terça-feira, 30 de março de 2021

A Lista de Convidados



Sinopse: Um evento planejado especialmente para celebrar o amor e a união ao lado de pessoas queridas vira palco de um crime sanguinário. Neste casamento mortal, a noiva é Jules, a elegante e bem-sucedida editora da The Download, uma sofisticada revista on-line de design e lifestyle, criada por ela mesma como um blog dois anos antes; e o noivo é Will, o destemido participante de um reality show de sobrevivência que ilumina a todos com sua beleza resplandecente. A estética do casal é perfeita - as condições do matrimônio, nem tanto.

A edição 029 do clube intrínsecos trouxe em fevereiro o suspense da inglesa Lucy Foley, cuja inspiração veio após ver a ilha irlandesa de Inishbofin combinada com a decepção de sua mãe de ela não ter feito uma festa grandiosa de casamento. O mimo foi um jogo de investigação literária.

Jules é uma mulher que gosta de lançar tendências e ser admirada. São pré-requisitos para suprir as complexidades que a acompanham desde cedo, como a falta de amor dos seus pais, os ciúmes da relação da sua mãe com sua meia-irmã caçula e o fato de ter sido gordinha na adolescência.


É impossível ver onde estão as pessoas ou escutar o que dizem: além das vozes dos convidados, um vendaval começa a uivar.


Will é o noivo perfeito, bonito, carismático, atencioso com os que estão à sua volta. E assim ela não pensa duas vezes em se casar com ele, apesar dos poucos meses de namoro e por consequência de pouco conhece-lo. O sexo é bom, e os dois juntos possuem uma aparência dívida, e isso basta.

Querendo inovar, ela contrata os serviços de Aoife, uma cerimonialista séria e cuidadosa, que ao apresentar um orçamento bastante baixo a convence a fazer o seu casamento na fictícia ilha de Cormorant, um lugar cercado de lendas e desabitado até o momento, onde o retorno financeiro viria por meio de divulgação da sua empresa pela revista de Jules.


Mas não importa o que aconteça, a vida não passa de uma sucessão de dias, dos quais controlamos no máximo um por vez.


O acesso a ilha é feito de barco, e por ali chegam os outros convidados, como Hanna, Olivia e Johnno, que também compartilham suas vozes e pensamentos.

Hanna só está ali por ser esposa de Charlie, padrinho e melhor amigo da noiva. Acostumada com uma vida bem mais simples, o grupo que encontra é muito diferente, as conversas e bebidas trazem à tona não apenas as dúvidas que ela tem sobre o relacionamento do marido com a noiva, mas também em relação a uma perda que ainda lhe é dolorosa.


Mas só depois que eu já tinha começado a meio que odiar aquela garotinha por tudo o que ela nem sabia que tinha.


Falando em dor, temos Olivia, a irmã e madrinha da noiva. Sua postura perdida em pensamentos, assim como os seus olhos, indicam um grande sofrimento, que é ignorado pela irmã egoísta, que não nota os atos de mutilação nem quando vê a irmã sem roupa. 

Já Johnno é o padrinho do noivo, amigos desde o tempo que se conheceram em uma escola interna para meninos. Junto com outros ex-colegas, formam um grupo barulhento, de modos nada educados, que invocam antigas brincadeiras que podem ser um tanto assustadoras para os demais.


Porém, olhando essas casas desertas, caindo aos pedaços, com as janelas vazias, é difícil não sentir que coisas ruins aconteceram aqui.


A autora utiliza duas formas narrativas para marcar o tempo dos fatos. Em terceira pessoa abrindo o início da história está o Agora, quando em meio a falta de luz e temporal que atingem a festa de casamento uma pessoa encontra um corpo.

Em primeira pessoa estão os noivos, a cerimonialista e parte dos convidados, em um revezamento da narrativa dos fatos que cobrem da véspera da festa até momentos antes da descoberta de um possível assassinato, o que permite acompanhar a mesma cena por diferentes olhares.


Mas sinto como se alguma coisa rastejasse por toda a minha pele, um milhão de baratas na cama comigo.


Conforme eles vão revelando suas histórias, fica claro que cada um tem os seus próprios fantasmas, e a forma como cada um lida com os acontecimentos passados parece ser potencializado pelo clima misterioso da ilha.

