autora Elif Shafak compartilha não só o aspecto cultural desta ilha mediterrânea que fica entre três continentes e possui a única capital dividida no mundo: Nicósia, mas também todos os seus conflitos, citando inclusive acontecimentos de outras ditaduras, como as que ocorreram na América Latina.

Não é a minha intenção menosprezar outra planta, mas que chance tem uma maça sem graça diante de um delicioso figo que ainda hoje, era após o pecado original, tem sabor de paraíso perdido?


Conflitos que atingem não só os moradores humanos, mas também o meio ambiente da região, e assim temos a visão de plantas, animais e insetos sobre o que está ocorrendo na ilha, tudo pela narrativa da figueira.

União de fatos e narrativas que tornam o enredo extremamente delicado e sensível, o tipo de história que dá prazer em abrir o livro. 

Os seres humanos perdem o foco com facilidade. Imersos nas políticas e conflitos deles, eles se distraem, e é então que proliferam as doenças e começam as pandemias.


O que eu achei do livro A ilha das árvores perdidas

Eu adorei o livro. A escrita é bonita, me levando não só a vivenciar a história dos personagens humanos, como saber mais sobre árvores, animais e os conflitos de uma ilha ao qual eu conhecia só de nome.

Sim, há algumas questões não respondidas na sua totalidade, e outras cujas respostas foram dolorosas de se saber. Mas não achei que isto atrapalhou a narrativa, apenas deixou um gosto de quero mais.

À medida que envelhece, você passa a se importar cada vez menos com o que os outros pensam de você, e só então consegue ser mais livre.


Existe uma delicadeza no tratamento do afastamento do pai e da filha após a perda da figura de Defne, deixando claro como é difícil a superação de um luto quando ele é cercado de silêncio. Assim como a importância da tia, que traz leveza e histórias para casa, permitindo assim a reconstrução de laços.

Aliás, uma personagem que merecia ter mais da sua história contata era justamente a tia Meryem. Se houvessem desdobramentos deste livro, um com a visão dela seria fantástico, pois me permitiria saber mais da sua relação com as cores e as promessas difíceis de se atender.

Os humanos são muito estranhos, cheios de contradições. É como se precisassem odiar e excluir na mesma medida que precisam amar e acolher.


Gostei muito do recurso de vai e volta entre presente e passado, respondendo indiretamente e no momento certo não só as dúvidas de Ada, mas as minhas, como se estivesse completando um quebra-cabeça.

Assim como gostei da Figueira como narradora, e sim, é quase impossível eu olhar para uma árvore agora e vê-la com os mesmos olhos. Eu, que já gostava de abraça-las, agora vou querer bater longos papos.

Será que cada geração começava inevitavelmente onde a anterior havia desistido, absorvendo todas as decepções e sonhos não realizados?


E os figos... eu passei o livro inteiro com vontade de comê-los, principalmente uma entrada que a minha mãe já fez nas festas de final do ano que mistura figo, queijo brie e vodka.

Então é com saudades desta linda história que eu recomendo este livro que possui um toque de tristeza, mas também de esperança. De se reconectar com as próprias raízes e se ver vivendo momentaneamente em um lugar de conceitos e culturas tão diferentes da nossa, mas com sentimentos tão universais.

E não esqueça de quando chegar na página 293 fazer o teste de fazer a análise do seu caráter com base na primeira coisa que você repara ao olhar para uma árvore. Eu me dei conta que, no meu caso, depende do tamanho da árvore, ficando entre os galhos e o tronco.


A ilha das árvores perdidas
The Island of Missing Trees
Elif Shafak
Tradução: Marina Vargas
TAG - Harper Collins
2021 - 319

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terça-feira, 15 de novembro de 2022

Com armas sonolentas



Sinopse: A trama gira em torno de três mulheres muito diferentes, mas fortemente interligadas, que experimentam um sentimento crescente de abandono e exílio - seja geográfico, seja emocional. A viagem, por assim dizer, que cada uma delas faz poderia ser um jeito de "voltar para casa", em uma busca por sua verdadeira identidade. Neste potente romance de formação, Carola Saavedra discute o feminismo e a maternidade, assim como os mecanismos e as armas secretas do inconsciente.

No mês de agosto/2022TAG Curadoria enviou para os seus assinantes o romance Com armas sonolentas da escritora chilena radicada no Brasil Carola Saavedra. Uma indicação do escritor e professor Carlos Eduardo Pereira. O mimo foi um aparador em mdf.

