terça-feira, 22 de dezembro de 2020

O Mapa de Sal e Estrelas

 


Sinopse: Em meio a protestos, conflitos e bombardeios causados pela guerra civil de 2011 na Síria, a jovem Nur é forçada a deixar o país em busca de segurança. Quase um milênio passado, Rawiya, aprendiz de cartografia, traça a mesma rota numa saga épica em terras desconhecidas. As duas jornadas de amadurecimento se intercalam, ao passo que as protagonistas, embora separadas por séculos de história, representam a realidade de tantos refugiados do Oriente Médio e norte da África.

Para encerrar o ano, a TAG Inéditos entregou aos seus associados no mês de dezembro o livro O Mapa de Sal & Estrelas do escritor nova-iorquino de origem síria Zeyn Joukhadar. O mimo foi o livro Mistérios Perdidos de Sir Arthur Conan Doyle. A edição está muito bonita, o cuidado nos detalhes está desde a capa até o texto que indica uma nova parte.

Nur tem doze anos, nasceu em New York e lá vivia com seus pais e suas duas irmãs mais velhas. Mas com a morte de seu Baba, cujo corpo foi enterrado na ilha de Manhattan, sua mãe decidiu retornar para sua terra natal, a Síria, ficando próxima de Abud Said, tio das meninas e um homem que era muito próximo do seu marido.


Em qual língua você me contou que tudo o que amamos era um sonho?


Com essa série de mudanças em sua vida, uma das maneiras da menina lidar com o luto pela perda do pai é recontar a história de Rawiya, uma jovem menina que viveu em meio a pobreza em uma aldeia da Síria e escolhe se disfarça de menino em busca de riquezas para melhorar a vida de sua mãe viúva.

Mas a família agora composta só de mulheres não tem tempo de reconstruir a sua vida, as explosões da guerra civil se aproximam pouco a pouco, até terem a casa caindo literalmente sobre suas cabeças. Os ferimentos atingem seus corpos, sua alma e suas finanças, dando início a uma corrida pela sobrevivência.


Acho que é como brincar de girar: às vezes você preferiria estar em qualquer outro nível mágico que não o seu.


A partir deste momento, a vida de Nur e de Rawiya se entrelaçam, pois elas percorrem o mesmo caminho, uma fugindo dos horrores de uma guerra e a outra em uma perigosa expedição para montar o mais completo dos mapas.

Zeyn Joukhadar utiliza-se de personagens reais como o cartógrafo Al-Idrisi e o Rei Roger para dar um toque de realismo em meio ao fantástico na história de Rawiya, que muitas vezes me fizeram lembrar de mil e uma noites. Já para a personagem Nur, que tem sinestesia e associa tudo a cores, a narrativa em primeira pessoa tem um toque de poesia, como se nos dissesse nas cenas pesadas que é difícil, mas não o fim de tudo.


Me pergunto se todos os rapazes adolescentes são bravos daquele jeito, se sabem que a raiva é uma coisa perigosa e imprevisível.


É também através de Nur que vivenciamos as diferentes diversidades dos que fogem da guerra, ser refugiado é ficar sem base nenhuma de uma hora para outra, sem casa, as vezes sem família, ou sem um pedaço do corpo. Mas a linguagem suave não torna a leitura dolorosa, já que mesmo em meio a dor há esperança, e assim assistimos a menina também se fantasiar de menino para escapar de violência sexual, ao mesmo tempo que temos curiosidade com a chegada de cada novo personalidade e o coração apertado a cada partida.

A forma como as histórias são entrelaçadas também alimentam a vontade em seguir a leitura, temos o antes e depois de cada local, o que me permitiu criar uma visão daquelas terras hora tão desertas, hora com tanta vida.


Elas nascem com uma ferida e sabem desde o começo que, se não encontrarem a história que pertence a elas, essa ferida nunca vai sarar.


O mapa de sal e estrelas é o primeiro livro de Zeyn Joukhadar, e ganhou o prêmio do Middle East Book Award de 2018 – ano de sua publicação no exterior, além de ser indicado ao Pushcart e Best of the Net. Indicando uma ótima estreia no mercado editorial.

Quem se aventurar a ler, irá encontrar um livro de cores, cheiros, laços familiares, lágrimas, sorrisos e mulheres guerreiras. Sim, aqui são as mulheres o centro das páginas, elas são guerreiras, corajosas e estrategistas, e acima de tudo sobreviventes e muito humanas.


O mapa de sal e estrelas
The map of salt and stars
Zeyn Joukhadar
Tradução: Carol Chiovatto
TAG - Dublinense
2018 - 366 páginas

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terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Um estudo em vermelho



Sinopse: Na obra de estreia do renomado escritor britânico Sir Arthur Conan Doyle, um homem é encontrado morto em Londres. Apesar das manchas de sangue, o corpo não apresenta ferimentos, apenas uma clara expressão de pavor no rosto. Intrigada diante do enigma, a polícia recorre ao auxílio do excêntrico e inteligente Sherlock Holmes, que emprega suas técnicas de dedução pouco ortodoxas para desvendar o mistério. Narrado pelo dr. Watson, Um estudo em vermelho marca o primeiro caso e aparição de Sherlock Holmes, um dos detetives mais populares e clássicos da literatura.

Logo de início o dr. Watson nos conta resumidamente sua vida após obter o título de Doutor em Medicina até a sua chegada em Londres. A necessidade de economizar em uma cidade tão cara o leva a conhecer Sherlock Holmes, que trabalha no laboratório químico de um hospital, para ver se ambos poderiam dividir um apartamento.

Os seus estudos são muito irregulares e excêntricos, mas ele acumulou uma quantidade de conhecimentos incomuns que espantaria seus professores."

E assim Watson descobre que o seu novo amigo auxilia detetives particulares e a própria Scotland Yard na resolução de casos difíceis, utilizando-se de um método de observação próprio. E o primeiro que ele participa é de um misterioso assassinato de um homem em uma casa vazia, onde a polícia londrina não identifica nenhuma pista.

A história é dividida em duas partes, na primeira temos a introdução dos dois personagens principais, o caso e a resolução do mesmo, com a explicação das pistas por Sherlock Holmes. Já na segunda parte, que foi a minha favorita, está a motivação do crime, detalhando o que gerou o ocorrido.

Antes de me julgar, entretanto, que se lembre de como a minha vida não tinha objetivos e do pouco que havia para prender minha atenção.

Eu conhecia o personagem Sherlock Holmes apenas por filmes e, naturalmente, por ser referência de livros de mistérios. Mas nunca havia lido nada do escritor Arthur Conan Doyle, e confesso que gostei bastante do seu estilo.

Na história ele mescla primeira e terceira pessoa em um único narrador, que é o dr. Watson, o que deixa bem marcado quando ele está vivendo a situação e quando ele está contando algo de terceiros que tomou conhecimento. Também fica claro em algumas passagens que a narração não se encontra no presente, mas sim lembranças de fatos que ocorreram e foram registrados em uma espécie de diário.

Se lhe pedissem que provasse que dois mais dois são quatro, você teria talvez alguma dificuldade, apesar de não ter dúvidas a respeito do fato.

Achei a leitura muito fácil, embora ele não permita o leitor ter os seus próprios suspeitos, dependendo inteiramente da genialidade e atenção de Sherlock Holmes, a história prende a atenção e naturalmente deixou aberto para que mais aventuras viessem. O que me deixou empolgada para ler um outro livro do autor que recebi agora no mês de dezembro.


Um estudo em vermelho
A study in scarlet
Sir Arthur Conan Doyle
Tradução: Rosaura Eichenberg
TAG - L&PM Pocket
1887 - 192 páginas

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Nascido do Crime



Sinopse: A história impressionante, inspiradora e divertida da infância e juventude de um dos maiores comediantes da atualidade, ambientada durante os anos finais do apartheid e os dias tumultuosos de liberdade que se seguiram. Como as peças de um quebra-cabeça, as histórias de vida de Trevor Noah formam o retrato de um mundo em desordem, onde os atos mais banais eram considerados crime se você não tivesse a cor certa.

Conforme a Lei da Moralidade de 1927, na África do Sul era proibido a junção carnal ilícita entre europeus e nativos. Trevor Noah é resultado do crime cometido por Patricia Noah, que é negra, juntamente com o suíço/alemão Robert, que é branco. Ambos pais do menino em pleno regime de apartheid.

Em uma escrita fluída, o comediante, apresentador, ator e sim, escritor, conta a história da sua infância, ao mesmo tempo que explica a divisão racial, as diferentes tribos e como isso enfraquece um povo. Além disso aborda de forma direta as relações do dia-a-dia, a forma como foi criado e até as diferenças de surra entre as que ele levava e a de seus primos.


Basta segregar as pessoas em grupos e fazê-las se odiar para tornar possível o controle de todos.


Dividido em três partes, logo de início somos apresentados a devoção cristã da sua mãe, que durante boa parte da sua infância o fez passar o domingo inteiro dentro de igrejas, mais precisamente três, uma com perfil racial misto, outra de brancos e uma de negros. A África do Sul, assim como o Brasil, adotou, de livre e obrigada vontade, a religião de seus colonizadores. 

