sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Sobre a Ficção - Conversas com romancistas



Sinopse: o jornalista Ricardo Viel, leitor voraz e apaixonado, fez várias perguntas a um time extraordinário de dez romancistas. O resultado são saborosíssimos diálogos sobre o fazer literário e o ofício da escrita.

No kit de junho da TAG Curadoria o mimo enviado para os leitores foi este ótimo livro de entrevistas chamado Sobre a Ficção. O critério de escolha, como o autor Ricardo Viel nos conta em sua introdução, é subjetivo, indo da admiração a um mínimo de relação para um bate papo onde as perguntas iam fluindo.

Rosa Monteiro

Não escolhemos o corpo que nos deram. Não escolhemos ser bonitos ou feios, saudáveis ou doentes.

A primeira entrevista é com Rosa Monteiro, que começa sobre a vida de jornalista, tem pergunta de terceiros, fala de tatuagem, ditadura, de vida e também muito de morte.

Através dos livros de Rosa, Ricardo faz ligações com a vida pessoal da escritora, como sentimentos e álter ego. Assim como da memória, quando cita A Louca da Casa e a mistura de realidade versus ficção.

Pois eu escrevo e leio para tentar dar ao mal e à dor um sentido que na verdade sei que não existe.

E naturalmente sobre o ato de escrever, onde entra a existência ou não de rotina, sua forma de trabalhar, assuntos essenciais e linhas comuns em seus livros. E qual o motivo de se ler e escrever.

Javier Cercas

O segundo entrevistado também é espanhol e autor de um livro que eu gostei muito, chamado Velocidade da Luz. Javier Cercas começa falando de suas mudanças de lugares e lembranças, e o quanto isso influenciou na sua decisão de ser escritor.

Não há ninguém plenamente satisfeito e acho que lemos justamente para obter, com a literatura, coisas que não podemos conseguir fora dela.

Existem paralelos entre a escrita e a insatisfação com a realidade, e também sobre experimentar sensações que no mundo real não podemos/devemos, chegando ao ponto de que a literatura também pode preparar um escritor para vivências futuras, como uma separação.

Na entrevista também é abordado a utilidade da terapia, a existência de boa e má literatura, onde a literatura que vai além do entretenimento pode mudar a vida de uma pessoa.

Cada livro é distinto, não tenho um sistema para escrever e também não quero ter.

Javier Cercas já foi professor universitário, então também é abordado o como conciliar e as diferenças destes dois mundos, a universidade como forma de se ganhar a vida para poder escrever.

Também é abordado uma das marcas registradas de Cercas, que é mostrar como a história foi construída, tornando o leitor mais próximo do protagonista. Outro ponto é sempre haver questões relacionada a ética ou moral. Assim como a mudança de seu olhar em relação ao passado.

Dulce Maria Cardoso

A terceira entrevistada é a escritora Dulce Maria Cardoso, que retorna a infância para falar sobre a criação de mundos paralelos como forma de entretenimento, até a guerra civil que atingiu Angola e mudou a sua vida.

Flannery O'Connor diz que quem sobrevive à infância tem matéria para o resto da vida. E eu concordo.

Dulce tem uma ótima memória, e ela comenta sobre o fato poder ser uma maldição, já que impede esquecimentos que tornariam algumas situações mais suportáveis.

Muito legal foi ver as formas como a escritora resolveu se preparar para entrar no mundo da literatura sem ter cursos na área, passando por curso de datilografia a pegar na biblioteca os livros mais pesados e com mais páginas. Ao mesmo tempo é curioso ver tamanho amor pelos livros ao crescer em uma família que não tinha livros em casa. 

Gosto de escrever, acho que é o que faço melhor, mas a escrita não é o centro da minha vida.

Da carreira de advogada até o primeiro prêmio literário que a permitiu publicar o primeiro livro, seguido de bolsas e outros prêmios, um mix de sorte e talento que nunca exigiram que ela tivesse que correr atrás de editor.

Dulce Maria tem como método de escrita apagar o livro quando finalizado e reescreve-lo, e a curiosidade neste caso é que Ricardo perdeu a primeira versão da entrevista realizada com a escritora, sendo necessário agendar uma segunda. Coincidências da vida.

Juan Gabriel Vásquez

Juan Gabriel Vásquez já quis ser jogador de futebol, mas um deslocamento de retina afastou o colombiano dos campos e os deixaram ao lado de seus amigos de infância: os livros.

Essa ideia de que os escritores são pessoas respeitáveis a quem se deve ouvir me foi passada.

O quarto entrevistado vem de uma família de leitores, também frequentou aulas de direito antes de mudar para as de literatura. Com o apoio da família ele seguiu o rumo dos seus modelos e foi para Paris, seu primeiro destino na Europa.