Anna é uma jovem mulher em busca do sucesso como atriz. Para alcançar o seu objetivo, vale absolutamente tudo, inclusive casar com um diretor alemão que acabou de conhecer e se mudar para um país estranho. 

Mas o casamento não lhe garante um papel de imediato, nem de coadjuvante. Ela precisa estudar o idioma, mas não se esforça. E sozinha em casa, enquanto o marido segue trabalhando em outros lugares, ela vê sua vida social se reduzir, até ser surpreendida por uma gravidez inesperada.

Sempre teve uma grande facilidade de ir embora, como se o passado, tão tênue, rapidamente se dissipasse.


Maike é uma jovem estudante alemã, que surpreende os pais quando um dia resolve mudar o seu estilo de vida. Desistindo de seguir a carreira jurídica como os pais, ela opta no primeiro dia de aula em cursar português.

O novo ambiente a leva recordações do passado e a busca de um antigo amigo de infância que a esfaqueou, entre caminhadas e conversas ela começa a se questionar e descobrir o que realmente ela não quer.

Sentia que minha vida estava cheia de elipses, palavras não ditas, verdades escamoteadas, que se materializavam numa angústia, uma inquietação constante.


Quem completa o trio é a Avó, que começa menina saindo do meio da família para trabalhar como empregada doméstica na capital. Sem poder estudar e tendo apenas um dia de folga, sua distração são os filmes românticos no cinema. Sua inocência facilitam o abuso pelo filho do padrão, assim como as ameaças recebidas ao se descobrir grávida.

Uma pessoa de vida simples que se agarra aos conselhos de uma avó fantasma e sente o coração despedaçar ao ver a filha aos poucos se deslumbrar pela vida de luxo, até abandona-la sozinha no quarto sem janelas.


A escrita de Carola Saavedra

Não existe uma única narrativa entre as três personagens. Se Maike é sempre em primeira pessoa, Anna fica entre a terceira e o monólogo de uma peça. Já avó é sempre vista em terceira pessoa, onde vemos crescer, amadurecer e envelhecer em um quarto sem janela grudado a área de serviço.

E creio ser justamente a avó, a única sem nome na história quem faz com que o livro seja classificado como um romance de formação. Romance de formação é aquele que acompanha o crescimento e amadurecimento de um personagem, onde além da passagem do tempo, isto é, da infância/adolescência até a vida adulta, o psicológico é um componente importante.

será que você não entende, eles não são como nós, são feitos de outra pele, outro material, e vai ser sempre assim, será que você não vê? 


Ao usar três gerações de mulheres separadas pelas mais diferentes circunstâncias da vida, a autora Carola Saavedra mistura desigualdade social, a busca por si mesmo, abandono, ambição, laços familiares, maternidade, solidão e fantasia para contar cada vida em duas partes que ela nomeou como O Lado de fora e O Lado de dentro.

Curiosamente as figuras masculinas são todas meras coadjuvantes nas três narrativas. Temos uma rápida visão de cada uma através das personagens, mais especificamente no caso de Anna, não sabemos como eles lidam com os seus atos.


Onde habitam os seres antes de começarem a existir, onde dormem suas marcas, suas possibilidades?


Motivo pelo qual não é uma leitura para desopilar, já que ela exige atenção para entender o que está ocorrendo, ao mesmo tempo que exige da própria imaginação do leitor para fechar as lacunas que permanecem na história mesmo após fechar a última página.


O que eu achei de Com armas sonolentas

Este livro me fez recordar as pessoas que acreditam que o sangue sempre fala mais alto, o que ligaria de forma invisível as gerações de uma mesma família. Ao mesmo tempo que confirma que pode ser a única coisa em comum entre pessoas tão diferentes.

Contraditório, não? Mas aqui temos Anna, na minha opinião uma pessoa que não sabe amar nem receber amor. Alguém que para crescer profissionalmente se sujeita a tudo para atingir os seus objetivos, que na verdade se resumem a status e fama. Algo que ela se deixou deslumbrar ainda nos primeiros anos de vida, e tornou o centro de tudo.

Nada ali era simples, nada era o que parecia ser.


Maike para mim foi a parte mais sonolenta da história. Achei um pouco sem pé nem cabeça logo nas primeiras páginas da sua narrativa. Uma jovem mulher que parece mais uma menina mimada e perdida, uma rebelde procurando uma causa em uma vida um tanto sem sentido, mas com toda a proteção e cuidado dos pais.