A seguir vamos descobrir sobre o seu nascimento, o que permaneceu a cultura original mesmo após a colonização - como o fato dos negros sul-africanos associarem gato a bruxaria, a forma de distribuição dos grupos pela tonalidade de cor onde chineses são considerados negros e japoneses brancos, e como ele transitava enquanto tentava descobrir com quais grupos mais se identificava. Além do fato de que em casa não podia brincar na rua, para que o governo não descobrisse que era resultado de um crime e assim o separasse de sua mãe.


O apartheid era um Estado policial, um sistema de vigilância e de leis criadas para manter a população negra sob total controle.


Na adolescência Trevor nos apresenta a área pobre da África do Sul, dos bailes a pirataria, a corrupção, o fracasso dos primeiros amores e a prisão. A diferença de ensino conforme a classe, e o fato de sua mãe investir em sua educação. Também aborda a violência doméstica, o descaso da polícia quando o marido bate na esposa, o sentimento de para onde ir quando o machismo impede um homem de aceitar o filho da própria mulher. Motivo que levaram a sua mãe a ensina-lo sobre ser homem e ser mulher.


Ser um homem não depende do que você tem, mas de quem você é. Para ser um homem, a sua mulher não precisa ser inferior a você.


Durante a leitura muitas vezes me senti sentada em algum lugar ouvindo as suas histórias, que em alguns momentos se assemelham a contos, já que possuem início, meio e fim, embora elas se alimentem com nomes e situações com ligações tanto em fatos passados quanto nos futuros que ainda vamos ler. A narrativa cria uma grande proximidade com Trevor e as pessoas as suas voltas, o que faz com que se compartilhe impressões e questionamentos no decorrer das páginas.


Adotamos a religião de nossos colonizadores, mas a maioria também se agarrava aos costumes ancestrais, só para garantir.


Não foram raras as vezes que eu gargalhei, que me choquei, ou simplesmente li mais um capítulo para saber as consequências de determinado ato. Ao mesmo tempo que acelerar a leitura era reduzir o tempo junto a história.

Sim, Trevor foi um menino bastante espoleta, e um adolescente que se virou em diferentes situações, e isso torna ainda mais grandioso o fato dele deixar tanta pobreza para trás, o que muito também vem da força de caráter de sua mãe, ao qual o livro é dedicado e por quem aprendi a ter um grande carinho, a ponto de ficar curiosa de como ela está.


Muitos homens crescem sem a presença do pai e passam a vida com a falsa impressão de quem é o pai deles e de como um pai deve ser.


Um livro que mistura história pessoal e de um país, que fala de racismo, laços familiares e oportunidades. Com uma escrita que te permite aprender, se divertir e se emocionar. Um livro para ler, curtir e depois recomendar.


Nascido do Crime
Histórias da minha infância na África do Sul
Born a Crime
Trevor Noah
Tradução: Fernanda de Castro Daniel
TAG - Verus Editora
2016 - 334 páginas

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O Jardim de Bronze

 


Sinopse: Dizem que a vida de um homem pode mudar em um único segundo. É exatamente isso o que acontece com o arquiteto Fabián Danubio quando Moira, sua filha de quatro anos, desaparece sem deixar vestígios. A partir disso, inicia-se um pesadelo que atormenta o protagonista por anos. O choque e a esperança iniciais são, aos poucos, substituídos pelo silêncio e pela impotência à medida que o tempo passa e a menina não é encontrada. Ainda assim, em uma Buenos Aires nostálgicas e tomada por policiais corruptos, o desespero se torna o combustível que mantém Fabián vivo. Ele conta com a ajuda de um excêntrico e talentoso detetive particular, que está disposto a desvendar os mistérios e segredos por trás do desaparecimento de Moira.

Como comentei no post do livro da Curadoria, Novembro foi o mês da literatura latino-americana para os associados da TAG. No caso da TAG Inéditos, o livro enviado foi o thriller que inspirou a série de mesmo nome na HBO: O Jardim de Bronze do escritor argentino Gustavo Malajovich. Os mimos também foram uma revista passatempo literária e adesivo.

A história tem início em 1987, quando Ivan nos conta que teve que matar o próprio pai. Ele divaga sobre o seu dia, nos fala o nome de algumas pessoas e pensa para onde o homem foi após morrer. Logo após há um salto no tempo e o leitor é levado para 1999, quando somos apresentados para Fabián, Lila e Moira.


Mais adiante, Fabián ia se lembrar muitas vezes dessa situação, pensando em todos os sinais que não conseguiu ver.


Logo de início é possível perceber que a relação de Fabián e Lila está se equilibrando em uma linha muito fina após sete anos de convivência. Ele um arquiteto, ela depressiva dentro de casa. Entre cobranças diretas e cruéis, as vezes sussurradas e outras levadas a violência física, a pequena Moira de quatro anos é o que parece manter as ligações desta família.

Mas um dia a menina some junto com a babá, uma imigrante peruana que a trata com carinho, e toda a rotina se quebra na vida do casal. O retorno da polícia é nulo, e quanto mais o tempo passa, menos esperança de encontrar a menina com vida. Questionamentos são feitos a família, e no vazio das respostas só resta o desespero.

Tudo passa a mudar para Fabián e para o leitor quando Doberti, um detetive particular, oferece os seus serviços. A forma de pagamento é a recompensa oferecida pelo governo para quem fornecer pistas das duas desaparecidas. E é esse personagem carismático que trará a ação em meio ao marasmo.


E ali Lila recuava em seu posicionamento de forma notável, e dizia que se sentia sem forças, mas que não queria se separar, porque para Moira seria terrível, et cetera, et cetera.


Malajovich mescla a narrativa em terceira pessoa com a primeira pessoa, utilizando neste caso um diário, para ir colocando o leitor dentro do seu mundo, que é dividido em cinco partes, cada um com seu próprio título e período de tempo. Mesclando assim a história de vida de Fabián com cenas de ação em um grande quebra-cabeça que tem como pano de fundo a bela cidade de Buenos Aires.

Aliás, o escritor explora muito bem a cidade, nos dando a sensação de estar caminhando pelas suas ruas, observando os seus prédios, andando em seus museus ou simplesmente sentado em seus parques, tornando Buenos Aires parte essencial da história.


Em dois canais a cabo, viu o anúncio de busca de Moira, mas até os noticiários já quase não falavam mais do assunto.


Somado a isso está a burocracia policial, que parece correr atrás do próprio rabo, a visão que os personagens possuem dos imigrantes, e um machismo latente dos principais personagens masculinos da história. Aliás, as mulheres na história são apenas coadjuvantes, não sabemos em momento algum o que Lila pensa ou sente, podendo deduzir apenas pelos seus atos.

Tentando expressar a minha opinião sem entregar o enredo, confesso que achei a história um pouco arrastada, embora entenda isso como um recurso para fazer o leitor sentir como o tempo estava passando para Fabián quando não havia nenhuma nova pista a seguir. 


Você já sabe que um detetive neste país não tem nada de heroico nem de romântico.


Logo no início da leitura fui tomada de uma agonia, me imaginando na mesma situação do casal, o que torna inimaginável o desespero. Ao passar das páginas fui criando e confirmando teorias, já que as pistas estão distribuídas ao longo da história, mas isso não impediu de eu ser realmente surpreendida no final.

Para quem curte histórias de suspense e policial, o livro realmente possuí todos os requisitos para atender este perfil de público. Eu particularmente gostei, não digo que amei, mas com certeza ativou o meu lado investigativo durante toda a leitura.


O Jardim de Bronze
El jardín de bronce
Gustavo Malajovich
Tradução: Aline Canejo
TAG - Globo Livros
2012 - 445 páginas

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

O dia em que a poesia derrotou um ditador



Sinopse: Durante uma aula de filosofia em Santiago, Nico presencia seu professor ser levado pela polícia. Prisões eram frequentes no Chile de 1988. No mesmo ano, Pinochet, cedendo a pressões da comunidade internacional, anuncia um plebiscito pelo qual a população decidirá se ele continuará no governo. Adrián Bettini, um renomado publicitário, envolve-se na campanha de oposição e vê a chance de transformar a história de seu país. Com sua prosa delicada, Antonio Skármeta tece uma narrativa impactante sobre como a alegria conseguiu devolver as cores a um país silenciado.

No mês de novembro/20 a TAG Curadoria fez uma homenagem a literatura da América Latina. Tendo como curador o gaúcho, que é escritor e professor em uma das oficinas literárias que revelou vários escritores brasileiros, Luiz Antonio de Assis Brasil. Os brindes foram uma revista de passatempo literária e adesivos.

Sem dúvida meus colegas achavam que eu era um covarde e que, por puro instinto, deveria ter reagido e defendido meu velho.

A história começa na aula de filosofia, quando Nico assiste o professor Santos ser preso. Algo muito comum na rotina diária dos chilenos, não fosse um detalhe: além de professor, Santos é pai de Nico. O jovem de dezessete anos é a visão adolescente dos fatos, entre o ambiente de escola, relações amorosas, o sentimento de mortalidade e a dúvida entre obedecer às instruções do pai para se proteger ou de dar voz nos momentos em que a realidade o perturba.

A visão adulta vem do pai da namorada de Nico, Adrián Bettini é um talentoso publicitário que com o regime ditatorial não consegue mais trabalhar em sua área. Ele é surpreendido pela intimação do ministro do Interior para ir até a sede do governo do general Pinochet. Primeiro ele fica em dúvida se deve ir ou fugir, mas o encontro acaba se revelando um convite.