Ele conta sobre a angustia e desordem que sentia aos 26 anos, sobre finalmente entender que poderia escrever sobre o seu país de origem e seu tempo como tradutor. Sobre o curioso fato de ser extremamente organizado para planejar a vida para permitir que a sua literatura tenha desordem.

Porque é assim mesmo, a cada página vem a angústia de não saber o que é aquilo que estou fazendo.

Vásquez tem suas próprias manias, como usar no computador a mesma configuração de letra e tamanho de página que terá o livro impresso. De ficar três horas olhando para o teto antes de escrever uma página. O uso de um momento real que ele acrescenta toda uma vida inventada.

O entrevistador também aborda temas como destino, ética e moral, nestas últimas duas fazendo link com Javier Cercas, que é amigo de Vásquez, ao qual Ricardo considera as duas formas de pensamento muito parecidas. 

Escrever permite um grau de empatia que acho que não existe em nenhuma outra atividade humana.

Mas o que me chamou a atenção foi a parte final, Vásquez enxerga na literatura uma forma de exploração e compreensão do ser humano. Citando outros escritores, ele fala sobre os aprendizados que a leitura pode trazer, assim como decisões difíceis que precisamos tomar ao longo da vida.

Bernardo Carvalho

O quinto entrevistado é o brasileiro Bernardo Carvalho. O escritor que já foi crítico de cinema e jornalista, conta que nos primeiros anos de vida não era um grande leitor, sua primeira opção era dirigir filmes, mas sua não aceitação em um curso em Paris resultaram em esboços de romance.

Na conversa ele fala sobre a literatura brasileira nos tempos atuais, os escritores contemporâneos e a importância de ela crescer e ter diferentes perfis de escrita. Da necessidade de o leitor brasileiro aceitar que seus compatriotas tenham como cenários outros países e sejam aceitos como os americanos são.

É uma espécie de fantasia que tenho, mas que é assim: quanto mais bonito eu fizer literatura, mais longe da verdade vou ficar.

E estes outros lugares trazem a necessidade que Carvalho já teve de viajar para sair de sua zona de conforto, participando inclusive de um projeto onde foi para São Petersburgo escrever um livro sobre encomenda.

Carvalho quer provocar o leitor, despertando sentimentos como desilusão, reflexão, alargando o seu mundo. Curiosamente ele já esteve envolvido em uma polêmica na FLIP 2016, quando disse não pensar no leitor, isto é, não se fixa nas demandas do mercado, o que seria um estreitamento da literatura em entregar sempre o que está sendo esperado.

Tem a coisa da rapidez, você lê e não tem tempo de entendimento, é um negócio que você supõe que leu, mas não leu.

E este ponto leva a outro ponto muito interessante, o fato de a internet levar as pessoas a só lerem o que está de acordo com os seus pensamentos, tornando-as agressivas quando se deparam com o diferente. E o impacto disso no negócio do livro é a publicação de apenas escritores que irão retornar dinheiro, provocando a exclusão de outros.

Valter Hugo Mãe

O sexto entrevistado é Valter Hugo Mãe. Aqui se fala sobre homenagens, o cansaço de apresentar um livro para quem prefere o ato de escrever, do isolamento desejado para criar um livro.

Valter Hugo também faz críticas ao seu primeiro livro publicado, a falta de paciência da juventude em colocar uma obra sua no mercado e retorna a sua infância, em uma família que não possuía o hábito de ler.

Quando de repente alcançamos um sonho também já chegamos a um pesadelo qualquer, por isso à medida que realizamos os sonhos também realizamos os pesadelos.

Classificando a infância como triste, a crença que tudo demorava e de que não havia com quem compartilhar nada. Sendo a literatura um refúgio, com existências mais profundas e personagens com quem ele gostaria de dialogar.

Logo Ricardo explora o estilo do autor, que ainda traz um pouco de um hábito infantil de colecionar palavras, o uso da memória para transformar histórias em literatura. Do sentimento de fracasso da adolescência as dores da idade, como não poderia deixar de ser, as fases da vida de um escritor assim como a sua escrita estão irremediavelmente ligadas.

Mia Couto

Então chegamos ao sétimo entrevistado, um autor que eu adoro: Mia Couto. Curiosamente, mesmo lendo palavras, parecia que eu sentia a sua calma respondendo sobre Moçambique, a sua família, a saída de Portugal por motivos políticos, a criação de raízes em um lugar que se escolheu.

Acho que encontrei em Moçambique essa família que eu andava à procura.

Da busca pela língua portuguesa, passando por traços autobiográficos em suas obras, ao uso da literatura como forma de expressão, está tudo lá, em respostas completas, que me permitiram admirar ainda mais a personalidade deste escritor.