Até a página 200 do livro, confesso que eu literaturei a história, que é recheada de clichês, mas saber se eu havia acertado as circunstâncias, o assassino e o corpo me motivaram a continuar.


Eu diria que falta neles a inocência infantil: mas alguns meninos nunca foram realmente inocentes.


Na etapa final, com capítulos mais curtos e diretos, a narrativa ganha um ritmo rápido, como se quisesse testar o fôlego do leitor, e assim os segredos são revelados, mas o final foi menos impactante do que eu já havia imaginado. 

Para quem ficou curioso, acertei quase todas as circunstâncias, acertei a quem pertencia o corpo, mas errei o assassino.

Vale a pena a leitura? Se você curte livros no estilo quebra-cabeça, de leitura rápida, e quer algo leve, tem grandes chances de você gostar e muito de A Lista de Convidados. Se você procura algo que não seja superficial, que os personagens provoquem empatia ou o vilão tenha algo que te faça amar odiá-lo, talvez você acabe compartilhando os meus sentimentos pós leitura.

Mas para ter certeza, só lendo.


A Lista de Convidados
The guest list
Lucy Foley
Tradução: Maria Carmelita Dias
Intrínseca
2020 - 301 páginas


quinta-feira, 25 de março de 2021

Sula

 


Sinopse: Neste brilhante romance de Toni Morrison, acompanhamos a história de Nel Wright e Sula Peace - mulheres que se conheceram quando crianças na pequena cidade de Medallion, Ohio. Nel cresce e se torna um pilar para a comunidade negra da cidade, mas Sula se transforma em uma pária. Contudo, as amigas permanecem ligadas por um terrível segredo do passado. Cheio de vigor, Sula é um livro impactante sobre a amizade entre duas mulheres e a pressão que a sociedade exerce sobre o desejo feminino. Uma das principais obras de Toni Morrison, traz toda a maestria da primeira escritora negra a ganhar o prêmio Nobel de literatura.

No mês de fevereiro a TAG Curadoria fez um repeteco de curadora e autora. Tendo novamente Evaristo Conceição para fazer a sua indicação, depois de O Olho Mais Azul, ela recomenda Sula, outro livro da escritora americana Toni Morrison. O mimo foi um jogo americano de duas peças.

No estado de Ohio, nas colinas acima da cidade no vale de Medallion, fica o Fundão. Local onde moram os negros da região.


Com a exceção da Segunda Guerra Mundial, nada nunca atrapalhou o Dia Nacional do Suicídio.


Entre os moradores, todos os tipos de pessoas, como Shadrack, que retornou da primeira guerra mundial e institucionalizou o dia 3 de janeiro como o Dia Nacional do Suicídio.

Ou como Helene, uma filha de prostituta criada pela avó na cidade de New Orleans, que ao se casar e se mudar para o fundão, assume o seu papel na sociedade local após ingressar na igreja negra mais conservadora.


Depois que as pessoas entenderam os limites e a natureza de sua loucura, conseguiram encaixá-lo, por assim dizer, no contexto mais geral.


Há também Eva Peace, dona da hospedaria, mora com os filhos, neto, hóspedes e crianças que adota. Muitas lendas envolvendo a perda de sua perna correm pela cidade, mas nada disso diminui a sua força.

Mas quem movimenta essa história, que inicia em 1919 e finaliza em 1965, são duas meninas aos quais acompanhamos o crescimento. Nel é filha de Helene, Sula é neta de Eva e filha de Hanna.


Uma mulher que vencia todas as batalhas sociais com o porte e a convicção quanto à legitimidade de sua autoridade.


Uma vem da ordem e organização, outra da confusão e liberdade, e isso as torna melhores amigas, em suas aventuras e desventuras, que vão dos primeiros desejos sexuais, a reação em frente à morte, até a forma como cada uma escolhe o seu caminho.

Usando o crescimento das duas meninas, Toni Morrison traz novamente a questão física, quando meninas tentam afinar os seus narizes com prendedores e mulheres alisam seus cabelos, até a forma como cada uma lida com a sua sexualidade.


Ali estava seu rosto, os olhos castanhos singelos, três tranças e o nariz que a mãe odiava.