O senhor pode criticar nosso governo como quiser, mas não pode negar que temos uma equipe brilhante de profissionais.

Pinochet resolveu fazer um plebiscito, com a permissão de opositores nas mesas de votação e observadores internacionais, garantindo assim a lisura de todo o processo. Os eleitores devem fazer apenas uma escolha: Sim para que Pinochet permaneça na presidência ou não para que ele se afaste e eleições presidenciais sejam realizadas. E para isso, tanto o governo quanto a oposição poderão fazer propaganda na televisão.

Adrián, que é contrário ao sistema, rejeita o cargo de divulgador do governo, mas não fica de fora do processo, quando é convidado pela oposição para realizar a sua propaganda. Logo isso se mostra um grande desafio, como ganhar o voto dos chilenos em quinze minutos? Como demonstrar que a união de todos os opositores são o sinal de que algo melhor é possível?

Se forem os policiais, ou estão vindo me buscar ou querem revistara escrivaninha do papai.

Antonio Skármeta reconta com leveza um episódio real da história chilena, sobre como unir pessoas que já se acostumaram em viver em meio a opressão com aqueles que ainda possuem esperança de resgatar a dignidade para todos os cidadãos. Entre cenas cômicas e choques de realidade, o livro nos apresenta a tensão de viver sob o julgamento do governo, e mostra como um estado sem direito para os seus indivíduos pode ser cinza, mas não desencantado ao ver as cores do arco-íris.

Em uma narrativa curta, de fácil leitura, talvez o leitor mais exigente irá sentir a voz de uma mulher, ou quem sabe de alguém que vivia incauto a tudo e de uma hora para outra precisa escolher entre mudar ou continuar o caminho de sua nação. O fato é que o livro consegue, em seu formato simples, ser divertido e reflexivo.

Santiago pesa no pescoço das pessoas, e todos andam depressa e com a cabeça baixa.

Eu particularmente gostei da história, existe uma intensidade sem tensão, uma tristeza que promete um final feliz, ao mesmo tempo que nos leva a ter um outro olhar sobre os acontecimentos chilenos, suas manifestações, até nos levar aos dias atuais, relembrando aos mais velhos e revelando aos mais novos um pouco mais do passado da América Latina.

Para quem curte ler o livro e assistir ao filme, existe uma versão, com algumas diferenças, chamada NO de 2012, com o ator Gael García Bernal.


O dia em que a poesia derrotou um ditador
Los días del arco-íris
Antonio Skármeta
Tradução: Luís Carlos Cabral
TAG - Editora Record
2011 - 223

terça-feira, 24 de novembro de 2020

A Segunda Vida de Missy

 


Sinopse: Em 1959 Millicent Carmichael, a Missy, casou-se com o homem que amava. Passados cinquenta anos, sem ele e com dois filhos criados e distantes, ela está sozinha. Embora se apresse em dizer que considerava seu papel de dona de casa e mãe pouco satisfatório, a verdade é que Missy devotou toda uma vida à família e suprimiu qualquer ideia de carreira em função do sucesso do marido. Agora que ele não está mais a seu lado, que ela brigou com a filha e que o filho se mudou para a Austrália com o neto que Missy tanto ama, ela passa os dias bebendo xerez, evitando as pessoas e vagando pela casa enorme e mal decorada esperando não se sabe o quê.

No mês de novembro o clube de livros intrínsecos enviou para os seus assinantes o livro A Segunda Vida de Missy, da autora Beth Morrey. Como brinde um aparador de livro.

Quem narra a história é Missy, uma senhora de quase oitenta anos, que não atende as ligações do banco por estar endividada, e vive em meio a sua solidão relembrando tristezas e mágoas.

Desde aquela tarde, uma semana antes, eu havia mudado de ideia meia dúzia de vezes, indecisa como só os mortalmente entediados e inseguros são capazes.

A mudança de percurso ocorre já no primeiro capítulo, em um dia frio ela vai até um parque ver um evento que atrai vários moradores da cidade. No local uma mulher oferece croissants a todos, e ela que vai socorrer Missy quando esta desmaia.

Sylvie não a socorre apenas de um desmaio, mas através de seus convites e apresentações aos poucos vai lhe trazendo de volta a realidade. Entre as novas pessoas que Missy conhece estão Angela e seu filho Otis, menino que regula de idade com o seu neto australiano. 

A garota do dormitório ao lado era tagarela e cativante, meu exato oposto.

E é Angela que traz o elemento que vai sacudir de vez a vida de Missy. Com o pedido de um lar temporário, ela lhe leva uma cadela chamada Bobby, ao qual inicialmente Missy diz não, mas acaba abrindo não só a porta de sua casa, mas como o seu coração.

Os capítulos da história intercalam o passado de Missy desde a sua infância, passando pela vida universitária até a rotina do dia-a-dia quando virou dona de casa, com o dia-a-dia, quando a vida lhe oferece uma segunda chance de olhar a sua volta com mais alegria e leveza.

Era insuportável a ideia de elas haverem discutido a minha situação - a velha triste e solitária, um caso de caridade pelo qual elas se responsabilizariam.

Além disso, temas recentes são abordados no livro, como a votação do Brexit e os questionamentos sobre os motivos pelos quais votar sim ou não e suas consequências, e o casamento da filha com a namorada.

E mesmo que seja um livro relativamente curto, eu achei a personagem Missy um tanto pesada, muitas vezes me sentia angustiada ao ver como as suas escolhas do passado se tornaram verdadeiras prisões que a fazem se arrastar pelos dias. O misto de sentimentos com os quais ela convive a tornam muito humana, e terrivelmente real.

...enquanto me dava conta de que nunca havia ocorrido a Angela a ideia de que eu pudesse ter votado em algo diferente do que ela própria, do mesmo jeito que todos os nossos conhecidos.

E apesar de Bob trazer leveza não só para a vida de Missy quanto para a história, ao mesmo tempo expõe ainda mais a solidão da personagem, cujo distanciamento dos filhos é enorme até mesmo em datas especiais e tornando latente a necessidade de alguém salva-la, como é indicado no título original.

Ao final pode ser inevitável o próprio leitor avaliar o quanto muitas de suas escolhas influenciam ainda hoje no seu dia-a-dia, se muitas coisas que o incomodam não são heranças de situações que ele insiste em carregar desnecessariamente. 

Para ser aquela mulher descontraída e animada, exibi-la e deixar a outra enfurnada em um canto.

E embora eu não tenha me agrado tanto a forma como a história é conduzida, e achado um tanto utópica a irmandade canina, por outro achei bem relevante a série de pequenas coisas cotidianas que nos afetam muito mais do que nos damos conta. E mesmo sendo clichê, não custa ser relembrado que nunca é tarde para mudar.


A segunda vida de Missy
Saving Missy
Beth Morrey
Tradução: Vera Ribeiro
Intrínseca
2020 -301 páginas

Livros do clube Intrínsecos resenhados no blog:
Pachinko
A Troca
Adultos
A dança da água
A vida mentirosa dos adultos


quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Uma escada para o céu

 


Sinopse: Uma carreira na literatura é o desejo mais ardente do jovem Maurice Swift. Com belos olhos e uma facilidade para circular em meio aos influentes e talentosos, ele parece ter o pacote completo para chegar lá... não fosse sua notável falta de talento. Utilizando-se da sua beleza e total falta de escrúpulos, Maurice vai enganar e magoar quem precisar em busca do seu sonho.

Utilizando um provérbio de origem desconhecida que diz "Ambição é colocar uma escada para o céu" para nomear o seu romance, John Boyne coloca o mundo editorial, seus escritores, o ato de escrever, as publicações e os cursos de escrita criativa em um livro vira página que me prendeu do início ao fim.

Ocorreu-me a ideia descabida de que ele se sentira fisicamente atraído por mim, muito embora soubesse que se tratava de um pensamento absurdo.

A história começa em Berlim Ocidental no ano de 1988, quando o escritor e professores alemão Erich Ackermann encontra-se divulgando o seu livro que acaba de ganhar o prêmio The Prize e está sendo traduzido para diferentes idiomas. Em um bar de hotel, aprendendo a lidar com o desconforto de retornar para casa, ele se encanta por um dos garçons.

O rapaz bonito que o aborda na saída do local se chama Maurice Swift e sonha em ser escritor. Entrega um manuscrito para Erich, que observa que ele sabe utilizar as palavras, mas suas histórias são tediosas, faltando alma no que se propõe. Mas o charme do rapaz o impede de falar diretamente. Apaixonado, ele contrata o rapaz a circular com ele pela Europa e América do Norte com a justificativa de lhe dar dicas.

Que bom que posso aprender com você. Espero que saiba o quanto estou agradecido.

Em cada cidade, o escritor acaba contando um fato muito marcante do seu passado, ao mesmo tempo que apresenta diferentes pessoas do mundo literário ao rapaz. O resultado é o sucesso de um e a desgraça do outro.

Na parte dois o leitor é levado para Norwich no ano de 2000, onde Maurice Swift está casado com a escritora revelação Edith. Além de estar escrevendo um novo romance, ela é convidada para dar aula em um curso de escrita criativa.

Vi a chama refletida nas suas íris e seus olhos pareciam tão úmidos que cheguei a pensar que você ia derramar uma lágrima.