Além disso a poesia, música, o primeiro romance Terra sonâmbula e a sua relação com uma guerra que durou dezesseis anos e levou muitas pessoas conhecidas.

Comecei a escrever em 1990 e foi o único livro que escrevi de maneira sofrida, porque era uma resposta a um momento de desumanização profunda que já me atingia também.

Mia Couto também fala da sua relação com a escrita, as várias vidas que a literatura lhe deu, questões de fé, vida e morte, e o conjunto que os seus livros parecem formar devido algumas recorrências.

Milton Hatoum

A primeira imagem que temos de Milton Hatoum é de paciência e um toque metódico quando Ricardo descreve a forma como monta o seu cigarro.

O oitavo escritor entrevistado tem como fato marcante na sua vida a saída de Manaus aos 15 anos, o seu interesse por arquitetura e a importância de um tio que lhe apresentou diferentes livros. 

A distância temporal é importante, para dar também espaço para a invenção.

Entre a sua escrita e vivência em outras cidades do mundo ele conta sobre pessoas que conheceu e contribuíram com a sua forma de escrita, assim como o seu trabalho como tradutor e a sua decisão em virar escritor.

Hatoum não tem pressa em publicar, nem em escrever, considerando a paciência um exercício necessário para escrever romances. Assim como prefere exaltar outros livros e escritores durante a apresentação dos próprios livros.

Nós não temos nenhuma razão para sentir complexo de inferioridade, temos João Cabral, Drummond, Bandeira, Murilo Mendes, nós temos grandes poetas e ficcionistas.

Tatiana Salem Levy

A nona entrevistada teve Luiz Ruffato como padrinho e a sua tese de doutorado foi a sua primeira publicação. Tatiana Salem Levy nasceu em Portugal durante o exilio dos pais no período da ditadura brasileira, na vida adulta ela viveu na França e nos Estados Unidos, para depois se tornar escritora de romances, contos, crônicas, peças de teatro e livros infantis.

Na entrevista ela conta a influência das histórias familiares na escrita do primeiro romance, a questão da ditadura, e os seus livros em si.

A história da maneira como comecei a publicar, por exemplo, para mim é o acaso.

Na conversa também é abordado a sua desilusão com o Brasil, país que não tem mais vontade de voltar a morar, da saudade da sua terra que foi embora após as eleições de 2018, sobre se posicionar politicamente em colunas, mas não em seus romances.

Djaimilia Pereira de Almeida

O livro encerra com a entrevista de Djaimilia Pereira de Almeida. Em sua casa, diferentes objetos que ela usa para serem usados por seus personagens, tornando a ficção ainda mais real.

A escritora conta a Ricardo o fato de não gostar de fazer o lançamento de seus livros, sua relação com o mundo virtual e o saldo que deu para atender o seu desejo por escrever.

Estava acostumada a ler livros, mas não estava habituada a ler comentadores de livros, não sabia muito bem o que era crítica literária.

Também é abordado a forma de escrita, onde vai da solidão a mesa de jantar dividida com as tias. Sua carreira acadêmica e o encontro com um novo mundo, e o seu desinteresse em discutir os próprios livros. Além da preocupação de como são transcritas as suas entrevistas, para ver se foi entendida.

Há também a questão da mulher negra, onde ela fala da raridade de encontrar alguém com o cabelo natural na sua adolescência, que deu origem ao seu romance Esse cabelo. Também fala em cultura, origens e os inúmeros questionamentos que ela se fez ao chegar aos trinta anos.

Acho que há uma progressão no que tu vais fazendo, vais aprendendo a fazer coisas, vais ganhando mão e capacidade que não tinhas.

A entrevista também aborda as diferentes formas narrativas, que acompanham a própria evolução. Assim como a importância da música e do rádio durante o seu processo de escrita. 

Realizadas entre o ano de 2015 e 2020, é interessante que a primeira página tem a visão do entrevistador sobre o entrevistado, além de um breve resumo sobre a pessoa e o local onde a conversa foi realizada.

Curiosamente, apesar de haverem perguntas bases, cada entrevistado tem um direcionamento, uns são mais pessoais, outros mais acadêmicos. Tem também os sentimentais, os políticos e os que tem uma pitada mais narcisista, mas sem exceção, todos extremamente interessantes.

E com isso o leitor conhece um pouco mais da motivação que levou estes dez escritores a escolherem a literatura como profissão, quem são as suas referências, e um pouquinho de suas histórias pessoais.

Um livro para quem pensa em escrever, para quem curte um bate-papo ou pela simples curiosidade de saber mais sobre escritores que se admira.

Sobre a Ficção - Conversas com romancistas
Ricardo Viel
TAG - Companhia das Letras
2020 - 161 páginas

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