Ao mesmo tempo quando Sula se torna mulher e assumi uma liberdade comparada ao de um homem branco no livro, onde suas escolhas vão conforme os seus desejos, não se importando se isso irá machucar os demais, ela muda todo o comportamento da sociedade do Fundão.

Quando as pessoas veem maldade em Sula, passam a fazer o seu melhor, seja na forma de cuidar os seus filhos, na relação com o seu parceiro, no trato com outras pessoas. Aparências que não revelam os seus verdadeiros sentimentos, devido à necessidade de se mostrar diferente de quem julgam.


Em sua lascívia, que a idade transformara em bondade, moviam os lábios como se para remexer o gosto de suor jovem na pele firme.


Sula é um livro relativamente curto, narrado em terceira pessoa, a escrita fluída da autora permite vivenciar rapidamente os acontecimentos juntos com os personagens, que são extremamente humanos, isto é, com suas qualidades e falhas.

O Fundão me remeteu as favelas do Rio, com suas comunidades fechadas e seus próprios segredos. E por isso nem todas as perguntas são respondidas ao leitor, deixando algumas respostas a cargo da imaginação. 


Depois que esse dia acabasse ela teria uma vida inteira para fazer barulho pela casa e consertar os estragos.


É curioso como Toni Morrison vai de questionamentos básicos da psicologia como a relação pais e filhos, ao abordar a diferença de amar e gostar, até a utilização de um leve toque de realismo mágico para acentuar as crenças entre os moradores.

A personagem Sula está claramente a frente de qualquer tempo, já que seria facilmente julgada nos dias de hoje. Ao mesmo tempo ela tem atitudes que me impediram de criar simpatia por ela.

Confesso que finalizei a leitura sem uma opinião formada, levando alguns dias para refletir sobre a história. Minha conclusão é que gostei, mas não tanto quanto havia gostado de O Olho Mais Azul.

Se recomendo a leitura? Com certeza! O livro traz um outro olhar sobre a sexualidade feminina, ponto que considero o mais forte da narrativa, de uma forma natural que pode proporcionar questionamentos ainda nos dias de hoje, mostrando mais uma vez que não evoluímos tanto assim.


Sula
Toni Morrison
Tradução: Débora Landsberg
TAG Curadoria - Companhia das Letras
1973 - 189 páginas

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terça-feira, 23 de março de 2021

Longo e Claro Rio

 


Sinopse: Duas irmãs cruzam as mesmas ruas, mas seus caminhos não poderiam ser mais opostos - até que uma delas desaparece.

No mês de Fevereiro/21 recebi pela minha assinatura da TAG Inéditos o livro Longo e Claro Rio da escritora norte-americana Liz Moore. O mimo foi um aromatizador de ambientes com cheiro de bambu.

A policial Michaela, mais conhecida por Mickey, faz a patrulha pelas ruas do bairro de Kensington na Filadélfia. O bairro da sua infância já foi uma área residencial próspera, cheio de belas casas  e famílias de comercial de margarina. Mas após passar por uma lenta degradação, virou ponto de encontro de opioides e prostitutas.


Alguém tão apavorado de ser chamado de pobre, fraco ou burro que nem sequer admite as próprias deficiências nesses quesitos.


A irmã de Mickey, Kasey, é uma dessas mulheres que vende o corpo para sustentar o vício. As duas não se falam, mas é silenciosamente que a policial toma conta da caçula, escolhendo um café estratégico para acompanhar a sua vida. Mas um dia ela some, e misteriosos assassinatos começam a ocorrer na região.

Utilizando a narrativa em primeira pessoa, Liz Moore nos coloca na cabeça e visão de Mickey, dividindo a história em agora e antes, proporcionando assim montar aos poucos o quebra-cabeça do contexto onde as duas irmãs estão inseridas. 


Sem a risada, sua ausência era perceptível, o silêncio na casa era ameaçador e estranho.


No agora temos uma Mickey tentando descobrir onde está a irmã, enquanto lida com um chefe que não gosta dela, um filho com quem precisa deixar com uma babá que não conhece direito devido ao fato do pai não ajudar, uma vizinha curiosa, o parceiro de ronda afastado após um ataque, e uma família que a trata com desconfiança devido a acontecimentos do passado.

