sábado, 29 de dezembro de 2018

Hoje eu venci o câncer



Sinopse: O jornalista, romancista e cronista David Coimbra se dedica aqui a provar que o otimismo e a vontade de viver podem ser uma prescrição eficiente no conjunto de medicamentos com que se enfrenta uma doença grave. Em primeiro lugar, não se deve nunca abdicar do direito de (con)viver com seus afetos e se dedicar aos bons amigos e à família; depois, é valorizar o dia a dia naquilo que ele tem de mais trivial, seja um nascer do sol ao lado do filho ou a singela aquarela de um poente tímido. Você pode estar em Porto Alegre, no Rio de Janeiro, em Dubai ou em Massachusetts, não importa. O essencial é viver o presente da melhor maneira possível, um dia após o outro, comemorando cada vitória.

Câncer é o nome dado a um conjunto de mais de 100 doenças que têm em comum o crescimento desordenado de células, que invadem tecidos e órgãos.

Dividindo-se rapidamente, estas células tendem a ser muito agressivas e incontroláveis, determinando a formação de tumores, que podem espalhar-se para outras regiões do corpo.

Os diferentes tipos de câncer correspondem aos vários tipos de células do corpo. Quando começam em tecidos epiteliais, como pele ou mucosas, são denominados carcinomas. Se o ponto de partida são os tecidos conjuntivos, como osso, músculo ou cartilagem, são chamados sarcomas.

Outras características que diferenciam os diversos tipos de câncer entre si são a velocidade de multiplicação das células e a capacidade de invadir tecidos e órgãos vizinhos ou distantes, conhecida como metástase.” Fonte: Inca 

Também conhecida como doença ruim, termo com o qual a própria avó do David chamava, o seu diagnóstico leva qualquer pessoa a nocaute. Durante muitos anos foi sinônimo de sentença de morte. Sua origem pode ser genética, pode ser por hábito, alteração do ambiente, local de trabalho ou apenas uma ironia do destino.

Quando descobri que ia morrer, decidi escrever esse livro.

O escritor e colunista David Coimbra conta a sua história em um livro rápido e envolvente, mas ao contrário do que o título possa induzir, não é sobre morte, mas sobre vida. Para quem o acompanha aqui no Sul do Brasil sabe que ele se mudou para Boston para ser cobaia em um tratamento que o faz vencer a cada dia esta doença tão temida. Mas ao contrário do que se possa imaginar, não é um livro que deixara o leitor depressivo, mas sim, reflexivo.

Originalmente o livro foi iniciado para o filho de David, Bernardo, na época com 5 anos, para que ele tivesse recordações do pai, visto que o câncer do escritor estava em um estágio bastante agressivo. O mesmo foi adaptado conforme os meses se transformaram em anos, e o que lemos é vida, família, amizade e lealdade.

Você não é necessariamente culpado pelas coisas ruins que lhe acontecem, nem necessariamente merecedor das boas.

O livro é uma mistura de várias etapas da sua vida e colunas escritas para o jornal Zero Hora em dias especialmente marcantes para ele. É curioso ver que no mesmo dia em que David descobriu a doença que estava instalada em seu corpo a cerca de 10 anos ele escreveu a espirituosa coluna O que o homem gosta na mulher, em que ele finaliza com frases de belas mulheres, sendo talvez a que mais combine com o autor a da atriz Sharon Stone “O humor é uma forma de ser valente”.

Naturalmente existem momentos tristes, ali está descrito a dor a cada cirurgia, as reações do pequeno Bernardo, o baque de descobrir outro amigo com câncer, lembranças de um pai que o abandonou. Mas tudo equilibrado com a força de uma mãe guerreira, da esposa Marcinha, e dos amigos. E os amigos rendem os capítulos mais divertidos, dando a leveza e a valentia necessária ao se falar de um tabu.

Um dia bem vivido, sem dores físicas importantes, em que você agiu com correção e que termina em paz é um dia plenamente feliz.

Há também a questão da adaptação nos Estados Unidos, que vai da língua aos itens do dia-a-dia, do que parecia breve e se tornou permanente. E como ele correu atrás para participar de um programa de pesquisa, indo de um médico a outro em uma corrida contra o tempo.

E talvez este seja o grande mérito, ao juntar nas mesmas páginas humor, ironia, tristeza, abandono, superação, dor e saudade, a vida realmente pulsa. Não houve conformismo, apenas vontade de viver e ser feliz. 

Atualização 27/05/2022: é com muita tristeza que incluo esta nota na resenha, para dizer que David Coimbra resolveu no dia de hoje contar as suas histórias em outro lugar. Fica a saudade para os seus leitores, que como eu, admiravam a sua inteligência, humor, ironia, força, suas dicas de filmes e séries, sua gentileza ao autografar um livro.

Hoje Eu Venci o Câncer
David Coimbra
L&PM
2018 – 204 páginas 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Nada



Sinopse: Nada é um livro inesquecível. Escrito em 1944, quando a autora tinha apenas vinte e três anos, e vencedor da primeira edição do prêmio Nadal, é considerado uma das obras espanholas mais importantes do século XX. Segundo Mario Vargas Llosa, é um romance composto com maestria, e, para o New York Times, ainda hoje "o charme peculiar do livro continua inalterado". 