Sem conseguir gerar o filho que tanto Maurice deseja, ela segue acreditando no amor que um tem pelo outro. Mesmo quando vê o marido ter ciúmes de jovens escritores e agir até mesmo com violência com ela. A confiança no marido faz com que ela cometa alguns erros e como Erich pague um preço alto demais por se envolver com um homem como Maurice.

Na terceira parte é o próprio Maurice que nos fala, é o momento de ter o seu lado dos fatos, enquanto circulamos por diferentes pubs em Londres. Um homem sórdido, frio, sem limites para escalar a sua escada rumo ao que ele considera merecer. Uma pessoa que não gera o mínimo de empatia, como todo anti-herói. Mas que tem beleza e charme para atrair e manipular suas vítimas, sem que elas se deem conta do seu real objetivo.

Eu pensei muito antes de lhe revelar aquilo, mas acabei achando melhor contar.

Uma escada para o céu possui narrativa em primeira pessoa, achei muito interessante Boyne apresentar inicialmente a visão de outros personagens sobre Maurice, para somente depois nos colocar dentro da sua mente. Nos dando uma visão completa dos fatos, não havendo dúvida nenhuma da índole do pseudo-escritor.

Outros motivos para ler o livro é a viagem que fazemos através dele, seja de cidades (Berlim, Copenhague, Roma, Madrid, Paris, Amsterdam, Nova York e Londres), seja pela literatura, onde há muitas referências de livros, assim como a mistura de escritores fictícios e os reais, como Gore Vidal.

Podia ser embaraçoso fazer semelhante confissão, mas simplesmente não havia como contornar os fatos.

Envolvente e surpreendente, foi um livro que eu devorei rapidamente, onde a escrita fácil não evitava o choque, mas facilita a necessidade de saber mais.

Uma escada para o céu
A ladder to the sky
John Boyne
Tradução: Luiz A. de Araújo
TAG - Companhia das Letras
2018 - 333 páginas


Outros livros de John Boyne resenhados no blog:
O Garoto no Convés
O menino do pijama listrado


terça-feira, 10 de novembro de 2020

Eu Encontrei Jesus - Viagem às origens do Ocidente



Sinopse: Quem foi Jesus de Nazaré? Como surgiu a religião chamada cristianismo? Quem foram seus fundadores? Quem eram os primeiros cristãos? A história da Ressurreição de Jesus de Nazaré é verdadeira? Quem era São Paulo? Quem escreveu os Evangelhos? O que significa a expressão Filho de Deus? Os primeiros cristãos acreditavam que Jesus de Nazaré era Deus? Por que o cristianismo se espalhou tão rapidamente por todo o Império romano? A origem da democracia está na Grécia ou em Israel? Em linguagem direta e não raro contundente, mas sempre com base em pesquisas históricas, Eu encontrei Jesus enfrenta estas e outras perguntas. E as respostas a elas dadas são surpreendentes e não deixarão indiferente nenhum leitor.

A primeira coisa que preciso dizer é que este não é um livro religioso, ele inclusive vai além da religião.

A segunda, que conforme o Luís Augusto Fischer avisa na contracapa, não é um livro contra o cristianismo ou qualquer igreja cristã.

E a terceira e última é que se você é extremamente religioso e não aceita nada diferente do que é repassado pela sua igreja, este livro não é para você.


Os autores dos quatro Evangelhos são desconhecidos. Sua identificação nominal é fruto da tradição, que no caso de Marcos e Lucas possui pouca confiabilidade e no caso de Mateus e João nenhuma.


O livro do jornalista, professor e ensaísta José Hildebrando Dacanal está entre os livros da minha mãe que vieram morar na minha humilde biblioteca. Minha mãe é muito curiosa sobre o assunto, não sendo o único do estilo que está na lista para ler, mas com certeza é um dos mais bem fundamentados.

Dividido em três partes, o livro possui uma série de referências bibliográficas, pois trata da pesquisa realizada pelo autor para buscar respostas que não são nada fáceis. É o resultado do estudo de Dacanal sobre um período, e o que temos vai além da figura de Jesus de Nazaré, mas de toda a questão política e religiosa da época. Motivo pelo qual ele separa as fontes estudadas em internas e externas, e classifica quanto a riqueza de conteúdo, confiabilidade, discordantes, conflitantes, entre outros critérios.


O aldeão galileu Jesus de Nazaré não foi o fundador do cristianismo e este não foi obra sua, mas, no início, de intelectuais de origem urbana e formação gregas e, posteriormente, de intelectuais gregos adeptos do monoteísmo e da ética israelita.


Como não poderia deixar de ser, a primeira parte trata da personagem Jesus de Nazaré. Logo na origem é indicado que o seu nascimento ocorreu entre 7 a.c. e 4a.c, em uma aldeia no centro-sul da Galileia. O uso de Belém nos evangelhos seria a associação de Jesus como descendente do Rei Davi. O primogênito de Maria teria pelos mais quatro irmãos e duas irmãs, e em relação a sua paternidade, além da versão da divindade, são levantadas questões como filho ilegítimo, adulterino, fruto de estupro de um soldado romano ou simplesmente filho de José, o marido de Maria.

Ele também analisa itens como os títulos atribuídos, como o termo cristo que significa Rei de Israel, e que Filho de Deus era um termo utilizado para designar monarcas quando estes assumiam o trono como reis. Assim como as teses em relação ao seu grau de instrução, em uma época em que muito poucos eram alfabetizados, e estado civil, cuja ligação ao judaísmo tardio tinha a prática do celibato.


Ao contrário do que muitos afirmam, o cristianismo primitivo não é o cristianismo dos gentios.


Na comparação destes documentos, a dedução levada ao autor é que o Jesus, pregador itinerante, curandeiro e exorcista, apesar de ter uma linha diferente, como em relação a inclusão das mulheres entre seus seguidores, ele permaneceu sendo um israelita - um judeu - não foi o criador e não teria pretensão de fundar o cristianismo primitivo, que deu origem ao cristianismo como conhecemos hoje. Tendo a sua figura idealizada após a sua morte, e assim nascendo uma lenda que mudaria não só a religião israelita, como também a política do mundo.

E aí temos o link para a segunda parte, que trata justamente do Cristianismo Primitivo, que teria como ponto de partida da ressureição de Jesus, mudando o seu status de apenas mais um sentenciado a morte. Listando os fatos cronologicamente, ele descreve como ocorreu o crescimento dos seguidores, passando pelos conflitos internos em Jerusalém e a perseguição aos cristãos.


Em João alvorece uma nova religião, uma nova visão de mundo, uma nova ideologia.


Nesta parte também é abordada as viagens de Paulo de Tarso e suas cartas, os imperadores romanos até o momento em que o cristianismo deixa de ser uma religião para ter função ideológica.

Para concluir tudo, a terceira parte trata da Cristandade Ocidental, que vai da adoção da religião por Constantino a explicações dos três séculos levados para se romper com tudo o se acreditava até aquele momento. Também consta a influência dos gregos, lembrando que a origem da palavra Democracia possuía um sentido muito diferente do utilizado nos dias de hoje e o fato dos apologetas terem considerado Sócrates o primeiro mártir cristão, por morrer defendendo o direito ao espaço privado.


O Credo de Nicéia pode ser visto de três formas diferentes: como uma confissão de fé religiosa, como uma Constituição da Cristandade nascente e, finalmente, como uma cosmologia.


O livro é interessantíssimo, ao mesmo tempo que o autor tenta responder as suas perguntas, acaba trazendo novas para os leitores, já que o passado da humanidade é cheio de lendas e mistérios. Separar a ficção da realidade quando se trata de história é o que acaba separando também os curiosos dos que apenas creem.

Quem finaliza a leitura e deseja se aprofundar irá encontrar ao final do livro a biografia utilizada em todas as referências citadas ao longo dos capítulos, permitindo que assim esse parta em busca das próprias informações e tenha as suas deduções.


Milhares, possivelmente dezenas de milhares de obras foram escritas para tentar compreender e explicar a civilização israelita e a civilização helênica.


Durante a minha leitura acabei fazendo associações com outros livros, filmes e vivências dentro da igreja católica. Em um ritmo mais lento, muitas vezes me peguei criando um paralelo daqueles dias com os de hoje, principalmente quando é referenciado que o grupo de Jesus era formado pela classe média da época e o surgimento do cristianismo primitivo é relacionado com a insatisfação de pessoas que possuíam um maior conhecimento, mas não pertenciam aos círculos do poder.

Fechei o livro com as minhas próprias dúvidas e reflexões, e mesmo agora, passado duas semanas, as vezes me pego pensando no assunto abordado e me questionando o que haveria de real e o que haveria de ficção no livro mais lido do mundo.


Eu encontrei Jesus - Viagem às origens Ocidente
J.H. Dacanal
Leitura XXI- EST Edições
2004 - 351 páginas


terça-feira, 3 de novembro de 2020

Pachinko



Sinopse: No início dos anos 1900, a adolescente Sunja, filha adorada de um pescador aleijado, apaixona-se perdidamente por um forasteiro rico que frequenta a costa perto de sua casa, na Coreia. O gângster cuja fala emula um sotaque japonês e cujas roupas se distinguem das de todos na região promete a ela o mundo. Então Sunja engravida e descobre que ele já é casado. A jovem se recusa a ser comprada como amante, e sua vergonha e desonra em dar à luz uma criança fora do matrimônio se amainam no último minuto, com o pedido de casamento de um pastor religioso que está de passagem pelo vilarejo, rumo ao Japão. A decisão de abandonar o lar e rejeitar o homem poderoso de quem engravidou dá início a uma saga dramática que se desdobrará ao longo de gerações por quase cem anos, acompanhando os destinos daquela criança ilegítima gerada na Coreia e de seu futuro irmão, filho do pastor.