Já no antes temos uma infância sem amor, uma mãe morta pelas drogas e um pai de paradeiro desconhecido, que fazem Mickey crer que talvez esteja morto também. Há também a avó seca e objetiva, onde os braços nunca estiveram abertos para consolar. Além de um vínculo entre irmãs que vai se distanciando com o tempo até ser quebrado de vez pelas drogas.


Se ela tivesse um parceiro nessas empreitadas, alguém para contribuir com um contracheque, alguém com quem prantear a morte da filha única, talvez a sua vida e a nossa tivessem sido melhores.


Liz Moore consegue abranger em uma história tensa e muito bem escrita várias situações vivenciadas pela protagonista, do machismo dentro da profissão de policial, da alienação parental, da dificuldade de criar laços com outras pessoas, das etapas do vício até a destruição física e psíquica de uma pessoa.

Como alavanca para tudo isso uma série de assassinatos, cuja autoria é um mistério, gerando aflição em Mickey a cada corpo descoberto, com o medo de ver ou ouvir o nome de Kacey. Ao mesmo tempo que ela corre contra o tempo em sua busca, ela também passa a entender um pouco mais as pessoas com as quais conviveu, tendo que administrar magoas e injustiças.


De vez em quando, penso ver minha irmã, mas acabo descobrindo que não é ela, que a pessoa na verdade não tem nada a ver com ela.


Como nem sempre tudo são flores, o que me incomodou um pouco durante a leitura foi a fonte utilizada na edição. As letrinhas pequenas não foram de todo agradáveis para ler ao anoitecer. 

De modo geral, gostei bastante da história, que foge dos clichês, desde a escolha da personagem principal até da forma como aborda cada assunto, onde o detalhe das cenas nos traz um realismo impressionante de cada local e fato descrito. 


Toda manhã traz consigo uma possibilidade de mudança, e toda noite a vergonha do fracasso.


Então sim, fica a dica de uma leitura válida para quem gosta de um policial, para quem gosta de histórias com bases reais - a epidemia de opioides não é ficção nos Estados Unidos - ou para quem simplesmente gosta de ler um bom livro.


Longo e Claro Rio
Long Bright River
Liz Moore
Tradução: Fernanda Abreu
TAG Inéditos - Trama
2020 - 351 páginas

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terça-feira, 16 de março de 2021

Herdeiras do Mar


Sinopse: A história comovente e desconhecida das mulheres coreanas na segunda guerra mundial ganha vida neste romance épico, profundo e sensível sobre duas irmãs e um amor capaz de atravessar gerações.

Quando li Pachinko, conheci um pouco da história de quem fugiu da Coreia, em Herdeiras do Mar, descobri a triste história das mulheres que ficaram.

Hana nasceu durante a ocupação japonesa na ilha de Jeju, na escola não teve permissão para aprender sobre a história e cultura do seu país, sendo alfabetizada pela língua do invasor. Filha de um pescador e de haenyeo, ela fica muito feliz ao se tornar responsável pela sua irmãzinha Emi.


Ela é uma cidadã de segunda classe em seu próprio país, com direitos de segunda classe, mas isso não diminui seu orgulho em ser coreana.


Desde cedo as meninas aprendem a admirar o trabalho de sua mãe, uma mulher do mar, que conforme uma tradição de séculos, trabalham por conta própria ao realizarem mergulho marinho sem nenhum equipamento, apenas com o próprio fôlego, sendo muitas responsáveis pelo sustento da família.

E é justamente na sua adolescência, ao sair do mar ao qual realizava sua pesca, que ela vê a irmã de apenas 9 anos correndo perigo com a aproximação de soldados japoneses. Em desespero ela sai correndo d'água, a tempo de salva-la, mas isso custa a sua captura e por consequência a sobrevivência em um verdadeiro inferno.


Quando era mais nova, ela também teria pensado duas vezes antes de deixar sua cama quente para mergulhar nas águas geladas, mas a idade tinha lhe deixado mais forte.


Retirada de sua ilha, ela é jogada em uma casa com outras mulheres na Manchúria. A tarefa delas é prestarem consolo aos bravos soldados do imperador, que fazem filas todos os dias, sem deixar as moças com nomes de flor em paz, sugando suas alma e deixando apenas corpos magros e machucados ao anoitecer.