A cada nova viagem, seja física ou literária, mais tenho me encantado, ou melhor, me apaixonado pela história e cultura da Espanha, e com este livro, enviado em novembro de 2018 pela TAG Curadoria, não foi diferente.

Em Nada a autora Carmen Laforet, que escreveu este livro na juventude de seus 23 anos, me levou novamente para as ruas de Barcelona, agora após a guerra civil espanhola, o que me fez lembrar A Praça do Diamante da autora Mercê Rodoreda.

Era a primeira vez que viajava sozinha, mas não estava assustada; ao contrário, aquela profunda liberdade na noite me parecia uma aventura agradável e excitante.

Dividido em três partes, Nada conta a história de Andrea, uma moça de 18 anos órfã que sai da casa da família paterna para a casa da avó materna com o objetivo de estudar letras na Universidade de Barcelona.

Na primeira parte o leitor irá se deparar com a expectativa inicial, nas lembranças de Andrea uma casa limpa e estruturada, que logo é quebrada ao chegar no prédio da Rua Aribau.

Eu me sentia oprimida como sob um céu carregado de tempestade, mas pelo visto não era a única a sentir na garganta o gosto áspero da tensão nervosa.

O cenário é de empobrecimento, sua avó está fragilizada, o avô faleceu, sua tia Angustias a controla com mão de ferro e discursos moralistas, seu tio Juan e a esposa Gloria possuem um relacionamento doentio e um menino ao qual Andrea nunca diz o nome.

Um andar acima, como um marionetista vive o tio Román, um espião artista sedutor, que tem prazer em gerar confusões, assim como a sua empregada tem em assistir.

Segredo é para se guardar, não para sair espalhando por aí, muito menos para jogar um homem contra o outro.

A segunda parte é de descobertas, da liberdade de andar pelas ruas de uma Barcelona sombria, de amizades fugazes, da mistura de maturidade e inocência de uma menina-mulher cuidada e amada por ninguém.

O fechamento da história ocorre na terceira parte, que curiosamente é a que pode gerar maior estranhamento, visto que é possível detectar uma sutil mudança de escrita. Entre revelações que estão no limite da verossimilhança e uma morte misteriosa, a personagem encerra um ciclo em meio à loucura.

Recebia tapas nas costas, e eu, vermelha e tossindo até as lágrimas, não conseguia parar de rir; depois acabei chorando de verdade, angustiada, triste e vazia.

Escrito em 1944, durante o período da ditadura de Franco, o livro também possibilita uma interpretação política, onde os personagens representariam uma estrutura. Outra linha possível, que é bastante forte no texto, é em relação à própria guerra e seus efeitos. Como no momento em que Angustias justifica para Andrea o comportamento dos irmãos ao dizer que "depois da guerra, eles ficaram meio doentes dos nervos".

Outra vertente são as mulheres e seus papeis. Elas são várias na história, dos perfis tradicionais que abrem mão de suas vontades para atender a família, passando pela mãe católica que defende os filhos homens, até a jovem rica que testa o seu poder de sedução, chegando à esposa que apanha do marido por motivos gratuitos sem sair desta roda de violência e loucura.

Na verdade, eu pensava que ele realmente precisava de mim, que precisava mesmo conversar, como tinha dito.

Narrado em primeira pessoa, o aprofundamento só ocorre ao que interessa a Andrea, o leitor vive em mundos paralelos entre a fome da Rua Aribau e o luxo dos seus colegas de classe. Entre dores de cabeça e caminhadas, será possível passear pelo litoral, as apertadas ruas do bairro Gótico, a movimentação de La Rambla, enquanto tenta compreender o que é o nada.

Um livro intenso, aberto a interpretações que as experiências de vida do próprio leitor pode proporcionar. Um clássico de leitura rápida e inquietante.

Nada
Carmen Laforet
Tradução Rubia Prates Goldoni
TAG - Alfaguara
1945 - 279 páginas

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sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O Deserto dos Tártaros



Sinopse: Feliz por escapar da monotonia da academia militar, o jovem tenente Giovanni Drogo recebe com alegria a missão no forte Bastiani - para ele, a primeira etapa de uma carreira gloriosa. Embora não pretendesse ficar por muito tempo, o oficial de repente se dá conta de que os anos se passaram enquanto, quase sem perceber, ele e seus companheiros alimentavam a expectativa de uma invasão estrangeira que nunca acontece. A espera pelo inimigo transforma-se na espera por uma razão de viver, na renúncia da juventude e na mistura de fantasia e realidade. Publicado originalmente em 1940, O deserto dos tártaros marcou a consagração de Dino Buzzati entre os grandes escritores italianos e foi eleito pela crítica especializada um dos melhores livros do século XX.