A edição de outubro/2020 do clube intrínsecos é da autora coreana Min Jin Lee, que após pesquisas e com muita sensibilidade conta a história de imigrantes coreanos em terras japonesas no livro que chamou de Pachinko. Sobre o mimo, é uma bolsa porta-livro que lembra a ilha de origem de Sunja.

Aquele desgraçado do Hirohito se apoderou de nosso país, roubou as melhores terras, o arroz, o peixe, e agora está levando nossos jovens.

Narrado em terceira pessoa, a história possui 3 partes, começando no ano de 1910 na cidade de Yeongdon, em Busan na Coreia, finalizando em 1989 em Tóquio, capital do Japão.

Na primeira parte conhecemos um casal que decidem receber hóspedes na casa que alugam para ganhar um dinheiro extra. Trabalhadores que sabiam administrar o pouco que tinham, logo receberam atenção da casamenteira local, pois mesmo que seu único filho, Hoonie, fosse aleijado, suas poses atrairiam alguma família.

Nenhum homem normal ia querer criar o filho de outro homem, a menos que seja um anjo ou um tolo.

E assim Hoonie, com 27 anos, desposou a jovem Yangjin, de apenas 15 anos. Eles aprendem a administrar a pequena hospedaria, enquanto perdem bebês, mas uma resiste, e a menina recebe o nome de Sunja. O casal cria a filha com muito amor e cuidado, até Hoonie perder a luta para a tuberculose.

Ambas as mulheres são muito trabalhadoras e mantém a hospedaria, mas o destino de Sunja muda ao ser assediada por um grupo de rapazes ao sair do mercado, salva por um rico negociante chamado Koh Hansu, logo eles passam a se encontrar. Encantado pela juventude da moça, ele a seduz e ela fica grávida. Mas ao descobrir que ele é casado, Sunja se afasta.

Como vou encarar esses homens novamente, toda vez que sair na rua, sabendo que duas mulheres estúpidas pagaram minhas dívidas?

A solução para a sua honra acaba sendo um jovem pastor hospedado em sua casa, de saúde frágil, ele lhe propõe casamento exigindo apenas duas coisas em troca: que ela aceite Deus e se mude com ele para o Japão.

Em Osaka o leitor vai conhecer, junto com Sunja, o irmão e a cunhada de seu marido Isak: Yoseb e Kyunghee. Yoseb ao mesmo tempo que é generoso com a família e muito trabalhador, também é extremamente machista. Kyunghee é admirada por sua beleza, mas carrega uma tristeza por não ter filhos, o que faz amar as crianças de Sunja.

As outras crianças eram implacáveis, mas Noa não se metia em brigas.

Seus filhos Noa e Mozasu crescem em meio a diferenças, enfrentando as situações cada um à sua maneira, Noa se esforça e estuda para ser o melhor, Mazasu utiliza a força para ganhar respeito. Não é fácil ser um estudante coreano em uma escola japonesa, nem todos aguentam a pressão dos seus colegas, abandonar tudo muitas vezes é menos doloroso que se entregar cedo ao trabalho.

O reflexo disso tudo irá se apresentar na vida adulta dos dois rapazes, em como cada um enfrentará os próprios obstáculos, momento que a autora aproveita para mostrar a questão de casamentos entre japoneses e coreanos, além do desejo de se tornar um japonês para ter as mesmas oportunidades.

Um dia, tio Yoseb dizia, eles iam voltar para a Coreia. Noa imaginava que a vida seria melhor lá.

Ao acompanhar as mudanças desta família o leitor é transportado para a vida dos coreanos em terras japonesas, onde o preconceito é enorme. Com a família de Sunja, acompanha-se não só as dificuldades de trabalho, mas a discriminação e a pobreza, como também o impacto da segunda guerra na vida destas pessoas, o sonho de voltar para uma Coreia agora dividida e que se torna mortal em alguns casos, a dificuldade de realizar ações simples, e o fato de mesmo as crianças nascendo no Japão serem considerados eternamente estrangeiros.

A escrita de Min Jin Lee nos transporta para diferentes cidades, é possível sentir o cheiro da comida e os barulhos a volta, compartilhar as dores de mulheres humildes que batalham todos os dias, aprender sobre uma cultura tão diferente da nossa, assim como sentir a humilhação dos jovens pelo bullying sofrido e a falta de boas oportunidades, pois facilmente os coreanos eram chamados de sujos e bandidos pelos japoneses.

Na verdade, queria uma vida muito simples, repleta de natureza, livros e quem sabe filhos.

Sobre o título, Pachinko se refere aos salões com máquinas de mesmo nome, elas são uma espécie de caça-níquel, onde o jogador deve disparar bolinhas de metal que passam por alavancas e pinos, rendendo mais bolinhas - e dinheiro - para quem tiver sorte de vencer. Estes salões foram a opção de trabalho para muitos zainichi - imigrantes coreanos com residência permanente no Japão - que isolados pelo preconceito não conseguiram atuar nas áreas para quais estudaram.

Finalizei a leitura com uma sensação de satisfação após uma escrita muito fluída que me transportou para outra realidade, ao mesmo tempo que me entristeceu ao concluir como é geral e egoísta esta necessidade do Homem se sentir superior aos demais, atribuindo motivos para justificar o injustificável.


Pachinko
Min Jin Lee
Tradução: Marina Vargas
intrínseca
2017 - 528 páginas

Procurando mais livros de literatura coreana? Veja a nossa resenha sobre O Bom Filho.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Minha vida de rata

 


Sinopse: Minha vida de rata acompanha Violet Rue Kerrigan, uma jovem que rememora seu passado após ter sido expulsa da família, aos 12 anos. Chocante e mordaz, o livro mostra como ser banida não apenas de sua família, mas também de sua comunidade - parentes, vizinhos e igreja -, força Violet a descobrir a própria identidade e a romper a poderosa ilusão do significado de família, emergindo de seu longo exílio como "rata" para uma vida transformada.

A escritora Luisa Geisler indicou para o mês de outubro/2020 um livro traduzido por ela para a TAG Curadoria. Minha vida de Rato foi lançado no ano passado e é da escritora americana Joyce Carol Oates, uma jovem mulher já na casa dos oitenta anos cuja escrita nesta história mistura vários temas atuais, que vão muito além do racismo, que foi o mais explorado na revista da TAG. O brinde desta caixa foram três sabonetes com aroma da flor violeta.

O que serve de aviso para os mais desavisados, há muita violência contra a mulher nesta história, desde abuso de jovens meninas, até relacionamentos onde o machismo impera, com violência física e psicológica, o que pode tornar a leitura bastante incômoda para quem já passou por situação simular, os chamados gatilhos.

Não parecia haver um equivalente masculino para fazendo um show, desfilando.

Para falar deste livro, vou precisar fugir da superficialidade, citando mais da história do que normalmente costumo abordar. Então para quem não gosta de nenhum detalhe a mais antes de ler, recomendo parar a leitura desta resenha neste momento. Caso contrário, vamos lá.

Narrado em primeira pessoa por Violet Rue Kerrigan, o livro é dividido em três partes, tantos as partes quanto os capítulos possuem seus próprios títulos. Acompanhamos Violet dos doze anos até os seus quase trinta anos.

Disciplinar os filhos. Simplesmente o que um bom pai responsável fazia, demonstração de amor.

Na primeira parte somos apresentados a família de origem irlandesa Kerrigan, pai, mãe e seus sete filhos. Violet é a caçula e se sente a filha favorita do papai, um homem machista que não deve ser contrariado. Em casa, todos falam com cuidado com este homem que já foi para uma guerra, e hoje muitas vezes chega bêbado. Sinônimo de força, ele é a referência e o que desperta respeito entre seus filhos, eco não encontrado na relação com a mãe.

Os dois irmãos mais velhos de Violet possuem um sério desvio de caráter. Mas seus pais os defendem com unhas e dentes, pois acreditam na unidade da família e que esses laços exigem fidelidade e proteção por parte de todos. E isso é o que muda o destino de Violet, como a sinopse nos avisa. É a menina, se achando esperta e espiando os irmãos, que vê, sem saber, os primeiros indícios do crime cometido pelos seus irmãos contra um jovem atleta negro.

Não tem "garotas boas", só porcas de raças diferentes.

Enquanto a comunidade entra na discussão de um ataque a meninos brancos, um de seus irmãos, sabendo que ela tinha conhecimento de que eles haviam cometido o crime, tenta assassina-la, e com isso Violet acaba contando a estranhos tudo o que sabe. O resultado é a prisão dos rapazes e sua expulsão da família. Pois assassinar estranhos pode, tentar matar a irmã também, mas revelar isso aos outros, nunca.