Não bastasse a violência sexual, Hana ainda precisa lidar com a paixonite de Morimoto, o homem responsável pela sua captura e que a jogou no bordel, e que concentra todos os seus sentimentos de ódio e medo.


O medo é uma dor tangível pulsando através de seus membros como choques elétricos.


Nos tempos mais atuais temos Emi, que nos conta o que aconteceu na vida da família após o desaparecimento da irmã. De questões políticas a casamentos forçados, histórias são escondidas dos filhos, que muitas vezes não compreendem o comportamento dos seus pais.

Assim como Hana, Emi deixa Jeju, mas é pelas próprias pernas que ela vai a Seul. Durante a viagem lembranças do passado vão surgindo, mas elas realmente explodem quando Emi vê o rosto tão procurado na Estátua da Paz, durante uma mobilização das mulheres em frente à embaixada do Japão, ao qual elas pedem um pedido de desculpas formal.


Se ainda estão falando sobre nós, não vamos desaparecer.


Herdeiras do Mar é narrado em terceira pessoa e divide a visão dos leitores em dois tempos: 1943 acompanhando Hana e a transformação de sua vida de uma haenyeo para uma mulher de consolo, um eufemismo para estuprar milhares de meninas. E a visão de Emi em 2011, já velha e carregando toda uma carga de história que sobrecarregam o seu coração. De bônus aprendemos mais sobre as mulheres do mar, uma profissão de poucas e com forte representação cultural.

A escritora Mary Lynn Brancht nos captura em sua história, de forma que é impossível não se sentir impotente por não poder livrar as dores das personagens, que na verdade representam muitas mulheres reais, pois sim, a base desta narrativa não tem nada de ficção.


Familiares assassinados, mortos de fome, sequestrados, vizinhos se voltando uns contra os outros - tudo isso era o seu han, uma palavra que todo coreano conhecia e um fardo que cada um guardava consigo.


Não raro o leitor pode sentir lágrimas em seus olhos, ou ser inundado por um sentimento de injustiça com o que sofreram meninas, jovens e mulheres coreanas. Ao mesmo tempo em que se admira a força das haenyeos, que está representado em cada dia de sobrevivência da personagem Hana.

E como os acontecimentos, a leitura da história é contraditória, ao mesmo tempo que ela me revoltava e angustiava, gerando um peso no peito como se eu estivesse mergulhando nas águas geladas, por outro me fazia virar mais uma página em uma busca esperançosa por um destino melhor. 

Um livro para ler e reler, e lutar para que isso nunca mais se repita. O corpo feminino não é troféu, consolo ou qualquer outra coisa dos senhores da guerra. E todas as nações deveriam se envergonhar profundamente da ação de seus homens no passado, para que os novos não as repitam no futuro.


Herdeiras do Mar
White Chrysanthemum
Mary Lynn Bracht
Tradução: Julia de Souza
TAG Inéditos - Paralela
2018 - 303 páginas


terça-feira, 9 de março de 2021

Em águas profundas


Sinopse: Para evitar o divórcio, Vic concorda que Melinda tenha quantos amantes quiser. Mas, na tentativa de afugentar os casos da mulher, passa a se dizer responsável pelo assassinato de um deles. Até que a situação foge do controle.

Vic é um homem comum, conhecido pela sua calma, paciência e simpatia. Dono de uma pequena editora que produz livros artesanalmente e não dá lucro, ele vive de dinheiro herdado, o que lhe permite uma vida bastante confortável. Ele mora na cidade de Little Wesley, onde vive junto a amigos em um estilo interiorano, onde quase todos se conhecem, ao mesmo tempo estando bastante próximo de Nova York e de todas as suas facilidades. 


Era a boca que tornava seu rosto ambíguo - já que também dava para ler nele certa amargura - porque os olhos azuis, largos, inteligentes e previsíveis, não davam nenhuma pista do que ele estava pensando ou sentindo.


Casado com Melinda, eles têm uma filha, Beatrice. Seria o retrato típico da família feliz, se não fosse os pequenos detalhes. O casal dorme em quartos separados, a pequena Trixie é mimada pelo pai e ignorada pela mãe, e Melinda não esconde os seus casos de ninguém, tratando Vic como se ele fosse mais um empregado do que um marido, embora dependa totalmente dele financeiramente.