Em outubro de 2018, o escritor Alejandro Zambra indicou para a TAG Curadoria um dos livros que mais mexeram comigo entre todas as leituras: O deserto dos tártaros do italiano Dino Buzzati.

Não é difícil se identificar com Giovani Drogo. Seu perfil reflete um ou vários dos comportamentos humanos de uma forma atemporal e metafórico. É o tipo de livro que poderia ganhar uma versão com análise psíquica, como ocorre com os contos antigos em Fadas no Divã.

Era aquele o dia esperado há anos, o começo de sua verdadeira vida.

Temos a escolha errada e o desejo que uma mudança a torne correta. Onde o forte militar Bastiani aparentemente representa fisicamente o desejo de sucesso e glória na profissão, para depois se tornar símbolo de todo o desgaste de quem fica parado enquanto o mundo segue a girar.

Nos deparamos com a desmotivação e o aceitar a rotina com o desleixo da juventude de quem não amadurece. Como uma antiga canção todo dia é igual: horário para levantar, horário para realizar as tarefas, até o futuro se tornar um horizonte sem perspectiva e a velhice chegar sem que se perceba.

Se precisasse ficar ali em cima por anos a fio, e naquele quarto, naquela cama solitária, devesse consumir sua juventude?

O tempo é um personagem onipresente quando os dias passam de forma rápida e enfadonha, sem momentos inesquecíveis para recordar, sem momentos que tornem os dias diferentes um do outro. O não viver enquanto se respira. Eu tenho tempo, eu sou jovem, amanhã eu faço quando o amanhã já chegou.

A questão do sentido da atividade executada, quando todo o brilho inicial se evapora e a utilidade é questionada, onde as ações são realizadas no automático. Eventualmente se busca algo para quebrar a monotonia, e quando as visões demonstram não ser verdadeira, só resta retornar a rotina com um tédio ainda maior.

O Natal já se dissolvia na distância, também o novo ano viera, trazendo aos homens, por alguns instantes, estranhas esperanças.

Mudando o olhar, o não fazer nada para mudar a realidade que faz o tempo escorrer pode ser uma forma de driblar a morte, personagem que aparece em alguns momentos, seja de forma estúpida, seja grandiosa ou até sutilmente. Como antigas histórias em que os personagens até tentam se esconder desta senhora, mas que mesmo disfarçados são levados junto a ela.  

Só que o perigo para o leitor está ao fechar a última página. Mesmo os mais incautos podem cair em uma reflexão pessoal, onde é impossível não olhar para o próprio passado e para a sua rotina, trazendo a tona perguntas que nem sempre estamos dispostos a enfrentar, e muito menos a responder. 

Nenhuma criatura, há muitos e muitos anos - a não ser algum corvo ou cobra -, aventurava-se por aquelas plagas.

Uma leitura cujos sentimentos estão muito mais relacionados com a forma como vivemos do que com o destino do personagem, já que na teoria todos queremos obter um tipo de realização.

Ironicamente a narrativa em terceira pessoa consegue ser leve, descrevendo os detalhes de forma a colocar o leitor dentro das paredes do forte sem ser cansativa. Os companheiros de Drogo podem ser semelhantes aos teus colegas e vizinhos.

Pela planície do norte abaixo alastra-se aquele inofensivo simulacro de exército, e no forte tudo se estagna de novo ao ritmo dos dias de sempre.

E para completar, o que tudo indica a história nada mais seria do que um retrato da insatisfação do próprio autor com o seu trabalho em um jornal, local ao qual esteve ligado até morrer. Então não, o livro não é sobre armas ou a vida militar, mas sobre a nossa guerra diária em lutar por aquilo que realmente queremos viver.

Será o livro a chave para abandonarmos o nosso forte Bastiani e lutarmos por nossos sonhos ao invés de esperar os nossos tártaros? Eis uma pergunta que cada um deverá responder.

O Deserto dos Tártaros
Il deserto dei tartai
Dino Buzzati
Tradução: Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade
TAG – Editora Nova Fronteira
1940 – 206 páginas


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sexta-feira, 9 de novembro de 2018

História da Menina Perdida



Sinopse: No último volume da série napolitana, Lenu e Lina caminham da maturidade para a velhice. Nesse percurso temos o resultado dos anos de embate que acompanhamos durante toda a tetralogia. Não houve nem haverá redenção. A violência do bairro, a dificuldade das relações familiares e da maternidade, a ausência do amor continuam em História da menina perdida. O relato da amizade tóxica de Lenu e Lina, que nos engole como um buraco negro, encerra do modo como prevíamos desde o primeiro livro: uma verdadeira obra de arte do nosso tempo.

Elena Ferrante encerra a sua série napolitana com o quarto romance intitulado História da Menina Perdida. Como em todos os volumes, o título nada mais é que uma referência a uma importante situação da narrativa.

Demorei um pouco mais de um mês para ler suas 476 páginas. Não, o livro não é tedioso. Não, o livro não é difícil. A verdade é que encerrar os laços com Lenu e Lila não foi fácil. Era como se eu fosse uma amiga invisível que nada podia fazer pelas duas, e após devorar três volumes ficava o medo de tudo evaporar como a própria Lila.