Sua mudança de caminho e profissão surgem do nada, como se fosse uma canção da Rita Lee que começa dizendo “um belo dia resolvi mudar e fazer tudo o que eu queria fazer...”, só que sem saber exatamente o que quer fazer e o porquê.

Sempre lhe pareceu que havia uma dissonância entre o que desejava e o que realmente queria.


Talvez por isso a minha narrativa preferida aqui tenha sido da avó sem nome, que na minha opinião contém as partes mais interessantes e realistas da história - embora seja ela que traga a parte fantástica ao conversar com a sua avó já morta. 

Essas conversas são diálogos sobre o que fazer e suas culpas em relação a própria filha, ao qual constantemente se questiona se a permissão em deixa-la ficar com a avó-patroa e permitir um vislumbre de uma vida diferente são realmente uma boa ideia.

Acabara de completar quatorze anos quando a mãe lhe explicou que não poderia continuar morando com eles.


Confesso que mesmo passado um tempo para refletir sobre a leitura, ainda não sei se gostei ou desgostei do livro como um todo. Eu achei a primeira parte bem construída, com direito a impactos e aquela frase que te induz a seguir em frente.

Mas a segunda parte, chamada O lado de Dentro, um tanto perdida. Não pela mudança na forma da narrativa da personagem Anna, mas pela forma como foi desenvolvida. Em meio ao fantástico, entram metáforas que não conseguem preencher lacunas e dúvidas aos quais sobram para a imaginação completar com base no que se subentendeu.

Eu também não percebi o que ele havia feito num primeiro instante, não senti a dor, apenas o frio do metal na minha pele.

Só que isso não me impede de deixar a indicação aqui, pois leitura é também o momento de cada um, a bagagem literária que o leitor tem e claro, o gostar que não se discute. E talvez, ao contrário de mim, você se identifique com todas as dúvidas de Maike, entenda o comportamento de Anna e quem sabe goste tanto quanto eu da vó.

Só lendo o livro para você saber.


Com armas sonolentas
Carola Saavedra
TAG - Companhia das Letras
2018 - 267 páginas

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terça-feira, 8 de novembro de 2022

Greenwich Park



Sinopse: Quando Helen chega para a primeira aula do curso pré-natal, espera que seu belo marido arquiteto surja logo depois, seguido por seu charmoso irmão Rory e pela esposa dele - a naturalmente linda, e também grávida, Serena. Mas, por Rachel, Helen não esperava. A extrovertida, impetuosa e inquietante Rachel, prestes a se tornar mãe solo, que só quer ser amiga de Helen. Que só quer se aproximar de Helen, de seus amigos e de sua família. Que só quer saber tudo sobre eles. Cada um de seus segredos.

No mês de junho/2022 recebi pela minha assinatura da TAG Inéditos o livro Greenwich Park da autora inglesa Katherine Faulkner. O mimo foi um marcador de página em formato de pingente.

Helen vive em uma bolha onde idealiza a própria vida. Casada com um arquiteto, mora na casa que foi de seus pais, uma mansão vitoriana próxima ao Greenwich Park, na cidade de Londres.

Mas você precisa saber a verdade, mesmo que, depois de todo esse tempo, ainda se recuse a ouvir.


O marido é sócio do seu irmão Rory, que herdou a empresa de arquitetura de seu pai. Sua cunhada Serena também está grávida, e assim ela imagina que todos gostariam de participar juntos do curso de gestantes. Mas nenhum dos três aparecem, e com todos os demais casais completos, lhe resta como companhia a jovem Raquel, igualmente sozinha no curso, mas expansiva e falante, ela é exatamente o oposto de Helen.

Aos poucos ela vai aparecendo em todos os lugares que Helen está, e em sua solidão, a jovem gestante sem nenhum instinto maternal se torna uma distração que a faz rir e esquecer por alguns momentos os próprios medos.

Eu sei que ele estaria aqui se pudesse, que está arrasado por me deixar na mão. Que essa reunião de última hora foi um simples inconveniente.


Mas o que era divertido se torna mais intenso, e quando Helen pisca, Rachel invadiu não só a sua vida, mas de todos da sua pequena bolha. Só que ao contrário do que você possa imaginar, não estamos falando de um suspense no estilo Stalker, e sim de um quebra-cabeça muito mais complexo do que se imagina no início da leitura.


A escrita de Katherine Faulkner

Logo de cara o leitor se depara com um depois e uma carta ao qual não se identifica a autoria, apenas que ela foi escrita com o desejo de revelar a verdade do remetente e que a destinatária deste desabafo é Helen.