Na minha opinião a primeira parte é a mais bem escrita do livro, você se sente dentro da casa de Violet, a tensão que todos eles sentem em relação ao pai, o funcionamento da escola, as relações com as demais pessoas, a injustiça em relação aos mais fracos. Existe um equilíbrio entre tudo, que te faz sentir as dores, se indignar com cada ação, ao mesmo tempo que fica muito claro todos os motivos pelo medo de Violet ser real e não haver sombra de dúvidas nenhuma em relação ao que os seus irmãos fazem.

Quando se trata de família, é melhor não pensar nada. Melhor...não pensar.

A segunda parte também é forte, mas é onde eu comecei a realizar vários questionamentos em relação aos fatos apresentados, e no meu caso comecei a questionar o caminho da história, o que pra mim atrapalhou a leitura.

Violet é adotada pelos tios, que moram em outra cidade, sendo a tia irmã de sua mãe. Eles não possuem filhos, e existe um carinho e um cuidado em sua chegada, principalmente pela menina não ser mais desejada pela própria família. Violet tem acompanhamento de uma assistente social e é matriculada em uma escola, mas apesar de ter risco de morte, seu nome não é alterado, o que possibilita qualquer um pesquisar a sua história. E este foi o meu primeiro questionamento: se existia risco de o irmão ir atrás dela, e a história já ocorre nos anos de 1990, o mínimo não seria ela receber o sobrenome dos tios que a adotaram? Eu não sei a resposta, apenas a dúvida.

Garotas não têm "aptidão natural" para matemática. Não há motivo algum para garotas saberem matemática.

O interessante aqui nesta segunda parte é que ela não tem confiança em ninguém, não retribuindo nem abraços da tia, ao mesmo tempo ela dorme em qualquer lugar e horário, o que demonstra que ela precisa de cuidados extras, sendo no mínimo necessário um acompanhamento psicológico para Violet. Mas ela não tem isso. Mas curiosamente ela aceita se tornar marionete de um professor, ao qual ela enxerga uma espécie de poder, como se fosse uma transferência da visão que ela tinha do pai para este homem.

Este homem é o personagem Sandman - o homem de areia que também dá nome a uma multipremiada série de história em quadrinhos para adultos -, na história de Joyce é um solteirão, que vive em uma boa casa, um professor rigoroso e que revela a Violet a sua simpatia pelo regime nazista e a pureza ariana, demonstrando assim o seu preconceito contra pessoas de etnias diferentes, ao mesmo tempo que a condena o fato da menina ter denunciado os irmãos. 

Para fazer a escolha certa da mesma maneira como fazia uma cama - metodicamente, perfeitamente, todas as dobras alisadas.

Extremamente machista, convence as meninas que elas precisam de aula de reforço, as mais ingênuas são convencidas a acompanha-lo. As mais espertas o abandonam, as que possuem medo aceitam o convite de ir até a sua casa e através de uma espécie de boa noite cinderela, ele abusa das mesmas. Outra vez é Violet que irá abrir esta caixa de pandora para a polícia, embora de forma involuntária, quando se vê novamente em uma quase morte.

Nesta parte uma coisa me incomodou, que foi a desconstrução dos tios. Tia Irmã demonstra ser bem diferente da mãe de Violet, alguém que tenta se aproximar e dar afeto a menina, que se afasta, e quando a personagem demostra ter mais força e ser diferente, em meia página ela desconstrói toda a personagem criada até ali. 

O objetivo é me manter viva.

E então chegamos a terceira parte, onde Violet já mora sozinha, ganhou e desperdiçou uma bolsa de estudo na universidade se mudando de cidade, movida pela vergonha de reencontrar colegas da última escola, e agora trabalha como empregada doméstica. Aqui ela conhece Metti, um homem na casa dos quarenta anos, elegante e rico, ao qual ela se envolve e acaba tendo um relacionamento doentio, onde o homem a princípio educado se torna machista, preconceituoso e violento. Neste ponto o que me fez desgostar da leitura foi o sentimento que tudo o que Violet já viveu não serviu de aprendizado tendo como justificativa uma espécie de paixão.

Durante toda a história os homens com os quais ela convive possuem um mesmo perfil, generalizando todos os homens brancos como machistas e violentos, talvez possa se justificar pela busca do pai, ao qual ela deseja perdão por ter denunciado os irmãos, motivo pelo qual ela mesma se chama de rata, termo que no Brasil seria o famoso X9. Em paralelo, ela passa enviando dinheiro para a família da vítima de seus irmãos, como se ao denunciá-los e assim "sujar" o nome da sua família, ela também fosse culpada pelo assassinato, demonstrando uma dubiedade de sentimentos da personagem.

Buscando no seu rosto, esperando não ver aquilo que teme ver, que você está escondendo dela.

Em Minha vida de rata as descrições, assim como os diálogos são muito fortes, pois a heroína da história literalmente vive aquela frase desgraça pouca é bobagem. E talvez por tanto peso nos ombros de um único personagem, que ao mesmo tempo tem uma série de oportunidades para mudar o rumo da sua vida, parece as vezes forçar o tom para em uma única narrativa abordar tudo o que há de pior em relacionamentos familiares e entre homem e mulher.

Digo forçar por já ter lido outras histórias bastante duras, como o fantástico As Alegrias da Maternidade, onde a sequência possui uma naturalidade, e mesmo em meio a dor, há uma luta da personagem, algo que em nenhum momento vi em Violet. Me passando a ideia de que ela nunca seria feliz, sendo uma eterna vítima dos outros e dela mesma.


Minha vida de rata
My life as a rat
Joyce Carol Oates
Tradução: Luisa Geisler
TAG - Harper Collins
2019 - 382 páginas


Outras resenhas de livros que abordam machismo e/ou violência contra a mulher:
Tudo de bom vai acontecer
As Alegrias da Maternidade
A Única Mulher
A terceira vida de Grange Copeland
As Garotas Madalenas
Eu sei por que o pássaro canta na gaiola
A Praça do Diamante
Escuridão Total sem Estrelas
(Sobre)Viver
Os homens que não amavam as mulheres

terça-feira, 27 de outubro de 2020

A Vida Secreta dos Escritores



Sinopse: em 1999, após publicar romances cultuados pelo público e crítica, Nathan Fawles anuncia que vai abandonar a carreira literária e a vida pública, juntando-se ao rol de escritores reclusos que ocupa a mente dos fãs de literatura. No auge da carreira, ele se refugia em Beaumont, ilha paradisíaca na costa do Mar Mediterrâneo. Duas décadas depois, Raphaël Bataille, aspirante a escritor e fã de Nathael Fawles, chega a Beaumont para descobrir o paradeiro do seu ídolo. Também desembarca no local Mathilde Monney, uma jornalista suíça que está determinada a desvendar os segredos do autor, por que, afinal, Nathan Fawles parou de escrever histórias? Ao mesmo tempo, ocorre um assassinato misterioso na ilha, que coloca os três personagens em lados opostos de um enredo repleto de mentiras, crimes, traições, paixão e muita escrita.

A edição da TAG Inéditos de Outubro/2020 traz o título A Vida Secreta dos Escritores do autor francês Guillaume Musso, que já vendeu cerca de 35 milhões de cópias e foi traduzido para 44 línguas. O livro é fino, mas não o julgue pelo tamanho, pois ele é garantia de uma leitura extremamente envolvente, sem exageros. 

Eu sempre conseguia me convencer de que os fracassos preparavam a vitória.

O mapa da Ilha Beaumont abre a leitura, e ao final dá um aperto no coração ao pensar que ela é fictícia, tendo como inspiração outros quatro lugares, estes sim, reais: a cidade litorânea de Bolinas na Califórnia, e as ilhas Skye na Escócia, Porquerolles na França e Hidra na Grécia. O que possibilita o leitor montar um roteiro de viagem para o pós pandemia.

Raphaël é um jovem de 24 anos formado na área de comércio para tranquilizar os pais, mas que tem o sonho de ser escritor como profissão. Há dois anos se dedicava a escrita do seu romance, que já havia sido recusado por uma dezena de editores. O que o fez aceitar um emprego temporário em uma livraria na ilha de Beaumont, onde teria tempo para escrever uma nova história.

E aquela maneira de se erigir em juiz para decidir o que era e o que não era literatura me parecia de uma pretensão sem limites.

A ida para a ilha tem um bônus para Raphaël, encontrar o famoso escritor Nathan Fawles, ao qual possui muita admiração e já leu os livros diversas vezes. Nathan Fawles vive isolado na ilha, em uma casa construída grudada a um rochedo, com seu próprio caminho para o mar, é um local sem sinal de internet, um ambiente rústico, perfeito para escrever, mas o seu morador não quer colocar mais uma palavra no papel.

Só que não é apenas Raphaël e seu manuscrito que estão atrás de Nathan. A misteriosa jornalista Mathilde Monney também está interessada no autor, a ponto de utilizar artimanhas para conseguir se relacionar com ele. Bonita e jovem, em um primeiro momento Nathan sente-se atraído por ela, mas logo ele passa a se sentir perseguido.

O livro não tivera repercussão na imprensa e não se podia dizer que os livreiros o respeitassem, embora tivessem acabado seguindo a onda.

Além disso, estão todos presos na ilha após o assassinato de uma mulher, que é encontrada pregada a árvore chamada de Imortal, um antigo eucalipto que deixa todos os moradores da ilha em estado de tensão, já que o seu isolamento também passa a ser questionado.