Ela procurou quase imediatamente entrar mais uma vez à força em minha vida, e eu a ignorei, a tolerei, a suportei.

Outro ponto para esta leitura bem mais lenta foi à releitura de passagens, como se tentando entender se era isso mesmo. Ou ao ver a Itália de ontem como um espelho do Brasil de hoje, talvez com um desalento ainda mais agudo, e uma memória igualmente curta. 

O crescimento, escolhas, amadurecimento e rumos de Lila e Lenu serviram de pano de fundo para descrever Nápoles e a própria Itália. De um bairro pobre pós-guerra, passando pela camorra, o uso dos computadores, intelectuais, sindicalistas, socialistas, terroristas, operação mãos-limpas, ataque às torres gêmeas, tudo descrito pelo olhar de duas mulheres tão diferentes, tão problemáticas, tão únicas, como todas são.

Falei de como tinha observado em minha mãe e nas outras mulheres, desde menina, os aspectos mais humilhantes da vida familiar, da maternidade, da sujeição aos homens.

A série napolitana não é um romance simples, ela é feminista sem ser extremista, ela é política sem ter partido, ela é violenta sem pingar litros de sangue, ela é honestidade e mentira, superação e inferiorização, perdas e ganhos, vida e morte.

Como uma ficha de orelhão antigo, a cada volume as engrenagens vão se encaixando devagarinho. Em dados momentos nos envolvemos tanto nesta amizade - ora considerada destrutiva, ora irmandade - que não nos damos conta do seu ambiente, até ele vir como uma bofetada e muitas vezes espelhar a nossa realidade.

Houve um deslocamento entre a pessoa que eu esperava encontrar e a que de fato topei em minha frente.

História da Menina Perdida narra o envelhecimento das personagens e as consequências das escolhas realizadas no terceiro livro. E o inesperado retorno para casa, sacramentando a volta do convívio das duas. Culpa e maternidade também acompanham esta última etapa, onde os papeis de mãe e filha vão se alternando. E mesmo tantos anos depois elas parecem manter os mesmos comportamentos: Lenu tentando se firmar e Lila sempre se transformando.

O último volume é o fim de muitas coisas para as duas, e também de descobertas e desilusões para Lenu. Suas dúvidas, fraquezas e complexos a tornam mais próximas do leitor, que acabam admirando Lila junto com ela. 

Querer bem corre paralelo a querer mal, e eu não consigo, não consigo me condensar em torno de nenhuma boa vontade.

Aliás, se Lila muitas vezes parece fazer mal a Lenu, por outro fica claro que a primeira é combustível da segunda mesmo quando esta agora se depara com a velhice no espelho. Se Lila muitas vezes derruba Lenu, ela também a levanta, em uma relação de extremos e segredos.

E a curiosidade sobre um livro que contasse a versão de Lila às vezes parece irresistível. Mas no mesmo momento a ideia parece inaceitável. Ao quebrar sua aura de mistério, que sentimentos vamos ter por ela?

Em geral aqueles momentos de hostilidade eram manifestos, mas às vezes também pressionavam sob uma aparência de disponibilidade e de afeto.

É uma série que ainda quero reler, talvez quando o gosto de saudade aliviar, ou quem sabe quando na cidade das personagens voltar. Apenas sei que Lila seria uma excelente guia para conhecer realmente a cidade de Nápoles.

História da Menina Perdida
Storia della bambina
Elena Ferrante
Tradução Maurício Santana Dias
Editora Globo – Biblioteca Azul
2014 – 476 páginas


segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Eu sei por que o pássaro canta na gaiola



Sinopse: Racismo. Abuso. Libertação. A vida de Marguerite Ann Johnson foi marcada por essas três palavras. A garota negra, criada no sul dos Estados Unidos por sua avó paterna, carregou consigo um enorme fardo, aliviado apenas pela literatura e por tudo aquilo que ela pôde lhe trazer: conforto por meio de palavras. Dessa forma, Maya, como era carinhosamente chamada, escreve para se libertar das grades que foram colocadas em sua vida. As lembranças dolorosas e as descobertas da autora são eternizadas nas páginas desta obra densa e completamente atual.

No kit de setembro/2018 a TAG Curadoria trouxe a escritora Conceição Evaristo para indicar aos associados a biografia da multifacetária Maya Angelou.

Todos têm uma história, alguns com momentos mais tristes, outros mais sentimentais, desafios que não podem ser mensurados, pois cada um sabe o peso que pode carregar. O grande desafio é justamente como contá-la.

E eis o grande mérito de Maya Angelou, com uma escrita leve e fluída ela leva o leitor para a sua infância, e como se fossemos o seu amigo invisível, entramos na sua vida e vivenciamos vários momentos, que vão da solidão, ao desrespeito até as risadas. Mas principalmente a todo o racismo que faz com que as pessoas sintam medo, sejam separadas ou simplesmente não atendidas.