Em seguida retrocedemos no tempo, onde as partes da história são identificadas em semanas, as semanas de gestação de Helen, e alguns finalizam com uma rápida narrativa em terceira pessoa. Nos demais capítulos temos narrativas em primeira pessoa das seguintes personagens: além da própria Helen, contam a história Serena e Katie, esta última é a melhor amiga de Helen e uma espécie de namorada do considerado irmão ovelha negra da mesma.

Tentei marcar encontros, mas de alguma forma eles nunca parecem caber muito bem na agenda das pessoas.


Entre as figuras femininas principais, a única que não é narradora é Rachel, mantendo a sua personalidade e seus reais interesses um verdadeiro mistério para os leitores.

Já na narrativa de Helen a autora, que se inspirou justamente quando realizava um curso pré-natal para escrever sua trama, aborda o lado solitário da maternidade. Os colegas de trabalho que não se interessam em marcar um café, o marido que não tem tempo para acompanha-la no curso. Uma mulher sem nenhuma rede de apoio, sem ter ninguém de confiança para desabafar.

Não sei por que ela insiste em falar disso sem parar, por que parece ter muito mias importância para ela do que para nós.


Além das mudanças físicas que as mulheres passam, o que pode ou não ser consumido - e só quem já engravidou sabe a lista enorme de cuidados neste ponto, incluindo também a questão das perdas gestacionais. 

Mas não pense que só se fala em maternidade não, tem depressão - que não é a pós parto -, pessoas que enganam as outras para viverem de aparências, falta de escrúpulo, a forma como o estupro é lidado quando envolve pessoas de diferentes classes sociais, e traição, porque neste mundo encantado, não poderia faltar este toque com os machos escrotos que compõe a trama.

As pessoas estão ocupadas, ocupadas demais para mim, pelo menos. Já fui esquecida.


Tudo isso junto e misturado em uma escrita fluída e envolvente, que transformam Greenwich Park em um vira páginas.


O que eu achei do livro...

Gostei muito da narrativa da escritora Katherine Faulkner. As peças do quebra-cabeça são bem espalhadas pelos capítulos, não existe informação em vão, sendo necessário para o leitor detetive se manter atento as reações de cada personagem e as situações passadas citadas constantemente por Helen para fazer as conexões e tentar descobrir o mistério antes de chegar ao fim.

Eu particularmente discordo da revista da TAG quando chamam Helen de ingênua. Sim, ela é solitária. Mas também é invejosa. Pois existe um misto de inveja e admiração em relação a Serena, ao qual ela tenta imitar como se assim fosse ter um pouco da luz que ela vislumbra na outra. 

Tudo naquele ambiente está começando a me incomodar: o carpete estampado, horroroso e de má qualidade, as tomadas imundas, o cheiro de mofo, a poeira no parapeito das janelas.


E é isso que a cega, a faz se proteger em uma bolha de perfeição facilmente removível para quem vem de fora. E aqui entra Rachel, a personagem que você não sabe ao longo da narrativa se é ingênua, malandra, golpista ou muito mais do que aparenta ser.

E assim deixo a dica para quem gosta de um bom mistério, um legítimo vira página que irá fazer a sua mente formar diferentes teorias.


Greenwich Park
Katherine Faulkner
Tradução: Marina Vargas
TAG - Record
2021 - 417 páginas

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terça-feira, 1 de novembro de 2022

À beira-mar



Sinopse: Do vencedor do prêmio Nobel de literatura de 2021, uma história arrebatadora de amor e traição protagonizada por dois homens que dividem um turbulento passado em comum.

No mês de Julho/2022 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria o livro à beira-mar, do escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah. A indicação foi da própria TAG, que completou oito anos e enviou uma edição ainda mais caprichada para cantar parabéns junto com os seus assinantes. O mimo foi o livro Os sofrimentos do jovem Werther, primeiro romance do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe.

Saleh Omar chega ao Gatwick Airport na Inglaterra como um refugiado em busca de asilo. Ao contrário de muitos que fazem o mesmo caminho, ele já não é jovem, o que surpreende todas as pessoas que ele encontra pelo caminho.

Estava acostumado com funcionários que fulminam e cospem em você pela menor das faltas, que brincavam com você e o humilhavam pelo puro prazer de brandir sua sagrada autoridade.