O detalhe da história de Guillaume Musso começa no Sumário, que pode deixar o leitor em dúvida se o livro é uma ficção ou sobre como escrever? E eu ouso dizer que ele trata das duas coisas. Em um mistério leve, mas ao mesmo tempo envolvente, ele vai dando dicas de como um livro é construído. Abordando com seus personagens desde cursos de escrita, passando pela dificuldade de um livro ser aceito pelas editoras, até como um autor passa a ser visto quando alcança o sucesso.

Em relação ao estilo, o texto estava cheio de brilhantismo, de figuras de linguagem audaciosas, de alusões bíblicas.

Abaixo do título de cada capítulo temos frases e observações de outros autores - como Umberto Eco, Milan Kundera, Marcel Proust - sobre escritores, livros e escrita. E eles não estão ali por acaso, sendo uma introdução sobre o que está por vir, então não as ignore, elas não estão ali por acaso.

A narrativa se utiliza tanto da primeira quanto a terceira pessoa, sendo envolvente, irônica e questionadora. Com cutucões nos intelectuais, achei muito inteligente por parte do autor utilizar um suspense em estilo romance policial para nortear o que leva alguém escrever e também a se afastar das letras.

Mas os romancistas costumam ver histórias em tudo.

Eu particularmente adorei o livro, ele capturou a minha atenção, achei bem construído e ao final fiquei com pena de terminar.


A Vida Secreta dos Escritores
La vie secrète des écrivains
Guillaume Musso
Tradução: Julia da Rosa Simões
TAG Inéditos - L&PM
2019 - 222 páginas


Outros livros sobre escritores e a escrita resenhado nos blogs:

A Louca da Casa
A Velocidade da Luz
Autobiografia
Sobre a Ficção - Conversas com romancistas

terça-feira, 13 de outubro de 2020

As Sete Mortes de Evelyn Hardcastle



Sinopse: Dia após dia, um homem acorda em meio aos preparativos de uma festa em honra a Evelyn Hardcastle na Mansão Blackheath. Dia após dia, um corpo distinto. Cada hospedeiro é a nova chance de descobrir o culpado pela morte da estrela da festa, que se desvela durante o luxuoso baile de máscaras. Além da confusão da viagem do tempo, os segredos transbordam, e nenhum movimento é simples, pois as regras do jogo não estão claras - e reviravoltas acontecem a todo momento.

Antes de iniciar a história o leitor recebe um aviso, o convite com nome de todos os convidados e o que fazem da vida, assim como dos principais empregados da casa, além de um pequeno mapa do local onde tudo acontece. Informação essencial para se achar na misteriosa leitura, pois sim, os leitores encontram-se quase tão perdidos quanto o homem citado na sinopse.

Sou um homem no purgatório, cego para os pecados que me perseguiram até aqui.

Em meio a uma floresta um homem acorda com o nome Anna em seus lábios. Ele não lembra de absolutamente nada. De repente uma mulher passa correndo, sendo perseguida por um homem, logo em seguida ele escuta o barulho de um tiro. 

Ele é salvo por um homem desconhecido, que sem se mostrar, lhe dá uma bússola e lhe indica uma direção, e assim ele chega até a Mansão Blackheath, onde alguém o identifica como um dos convidados da festa e o direciona para o seu quarto, e assim ele descobre quem teoricamente é.

São peças de um jogo que nem eu, nem você sabemos jogar.

Através dele temos o primeiro olhar deste lugar que já teve dias melhores, assim como dos convidados, que não se encontram tão felizes em uma festa realizada em um dia um tanto macabro, como se celebrasse o assassinato que havia acontecido a dezenove anos atrás na mesma data, aos quais eles também estavam presentes.

Para completar o estranhamento um homem fantasiado como o Médico da Peste lhe avisa para ter cuidado com o lacaio. De bom no seu dia apenas a aproximação com Evelyn Hardcastle, uma mulher que o encanta e desperta nele o desejo de protege-la.

Não podemos resolver o assassinato de alguém que não morreu, e sem uma resposta não podemos escapar.

Vem a noite, chega o sol, e este homem acorda novamente no mesmo dia, mas no corpo de outro convidado. Novamente confuso, ele simplesmente não sabe quem é. É quando o Médico da Peste reaparece e nos dá uma breve explicação da missão deste homem que teve a sua memória de certa forma apagada, e para se livrar deste looping, precisa descobrir até o final daquele dia quem assassinou Evelyn.

Narrado em primeira pessoa, o leitor se sente tão cheio de interrogações quanto o personagem que acompanhamos. Quem é ele? Por que ele fica trocando de corpo e vivendo o mesmo dia todos os dias? O que aconteceu naquela mansão? Em quem ele pode confiar? E ele é confiável?

Como posso fazer isso quando não sei onde eles terminam e eu começo?

Eu particularmente gostei muito da forma de escrita da história, a briga com as personalidades de cada corpo, que conforme a força confrontam o personagem principal, a dubiedade das pessoas que ali estão, os vários mistérios que envolvem a todos, deixando claro que a história é um jogo, absolutamente tudo é interligado, pequenos detalhes não podem ser esquecidos, senão não seremos libertados.

A troca de corpos permite uma visão de diferentes áreas da casa, a cada mudança, são outras amizades e, naturalmente, inimizades. Apesar das roupas e joias luxuosas,  existe muita tristeza, mágoa e maldade neste lugar. São poucos os que merecem a nossa simpatia conforme as facetas são reveladas.

Eu estou me perguntando isso há dezenove anos e não estou nem perto de encontrar uma resposta.

A única coisa que me incomodou foi o final, sim, você não será deixado na mão (como pensei algumas vezes) e irá saber o motivo por ele estar ali, mas mesmo combinando com a personalidade que nos foi apresentada, o desfecho não me convenceu. Mas nada que me faça contraindicar a leitura. 

Para quem curte investigar um mistério, com toque de morte, conflitos, segredos e vaidades, com certeza vai adorar a história que resultou no romance de estreia do jornalista Stuart Turton. Um livro realmente criativo na forma como foi montado, e que prende o leitor até o final.

As Sete Mortes de Evelyn Hardcastle
Stuart Turton
Tradução: Hilton Lima
TAG Inéditos - Dublinense
2018 - 477 páginas

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Árvore dos desejos



Sinopse: Delicado, engraçado e profundo, Árvore dos desejos é um conto de fadas moderno sobre o poder da amizade e da empatia, mostrando que muitas vezes temos que desafiar a tradição e nossos próprios medos para defender quem mais precisa.

Red é um carvalho-vermelho-americano, também conhecida como Quercus rubra, que está com duzentos e dezesseis anos de idade. Ela faz sombra para duas casas, abriga diversos animais em suas áreas ocas e seus galhos, e é a narradora desta história.

É difícil conversar com as árvores. Não somos muito boas de papo furado.

Péssima contadora de piadas, ela viu a região surgir, imigrantes construírem casas a sua volta, e participar de uma tradição irlandesa quando uma jovem pendura no dia 1º de maio uma fita com um desejo descrito, o que primeiro gerou sorrisos ganhou admiração quando mais tarde ele é realizado. Com o passar dos anos as fitas e pedidos aumentam, do mais simples ao mais absurdo, se tornando uma tradição na comunidade.

Mas no período atual da nossa narradora, que por sinal é uma boa contadora de histórias, os dias anteriores ao 1º de maio não são harmoniosos. Uma das casas em que a árvore faz sombra se tornou lar de uma nova família, que está sendo rejeitada por todos da região. A menina que ali mora está triste e faz um desejo, ela quer ter amigos.

Todos os dias vejo gente perdida em devaneios, falando sozinha, abrindo um sorriso ou franzindo o cenho.

Em paralelo a dona das casas resolve que quer cortar Red, aproveitando que seus animais moradores somem no dia dos desejos e no seguinte devido à grande movimentação, alegando que a árvore que ali mora a séculos só dá prejuízo com suas raízes nos canos das casas que aluga.

As duas situações levam Red a quebrar uma regra das árvores: a de não falar com os seres humanos. Sim, elas possuem voz, e para realizar um desejo antes de se despedir de sua vida, ela irá contar uma história e interferir no destino dos seres humanos.

Eram tempos, como tantos outros, em que pessoas famintas e desesperadas se amontoavam em navios para vir para cá.

Recebi uma edição muito bonita da Árvore dos Desejos como mimo do aniversário do clube de assinatura de livro Intrínsecos. A capa que parece brilhar chamou a atenção da minha filha que pediu para ler, e como o livro tem uma pegada infantil e infanto-juvenil, pode ser entregue tranquilamente para uma criança de sete anos.

A história é uma fábula que mistura natureza, imigrantes, preconceitos, amizade e história familiar. Narrado em primeira pessoa pela árvore Red, misturando texto e ilustrações, deixando a história fácil e rápida de ler.

Em meio a toda a agitação do mundo à minha volta, eu continuava esperando pacientemente.

O livro é bonitinho, e salienta que quando os desejos vêm do coração, eles podem se realizar. Um livro infanto-juvenil que pode encantar pessoas de diferentes idades.