Sua autobiografia inicia quando ela estava com três anos de idade, acompanhada com a sensação de abandono é deixada junto com o seu irmão mais velho Bailey para ser criada pela sua avó paterna. Momma é uma mulher forte, dona do mercado que atende aos negros na cidade de Stamps no Arkansas, mas que empresta dinheiro até mesmo aos brancos. O fervor religioso faz com que as crianças participem das missas e eventos. Entre as obrigações dos dois irmãos estava em ajudar no mercado e estudar. 

A seriedade de Momma a faz enfrentar sem dizer uma palavra às provocações das crianças brancas pobres, que mesmo vivendo em uma situação financeira inferior se julgam superior aos que possuem uma cor diferente da sua. Também a faz cobrar uma dívida de um dentista branco, que diz com todas as letras que não atende pessoas de cor. Mas ela também sente medo da ku klux klan e esconde o seu filho deficiente em um barril para que não o encontrem.

Quando tudo vira uma espécie de rotina o pai das crianças reaparece para leva-los de volta para a mãe. Entre a redescoberta materna e volta da confiança entre as duas, Maya é estuprada dentro de casa aos oito anos de idade pelo namorado da sua mãe. Um fato que lhe marca profundamente, fazendo-a carregar uma culpa que não é sua. E a deixa muda por um longo tempo, e nem mesmo o retorno à casa da avó Momma irão reestabelecer o seu desejo de se comunicar.

A violência sofrida causa um amadurecimento misturado à inocência. E são justamente os livros e a poesia que irão trazer Marguerite para fora de sua casca. Enquanto vive com complexos, dúvidas e mudanças, uma consciência de que pode ser o que quiser vai lhe dando força para desafiar aos que lhe dizem não.

Em alguns momentos a leitura dói, nos envergonha, e nos lembra de que para muitos a segregação não é um passado. A falsa superioridade está mais presente do que nunca. E mais uma vez, acompanhando as memórias infantis, fiquei pensando o que motiva o ser humano a tanta maldade.

O grande presente do livro para mim foi apresentar esta mulher fantástica, que apesar de tantas dúvidas desde cedo tomava as suas decisões e não desistia. Uma sobrevivente que lutou não só por ela e seu filho, mas por gerações futuras. O que me despertou a curiosidade por seus outros livros também autobiográficos.

Para quem ficou curioso com a beleza do título, ele é inspirado no poema abaixo:

"Sympathy
BY PAUL LAURENCE DUNBAR
I know what the caged bird feels, alas!
    When the sun is bright on the upland slopes;   
When the wind stirs soft through the springing grass,   
And the river flows like a stream of glass;
    When the first bird sings and the first bud opes,   
And the faint perfume from its chalice steals—
I know what the caged bird feels!

I know why the caged bird beats his wing
    Till its blood is red on the cruel bars;   
For he must fly back to his perch and cling   
When he fain would be on the bough a-swing;
    And a pain still throbs in the old, old scars   
And they pulse again with a keener sting—
I know why he beats his wing!

I know why the caged bird sings, ah me,
    When his wing is bruised and his bosom sore,—
When he beats his bars and he would be free;
It is not a carol of joy or glee,
    But a prayer that he sends from his heart’s deep core,   
But a plea, that upward to Heaven he flings—
I know why the caged bird sings!"

Eu sei por que o pássaro canta na gaiola
Maya Angelou
I know why the caged bird sings
Tradução Regiane Winarski
TAG – Astral Cultural
1969 – 333 páginas

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

História de Quem Foge e de Quem Fica - Série Napolitana



Atenção para quem não leu os dois primeiros volumes: há spoiler.

Sinopse: No terceiro volume da série napolitana, Lenu e Lila partem para os embates da vida adulta. Numa sequencia angustiante e sem espaço para a inocência de outrora, Elena Ferrante coloca o leitor no meio do turbilhão que se forma das amizades, das relações sociais e dos interesses individuais. História de quem foge e de quem fica é uma obra de arte a respeito do amor, da maternidade, da busca por justiça social e de como é transgressor ser mulher em um mundo comandado pelos homens.

Comecei a ler a série napolitana por curiosidade, gostei muito dos dois primeiros livros, mas fui realmente capturada no seu terceiro volume. E como um quebra-cabeça que está perto do final, consegui compreender a maestria de Elena Ferrante em trazer todo o universo feminino sendo representado por duas personagens tão ricas e similares as mulheres de qualquer época.

Elena começa falando do sucesso do seu livro, o primeiro encontro com Nino após a separação dele e de Lila, e a descoberta que seus amores e filhos pipocam sem que ele dê muita importância a eles.

Significava acima de tudo que no outono, ou no máximo no início do próximo ano, nós nos casaríamos e eu deixaria Nápoles.

Com o casamento marcado com um jovem professor de família influente, Elena retorna para casa e é chamada as pressas para cuidar de Lila, momento que vamos descobrir todo o sofrimento que ela passou após abandonar o marido e ser abandonada pelo amante. A beleza perdida em uma fábrica, a inteligência sempre afiada.