Como Melinda sempre pede aos anfitriões das festas para as quais o casal é convidado a inclusão do seu amante do momento, Vic precisa aturar em todos os encontros conselhos do melhor amigo, olhares de pena das mulheres e muitos pratos e copos cheios, como se estes fossem uma forma de consolo.


Raramente via um sorriso em rostos estranhos, mas era tudo o que via entre seus amigos.


Cansado de tanta humilhação, um dia ele lembra de um ex-amante de Melinda, cuja morte ainda não foi solucionada, e tem uma ideia. Aproveitando um momento a sós com o mais recente amante da esposa, Vic mente ao se dizer responsável pelo homicídio, e logo a notícia se espalha pela cidade, fazendo com que o rapaz vá embora e Melinda não consiga se relacionar com ninguém. 

A paz de Vic acaba no dia em que o verdadeiro assassino é descoberto e noticiado em todos os jornais. Com isso Melinda retorna ao seu estilo de vida, mas uma chave já virou na cabeça de Vic, e agora a sua paciência com as humilhações cotidianas não é mais a mesma, e tudo depende de um senso de oportunidade.


Trixie já estava acostumada com a ausência da mãe em horários estranhos. Afinal, fora assim a maior parte de sua vida.


Utilizando a narrativa em terceira pessoa para acompanhar o cotidiano de Vic, Patricia Highsmith te leva a compreender de certa forma o que a convivência com Melinda desencadeia, ao mesmo tempo que levanta questionamentos do que leva a mulher ter determinadas atitudes. 

Em Águas Profundas se tem uma proximidade muito grande com Vic, mas não sabemos o motivo que leva Melinda a agir de uma forma aparentemente egoísta. Seu comportamento é reflexo de uma mulher imatura? É uma forma de ela chamar atenção? O que ocorre, e principalmente o que sente essa mulher é algo que desconhecemos totalmente.


Uma descarga de ódio reprimido: talvez fosse uma metáfora melhor do que a de desatar o nó.


Em um relacionamento doentio, a maior vítima deste mundo adulto é justamente a pequena Trixie, que assiste a tudo isso sem filtros, e ouve os comentários acerca dos seus pais pelas bocas de amigos e colegas. E assim ela cresce com uma visão distorcida, ao ver o pai como herói quando os amigos lhe perguntam se o mesmo é um assassino.

Em uma bonita edição da Intrínsecas, este clássico de 1957, que é totalmente atemporal e poderia acontecer em qualquer cidade, foi enviado como mimo no clube de assinaturas da mesma, como ação dos relançamentos da autora que serão feitos pela editora agora em 2021.


É uma doença mental caracterizada pela perda de contato com o meio em que se vive e pela dissolução da personalidade.


Eu, que nunca havia lido nada da Patricia Highsmith, apenas visto o filme baseado no livro O Talentoso Ripley, adorei o estilo de escrita, os sentimentos que ela desperta, o envolvimento que ela permite com os personagens, tornando a leitura instigante e ao mesmo tempo reflexiva.

Na sua narrativa existe morte, mas a força não está no assassinato, mas na psicologia de cada personagem, que podem nos fazer julgar, e até mesmo compreender quem está agindo da forma incorreta, embora fiquem algumas interrogações.

Para quem curte um bom suspense psicológico, a leitura é mais do que recomendada. O efeito colateral é a possibilidade de, assim como eu, ficar com vontade de ler mais livros da escritora.


Em Águas Profundas
Deep Water
Patricia Highsmith
Tradução: Roberto Muggiati
intrínseca
1957 - 299 páginas


terça-feira, 2 de março de 2021

A Família Mandible

 


Sinopse: Estamos em 2029, cem anos depois do crash da bolsa de Nova York, e a economia dos Estados Unidos desmorona outra vez. Potências estrangeiras se unem para elevar o custo do financiamento da dívida pública americana, o dólar perde seu valor e uma nova moeda internacional o substitui: o "bancor". A outrora superpotência se transforma em pária internacional, já que o governo se recusa a adotar a nova moeda, declara calote global e ainda confisca todas as reservas de ouro do país - incluindo as alianças dos cidadãos.