Árvore dos desejos
Wishtree
Katherine Applegate
Ilustrações: Charles Santoso
Tradução: Thaís Paiva
intrínseca
2017 - 215 páginas

terça-feira, 6 de outubro de 2020

O dia em que Selma sonhou com um ocapi

 


Sinopse: Todos os habitantes da pequena Westerwald, uma cidadezinha no interior da Alemanha, sabem que Selma tem um dom muito especial: quando ela sonha com um ocapi, é sinal de que alguém está prestes a morrer.

Selma já havia sonhado três vezes com um ocapi - um bicho com pernas de zebra, ancas de tapir, torso vermelho-ferrugem de girafa, olhos de cervo e orelhas de rato - e em todas as vezes alguém morreu. Assim toda a comunidade ficou em polvorosa por vinte quatro horas, alguns com medo e outros prontos para se despedir, já que eles estavam certos que alguém iria morrer, mas não se sabia quem.

Bastava alguém lhe dizer duas coisas que não tinham qualquer relação entre si para ele criar uma analogia.

Cartas cheias de sempre e nunca foram escritas, revelando verdades e segredos até então impronunciáveis, lotando a caixa de correspondência da cidade. Quando as vinte e quatro horas passaram, estavam todos vivos, e correram para buscar as declarações feitas em um momento de despedida, sepultando os pensamentos revelados antes da hora. Mas naquela vez a morte chegou com atraso, e leva quem eles menos esperavam. 

A história, dividida em três partes, é narrada por Luise, neta de Selma. E pela história acompanhamos a sua infância, início da vida adulta e o período dos seus trinta anos. Através dela conhecemos as histórias da pequena comunidade, começando com Selma, que ficou viúva muito cedo e está sempre atenda a todos. 

Evidentemente eu não sabia que não haveria um amanhã para comprar sapatos na capital.

Também conhecemos os pais de Louise, sua mãe é dona de uma floricultura e vive pensando se deve se separar ou não, questão que fica mais forte quando o seu marido, filho de Selma, resolve sair pelo mundo sozinho para conhecer diferentes culturas, aparecendo lá de vez enquanto, criando um abismo na relação.

Entre os amigos de Selma, há o oculista, que é apaixonado por ela e já iniciou várias cartas se declarando, mas nunca finalizou e muito menos entregou alguma. Tem também Elsbeth e suas soluções para os diferentes males, além de Palm que no momento de maior dor trocou a garrafa por uma bíblia. E por fim a triste Marlies, uma moça que passa os dias em casa de calcinha e pulôver e só sabe reclamar.

Selma sempre achava um transtorno excessivo pedir ajuda.

E por fim, o amor da vida de Luise, que entre tantos personagens comuns e ao mesmo tempo peculiares, não poderia ser algo que muitos chamariam de normal, sendo um monge que vive no Japão, ao qual ela troca cartas semanalmente.

A escritora alemã Mariana Leky utiliza-se do realismo fantástico para aproximar os seus leitores desta pequena comunidade, onde as relações são movidas pelo afeto, prevalecendo com o outro muito mais a gentileza e a preocupação do que qualquer outro sentimento mesquinho.

De todo modo, eu havia colocado um pé na fresta da porta.

Através de seus personagens ela nos conta uma história sobre a rotina de uma pequena comunidade, onde há perdas, mortes, dor, saudades, mas também muita vida e amor. E os eventos extraordinários só servem para fortalezes os laços dos que ali tudo compartilham, ensinam e aprendem.

Por algum motivo, que eu ainda não consegui decifrar, a história me causou um estranhamento bom. A minha leitura não foi rápida, pois eu tinha a impressão de ser transportada para dentro do livro, e me via pensando, respondendo e realizando novas perguntas aos personagens.

Durante muito tempo ninguém tinha pisado naquele lugar. Tanto tempo que o lugar no chão nem sabia o que era isso.

Quando terminei a última página, fiquei com saudades de todos. Cheguei a pensar em escrever uma carta usando o mesmo endereço do monge Frederik para ter notícia da comunidade. Mas concluí que era hora de me despedir em definitivo, antes que começasse a sonhar com ocapi ou a derrubar coisas também.


O dia em que Selma sonhou com um ocapi
Was man von hier aus sehen kann
Mariana Leky
Tradução: Claudia Abeling
TAG - Editora Planeta
2017 - 315 páginas

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

O Beijo da Mulher-Aranha



Sinopse: Considerado o melhor livro de Manuel Puig, O Beijo da Mulher-Aranha, publicado em 1976, é um pungente e sensível mergulho no relacionamento de um preso político, Valentin, com seu companheiro de cela homossexual, Molina, acusado de corromper menores. É a quarta publicação do escritor argentino e também seu momento de completa maturidade literária.

Em nossa última mudança de casa, minha mãe me repassou vários de seus livros, já que eu estava preparando um cantinho especial de leitura. Entre os exemplares, estava a edição do Círculo do Livro para O Beijo da Mulher-Aranha, do escritor argentino, que montou lar no Brasil, Manuel Puig.

Eu nunca havia lido a obra, nem olhado o filme, só tinha conhecimento de que era estrelado pela atriz Sonia Braga. Sem referências, embarquei na história que me transportou para uma cela em uma penitenciária na cidade de Buenos Aires no final dos anos de 1970.

Nota-se que ela tem algo estranho, que não é uma mulher como as outras.

A história começa com a forma como ambos os presos passam o tempo: com Molina contando filmes para Valentin. Com todos os detalhes, que vão da decoração do ambiente a descrição detalhada dos protagonistas, as histórias são um pré-sono em uma rotina que que apenas os dois dividem a cela. Estes filmes trazem recordações do mundo exterior, como amores esquecidos, assim como discussões, quando suas origens são questionáveis.

Valentin pertence a um grupo que contesta a política argentina, em meio a uma ditadura militar, tem cuidado com as palavras, pois teme entregar os seus companheiros. Ocupa os seus dias estudando e ouvindo as histórias de Molina, sendo muitas vezes grosseiro ou até mesmo esnobe com o seu colega de cela.

Eu não posso viver o momento, porque vivo em função de uma luta política, ou melhor, atividade política, digamos, entende?

Molina foi preso por andar com um menor, além de homossexual, ele se vê como uma mulher, muitas vezes utilizando termos femininos para se referir a si. Sua preocupação constante é com sua mãe, que não está bem de saúde e aguarda a revisão de sua pena para ter o filho de volta ao seu lado.

A mudança na relação entre estes dois personagens tão diferentes ocorre após ambos passarem mal com a refeição do presidio. Primeiro Molina, que aguenta as dores e encara tudo sozinho. E depois Valentin, que acaba recebendo todos os cuidados de Molina, que inclusive divide roupas de cama e os itens alimentícios que recebe da sua mãe para que ele possa melhorar. Este cuidado faz com que as reservas de Valentin caiam, e seu companheiro de cela ganha a sua confiança, já que ele tem muito medo de repassar informações indevidas.

Por sorte não tem luz e não tenho que olhar para tua cara.

Em um livro rápido, com uma escrita com ritmo de roteiro cinematográfico, Manuel Puig aproxima rapidamente o leitor de Molina e Valentin. Sem muito detalhes dos seus passados, é possível criar uma simpatia por suas atitudes atuais, e ficar curioso sobre o fim das histórias contadas, o que conforme o filme impulsiona a uma página a mais.

Sutilmente ele também nos conta as críticas ao governo argentino naquele momento, quando Valentin tenta explica a Molina a necessidade de lutar contra o que está acontecendo, havendo uma leve citação aos sindicatos, assim como participações pontuais do diretor do presídio.

Você pensa que sou mais burra do que sou.

O que pra mim foi desnecessário são as inúmeras notas sobre as teorias da homossexualidade que passam a aparecer quando a escolha sexual de Molina passa a ficar mais clara. Com citações que vão do pesquisador inglês D.J. West até Freud, que chegam a ocupar quase que uma página inteira em alguns momentos, abordam desde a origem física do homossexualismo, indo para análise não-científicas, psiquiatras e hereditárias. Aqui confesso que não li todas no detalhe, pois elas interveriam no fluxo da leitura, mas para quem acha interessante ver como o assunto era abordado no início dos anos 1980, talvez seja um complemento interessante.

Em relação a forma narrativa, ele é quase todo composto por diálogos, são poucos os momentos que entramos no fluxo de pensamento dos personagens, o que coloca um ritmo de leitura e pode fazer com que o leitor se sinta sentado na cela escutando os filmes. E aqui há um fato muito curioso, não há descrições da cela, sabemos o que está acontecendo apenas pelo que é dito entre Valentin e Molina, são suas conversas e silêncios que ditam a ação.

Porque ninguém tem o direito de explorar ninguém.

Gostei bastante da leitura, achei muito interessante a forma como a história é nos contada, deixando o leitor tão íntimo e tão distante ao mesmo tempo dos personagens. Ficando a curiosidade para em algum momento procurar pelo filme também.


O Beijo da Mulher-Aranha
El beso de la mujer araña
Manuel Puig
Tradução: Gloria Rodríguez
Circulo do Livro
1981 - 234 páginas


Outros livros com personagens LGBTQIA+ resenhados no blog:
Os Sete Maridos de Evelyn Hugo
Uma Casa no Fim do Mundo
Voragem
Morangos Mofados
Retorno a Brideshead
O Retrato de Dorian Gray
Onde andará Dulce Veiga
Só Garotos
Todo esse amor que inventamos para nós
Ponto Cardeal
Todos nós adorávamos caubóis