Se Elena move mundos e fundos para ajudar Lila, sua recompensa são olhares irônicos, comentários humilhantes e uma tentativa de lhe dar pouca importância por aqueles que já estimou. Nem Lila a defende, apesar de estar sendo salva pela amiga. Enquanto Elena foge determinada do local do seu passado, Lila volta para o bairro para um novo recomeço.

Lila notou como era fácil distinguir entre os rostos dos estudantes e os dos trabalhadores, a desenvoltura dos líderes e o balbucio dos gregários.

E é justamente após este encontro que tudo parece dar errado a Elena. Ao casar com um homem machista, tradicional e fraco perante outros homens, Pietro a trata como um ser inferior, não respeitando nem suas opiniões ou inteligência, subjugando-a como uma mulher de respostas prontas, mas sem conteúdo.

O pano de fundo é uma Itália em rebuliço, fascistas, terroristas, protesto de universitários e operários, e a Camorra ganhando força na cidade de Nápoles. Uma hora ou outra todos se vendem, todos tem o seu preço. E a morte não poupa lado.

E para quebrar minha cara você foi pedir autorização a meu marido?

Outro tema muito bem abordado é a maternidade, se no segundo livro temos uma Lila que tenta estimular o filho ao máximo, agora temos uma Elena que tenta administrar a culpa, vê toda a sua vida mudar, dando a visão mais realista de ser mãe. 

Há também o início do uso de tecnologias, que geram empregos com maiores rendimentos, e os movimentos feministas, que começam a questionar relacionamentos e empoderamento muito antes da palavra virar moda.

E por uns segundos tive a impressão de que Lila não me reconhecesse, mas visse diante de si um espírito que se aproveitava de sua fraqueza.

E para fechar um final que te faz ficar com vontade de iniciar o quarto volume quase que imediatamente, que pode provocar diferentes sentimentos nos leitores. A dúvida entre o despertar e a loucura persiste em minha mente. Assim como o medo de que não haverá final feliz para nenhuma das duas. De onde elas vêm, por mais que se afastem de tudo e de todos, isto não parece possível.

História de Quem Foge e de Quem Fica
Storia di chi fugge e di chi resta
Série Napolitana
Elena Ferrante
Tradução Maurício Santana Dias
Biblioteca Azul – Editora Globo
2013 – 415 páginas

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

A Promessa e A Pane



Sinopse: A promessa, primeiro título deste livro, é uma obra engenhosa, filosófica e paradoxal, que satiriza e reverencia o gênero policial de forma simultânea. Já a novela A pane revela o brilhantismo de Friedrich Dürrenmatt em elaborar debates teóricos ao mesmo tempo que presenteia o leitor com uma história tão cômica quanto original. Em ambas as obras, saltam aos olhos alguns dos temas que tornaram Dürrenmatt um dos maiores escritores suíços do século XX: a justiça, o dever moral, a responsabilidade e a absurda força do acaso.

Na edição de agosto a TAG uniu um romance e um conto do suíço Friedrich Durrenmatt. Em ambos o autor mexe com a imaginação do leitor, fazendo o mesmo idealizar diferentes caminhos para as histórias até ser impactado com o seu final.

No romance A Promessa temos um escritor do gênero policial sem nome que termina a sua palestra para um público não exatamente animado, pois na mesma cidade havia outra com Emil Staiger sobre o Goethe tardio. No hotel ele encontra o doutor H., um ex-comandante de polícia do cantão de Zurique que lhe oferece carona e ele aceita.

O silêncio no hotel era inumano; dormir, nem pensar, pois logo surgia o medo de nunca mais acordar.

No caminho doutor H. indaga a inverosimilhança das histórias policiais, onde tudo é organizado para que o detetive principal encontre a solução nas páginas finais. O que dificultaria a vida real dos policiais, já que as pistas dos crimes nem sempre possuem obviedade.

Para demonstrar como está certo, ele para em um posto de gasolina, onde o homem que está na bomba demonstra sinais de estar fora da realidade. Saindo do local se descobre que ele se chama Matthäi e era um tenente sênior que estava prestes a ir para a Jordânia no auge de sua carreira quando uma ligação mudou a sua vida.

Não tinha um bom pressentimento sobre aquele caso; de alguma forma, tudo tinha dado errado; eu só não sabia como, apenas sentia.

Uma garotinha assassinada, uma promessa feita sem querer aos pais da criança, a certeza de que o acusado não era o culpado o levam a abandonar tudo e partir para uma investigação própria. Descobrir o verdadeiro assassino vira a sua obsessão.

E neste momento o leitor passa páginas e páginas em dúvida sobre o que ocorreu, torcendo e se horrorizando, visto que é sabido o seu estado atual. Em um romance tipicamente policial um final feliz é quase certo para o seu detetive. Mas na obra de Friedrich ficamos na mão de uma suposta realidade.

Pois o que o assassino não ousa fazer com mulheres ele faz com meninas.

Já em A Pane temos o representante comercial Alfredo Traps que se vê com problemas no carro e a previsão de conserto somente para o outro dia. Ele possuí duas opções: pegar um trem e em 30 minutos estar junto à família, ou dormir na pequena cidade.