A Intrínsecos iniciou o ano de 2021 com uma distopia que não parece tão longe da nossa realidade. A Família Mandible da escritora Lionel Shriver foi o escolhido para a edição de janeiro, que teve como mimo um calendário e um planner - sim, se você leu as resenhas da minha assinatura da TAG já percebeu que estou com uma coleção.


Havia outras maneiras de provar que você não obedecia às ordens de nenhuma mulher (ligeiramente) mais velha sem ter que desperdiçar água.


Quando o ano de 2029 chega, os habitantes dos Estados Unidos ainda vivem as consequências de um ataque de hackers aos seus sistemas em 2024, conhecido como Idade da Pedra.

Mas a chegada de uma nova moeda formulada por outros países e as consequências de uma moratória americana mostram que 2024 foi muito mais tranquilo do que será 2029 e os anos que seguintes. Sendo mais específica, de 2029 a 2047.


Depois que os jornais foram quase todos extintos, o jornalismo impresso dera lugar a uma ralé de amadores que divulgava notícias não verificadas e sempre com fins ideológicos.


Para entender isso com diferentes olhares, passamos a conviver com os integrantes da Família Mandible. O bisavô é rico, Douglas herdou toda a riqueza da família e somente ele usufrui disso. Seus dois filhos são bem diferentes, Nollie vive na França após o sucesso de seu único best-seller e Carter vive na expectativa do pai morrer e ele finalmente aproveitar a vida com a herança que irá receber.

Carter é um jornalista aposentado, a esposa Jayne tem um quarto silencioso após viver um trauma em 2024, eles possuem três filhos, Jarred que é solteiro e resolveu virar fazendeiro; Avery que é terapeuta, casada com o professor de economia Lowell, tem três filhos que estudam em escolas particulares e curtem uma vida muito confortável; e Florence, funcionária de um abrigo, é mãe solteira de Willing e casada com um americano descendente de mexicano.


Ainda querem ser reconhecidos por serem tolerantes, e não querem assumir que a pessoa só "tolera" aquilo que não consegue aceitar.


Quando ocorre o apocalipse econômico, os ricos que mantinham seus investimentos dentro dos Estados Unidos se tornam pobres. Logo o desemprego e a hiperinflação se tornam generalizada, e a família é obrigada a se unir literalmente como nunca ocorrerá antes.

Eu já havia lido Precisamos falar sobre o Kevin da Lionel Shriver, e sabia que o seu estilo direto, irônico e levemente debochado dão um toque de pavor no cotidiano, o que torna a leitura pesada e bastante reflexiva. Com A Família Mandible não é diferente.


Não tem nada a ver com "o mundo “nem com o rumo terrível que esse país tomou, e pelo qual todos nós vamos pagar.


Narrado em terceira pessoa, temos de falta d'água a discussões cheios de termos técnicos de economia, do estoque de produtos ao politicamente correto, a verdade é que quando o bicho pega, para boa parte da população não tem esquerda, centro ou direita, somente a pobreza.

Para quem é mais velho, invariavelmente irá lembrar da remarcação de preços da época do Sarney, ou do confisco das poupanças feitas durante o governo Collor. Para todos no momento atual, o estoque de papel higiênico feito no início da pandemia em 2020.


Se o governo pode fazer a gente dar tudo o que quiser, o que mais pode nos obrigar a dar?


Ao acompanhar a família, não enxergamos apenas os seus integrantes, mas também o seu redor. Quem consegue fugir quando tudo começa, quem se conservou em uma situação confortável, e o que acontece quando grande parte do país se torna miserável, quebrando a ilusão de quem acredita que ao tirar dos ricos tudo melhoraria.

Em uma população majoritariamente sem nada, não há comércio, não há saúde, não há teto, não há emprego, não há segurança, não há estudo, não há futuro, apenas migalhas do governo. E assim a única coisa que resta é sobreviver.


Estender a mão para um cumprimento era um sinal revelador de que você era um sem noção que vivia no passado.


Se existe uma luz no fim do túnel? Leia o livro e tire as próprias conclusões, a única coisa que sei após o fim da leitura é que foi impossível não refletir sobre o comportamento atual de pessoas e governos, e sentir um frio na espinha.


A Família Mandible
The Mandible: A Family, 2029-2047
Lionel Shriver
Tradução: Vera Ribeiro
intrínseca
2016 - 444 páginas