Sua esperança consiste no fato do governo britânico conceder asilo a qualquer um que diga estar sofrendo risco de morte. Seguindo as orientações recebidas ainda na sua terra natal, ele finge não saber falar inglês, pronunciando apenas as palavras Refugiado e Asilo. E assim ele escuta todo o monólogo preconceituoso do policial que o atende – ironicamente um descendente de refugiados da Romênia-, para no final ter que aceitar de boca fechada o policial roubar o seu ud-al-qamari, um objeto de inúmeras lembranças.

Quem lhe presta assistência é Raquel Howard, a conselheira jurídica de uma organização de refugiados. É ela que o encaminha para as primeiras moradias - de um centro de refugiado, passando pela casa de uma senhora que ganha para recebe-los até ter um espaço só seu -, e faz visitas para acompanhar a sua adaptação. Por inicialmente fingir não falar inglês, Raquel providencia um interprete: Ismail Latif Mahmud.

Mas o mundo todo já havia pagado pelos valores da Europa, mesmo se durante boa parte do tempo tivesse pagado repetidas vezes sem usufruir deles.


Latif, assim como Omar, é um fugitivo de Zanzibar. Mas sua fuga ocorreu há muito mais anos, quando fugiu da Alemanha Oriental, ao qual foi enviado para estudar. Só que o país de origem não é a única coisa em comum entre os dois, pois como o destino gosta de brincar, é hora de retornar a um passado que nenhum dos dois esqueceu.

Um acontecimento em comum os une, não só como memória, mas como fator determinante para que estejam novamente frente-a-frente, ambos fugitivos, ambos marcados por inúmeras tristezas.

Agora nos continham, um incômodo casual e sem valor que precisava ser mantido sob vigilância.


O encontro destes dois homens irá desenterrar velhas lembranças, e enquanto eles enfrentam os próprios fantasmas, o leitor descobre não só sobre as suas vidas, como toda a cultura e mudança política do seu lugar de origem.


A escrita de Abdulrazak Gurnah

À beira-mar possui dois narradores: Saleh Omar e Latif, que contam a sua história sob o seu ponto de vista, o que em muitos momentos servem para complementar ou deixar em dúvida o leitor em relação ao comportamento e caráter de um dos personagens.

Assim como o mar, o autor Abdulrazak Gurnah convida página a página a mergulhar mais fundo na história, com momentos de calmaria, outros de contradição, de alegria e também muita dor. 

Ninguém capaz realmente de me ver, gente sofrendo a pressão de seu próprio trabalho e conhecendo incontáveis histórias e descrições de mendigos como eu.


Da religião mulçumana com suas regras, passando pela mulher casada que se utiliza do sexo para obter vantagem e vingança de homens poderosos, o homossexualismo conhecido, mas não escancarado. Até chegar as regras de um país que muda conforme quem está no poder, trazendo a população muitas incertezas.

Por explorar a história dos dois muito além da superfície, e por sabermos como ele estão no presente, é um livro que explora muito da memória, não só dos homens que compartilham as suas experiências pessoais, mas de um país inteiro.

Esta é a casa em que vivo, pensei, uma linguagem que late e me menospreza atrás de cada esquina.


E por isso mesmo também de escolhas e caminhos escolhidos, sobre como cada palavra ou atitude podem mudar um destino. Ao qual pode determinar inclusive a solidão por vontade própria.


O que eu achei de à beira-mar

Eu gostei muito da narrativa do escritor Abdulrazak Gurnah. Se no momento presente temos dois narradores ainda vivendo as perdas de um passado e tentando recomeçar do zero em um lugar totalmente novo. O antes é recheado de dúvidas, trapaças, mesquinharias e muita vingança.

Vingança que ganha ainda mais espaço quando entra a parte da história política de Zanzibar, uma ilha pequenina da África que viveu uma revolta sangrenta em 1964, com prisões arbitrárias, assassinatos e perseguições. O que motivou pessoas como o próprio autor a fugirem para o Reino Unido e recomeçarem.

Houve tanta crueldade em sua vida que hesito em julgá-lo com severidade, mas era negligente.


Motivo pelo qual Abdulrazak Gurnah pode narrar com propriedade de quem sentiu na pele o tratamento recebido pelos exilados, em como é abandonar tudo o que você conhece para recomeçar em um local novo, onde nem todos os habitantes desejam a sua presença.

Ficando assim a minha recomendação para quem gosta de livros mergulhados em memórias, com recomeços após perder tudo, e em que a história é construída com base em acontecimentos e vivencias reais. 


à beira-mar
By the Sea
Abdulrazak Gurnah
Tradução: Jorio Dauster
TAG Curadoria - Companhia das Letras
2001 - 365 páginas

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