Ao optar pela segunda opção, Traps se depara com outro problema: todos os hotéis estão ocupados devido a um evento. Sua única solução é pedir abrigo em uma mansão onde vive um juiz aposentado. E neste momento você não sabe mais se está em uma história de comédia, terror ou reflexão da personalidade humana.

Existem, ainda, histórias possíveis, histórias para escritores?

Graças ao juiz e seus amigos aposentados somos apresentados à tertúlia, um tribunal com juiz, promotor, defensor e carrasco, onde o interrogatório é feito com boa comida e muitos vinhos de qualidade e o veredito final só é dado após a sobremesa.

Entre uma taça e outra a inocência irá se perder, e entre risadas e queijos, Traps irá analisar seus atos de outra forma. Deixando ele e o leitor em dúvida sobre o seu papel em várias situações da vida. O engraçado é que justamente por ele ser comumente malandro, o leitor pode ficar preocupado cada vez que ele abre a boca e dá argumentos ao promotor.

Nosso jogo é um tanto singular, talvez. Passamos a noite encenando nossas velhas profissões.

De presente está a primeira parte em A Pane, onde o autor começa questionando se ainda há historias possíveis para escritores, o que ele pode ou não produzir. A quem ele deve atender. Uma reflexão sobre a escrita e sobre a nossa sociedade.

Duas histórias muito bem escritas, que não apenas distraem, mas trazem as mais diversas reflexões.

A Promessa / A Pane
Das Versprechen / Die Panne
Friedrich Durrenmatt
Tradução Petê Rissatti e Marcelo Rondinelli
TAG - Editora Liberdade
1986 - 220 páginas

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Objetos Cortantes



Sinopse: Camille Preaker é repórter em Chigago e, a pedido de seu editor, Frank Curry, retorna a sua pequena cidade natal para investigar um mistério envolvendo a morte de uma menina e o desaparecimento de outra. Curry acredita se tratar de um caso de assassinatos em série que, com uma cobertura perspicaz, daria prestígio e destaque ao jornal. Hospedada na casa da família, Camille precisa reaprender a conviver com a mãe, o padrasto e a meia-irmã, além de lidar com as memórias difíceis de sua infância e adolescência que tanto quis esquecer.

Camille Preaker é uma jornalista medíocre, que trabalha em um jornal de menor expressão em Chicago e habita um local totalmente impessoal. Seu editor Frank Curry decide, por economia, envia-la para a sua cidade de origem Wind Gap no Missouri (hospedagem gratuita na casa da mamãe) e cobrir crimes envolvendo meninas, na esperança de um furo de reportagem alavancar as vendas.

Em uma cidade pequena os primeiros acusados são forasteiros. O testemunho de um menino cuja mãe luta contra um câncer é desacreditado. Em comum, duas meninas que fogem dos padrões comportamentais, são mortas sem sofrer violência sexual. A marca do assassino: arrancar todos os dentes de suas vítimas.

Eu não tinha animais de estimação com os quais me preocupar, nada de plantas para deixar com um vizinho.

No trajeto de ida de Camille o leitor já irá perceber que tudo o que ela não queria era retornar ao seu 'lar doce lar'. E neste momento fica claro que o livro está mais para um drama psicológico do que policial/suspense.

O título Objetos cortantes é a definição da própria personagem, que acaba de sair de uma clínica para tentar controlar o desejo de eternizar palavras em seu próprio corpo. Qualquer objeto afiado serve. E as palavras dizem muito sobre como ela se vê e o que deseja.

A casa estava perfeita, inclusive com as dezenas de tulipas cortadas em vasos no saguão de entrada.

Sua família é composta pela mãe, uma meia-irmã morta, uma meia-irmã adolescente e o padrasto. Ricos e fúteis, bem vistos e totalmente desequilibrados. Eles são o foco da história, as meninas apenas um espelho para Camille relembrar a sua própria infância e sair em busca de informações que justifiquem a falta de amor materno com a qual foi criada.

Primeiro livro que leio da autora Gillian Flynn, achei que a história tinha potencial, mas caiu no óbvio pela facilidade de saber quem é o assassino, nem mesmo as cenas de sexo conseguem dar tesão a história. No que se refere ao drama psicológico, não consegui criar uma conexão com a personagem, ela pipocava entre as páginas montando um quebra-cabeça de quarenta peças sem me conquistar.

Eu nunca pude ter nada só para mim. Elas não eram mais um segredo meu.

Não sei se a tradução brasileira ficou a desejar, visto que o livro é tão elogiado, ou se a forma foi para manter o estilo de escrita original, mas o fato é que não existe tensão. Os diálogos e as relações são superficiais, assim como as mortes. Não há expectativa, braços arrepiados, o desejo desesperado pela próxima página para saber mais.

Creio ter sido isso o que mais me chateou, a falta de impacto e empatia pelas personagens. Terminei a leitura na esperança de ser surpreendida, de um melhor uso de personagens como Adora. Mas obtive um desfecho rápido e até mesmo um tanto infantilizado.

Objetos Cortantes
Sharp Objects
Gillian Flynn
Tradução Alexandre Martins
Editora intrínseca
2006 – 254 páginas

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

História do novo sobrenome



Atenção: Esta resenha possuí spoiller, pois é difícil escrever sobre uma continuação sem citar algo do livro anterior, neste caso A Amiga Genial.

Sinopse: Neste segundo romance da chamada série napolitana, veremos suas duas protagonistas, Lila e Elena, crescerem, e com elas todas as dores e as delícias de sua juventude em meio a um mundo repleto de caminhos que se abrem enquanto portas se fecham - se a sabedoria, o crescimento e o amor são possibilidades, eles ocorrem em um cenário limitado por uma disposição social por vezes cruel. Neste maravilhoso romance de formação de duas meninas, certamente o leitor vai se surpreender ainda mais com as possibilidades do universo de Elena Ferrante - esse mundo árido, tenso, delicado, profundo e, sobretudo, humano.

O que Marcello Solara estava fazendo com os sapatos desenhados por Lila? A cena final do primeiro livro é a charada respondida no segundo: nada é como parece ser. No final da adolescência tudo muda conforme as nossas escolhas, e no caso de Lila e Elena, conforme os caminhos escolhidos mesmo em uma época onde as mulheres não possuíam tanto direito assim de ditar o seu.
Quando me pediu para jurar que nunca abriria aquela caixa, por motivo nenhum, jurei.
Lila se vende, literalmente, em um primeiro momento ao conforto e ao dinheiro. Seu castelo se revela de vidro ainda na festa de casamento, quando Stefano se mostra mais parecido com o pai do que se imaginava. A Sra. Carracci não é fácil, e nela temos a face mais fria de Lila. Sim, ela é inteligente. Sim, ela é manipuladora. Sim, ela usa a sua beleza. Mas também sofre pela falta de oportunidade de estudar, por tanto potencial não aproveitado. E assim ela agrada e humilha Elena, tentando mostrar toda a sua superioridade quando na verdade provavelmente ela trocaria tudo para estar no lugar da sua amiga. 

Esforçada e inteligente, com uma autoestima que precisa ser trabalhada com urgência, Elena supera as suas próprias expectativas, e mesmo quando incorpora Lila para espantar os seus medos, fica nítido que ela tem coragem para muito mais do que ela mesma imagina. Seu sentimento de inferioridade ainda lhe prejudica, lhe cega, e para acabar com isso só se afastando de todos. Aquele bairro, aquela família, aqueles amigos não são para ela. Eles a sufocam. Eles são sabem como lidar com ela. Ao mesmo tempo, ela é a esperança de uma presença feminina que não deixe que outro sobrenome assine suas conquistas.
Durante todo o tempo, mesmo quando falou da própria violência, valeu-se de um dialeto cheio de sentimentos, sem defesas, como o de certas canções.
As amigas se tornam contrapontos. Lila é a esposa que apanha, grita, controla e se submete. Elena é a estudiosa, cujo esforço vai abrindo mais portas do que o previsto. E o empurrão final para isto ocorre nas férias de verão, em que Lila paga para Elena lhe acompanhar, e esta sem imaginar o que aconteceria sugere a praia onde sabe que irá encontrar a presença de seu antigo amor: Nino. E estes dia de sol irão mexer com o que eles tem de melhor e pior.

Em paralelo, mas com menor ênfase, estão a ida de Enzo e Antônio para a guerra. Entre as meninas traições, fofocas e intrigas rolam soltas em um retrato claro da falta de unidade feminina para se defender dos desmandos machistas que se tornaram padrão dentro do seu meio. E o mais assustador, o fato da personagem Melina se tornar um espelho de algumas das mais novas quando estas descobrem a paixão.
Não sentia vergonha dela, jurei, mas escondi que temia me envergonhar.
O fato é que cada um entrará na vida adulta colhendo o resultado de suas escolhas anteriores. E na escrita fluída de Elena Ferrante é isto que faz desejar ler o terceiro volume da série.

Sobre a narrativa, no primeiro livro senti falta da versão da Lila para os fatos. Ela é uma personagem riquíssima, que desperta sentimentos conflitantes para quem convive com ela na ficção e para quem acompanha através da leitura. No segundo livro a autora usa um recurso para aliviar um pequeno percentual desta curiosidade, embora ainda insuficiente para mim.

História do Novo Sobrenome
Série Napolitana – Segundo Volume
Storia del nuovo cognome
Elena Ferrante
Tradução Maurício Santana Dias
Biblioteca Azul – Editora Globo
2011 – 471 páginas


Outros livros de Elena Ferrante resenhados no Blog:
A vida mentirosa dos adultos
Amiga Genial
História de Quem foge e de Quem fica
História da Menina Perdida

Dias de Abandono


quarta-feira, 15 de agosto de 2018

as últimas testemunhas



Sinopse: Zina Kossiak tinha oito anos quando a Segunda Guerra Mundial assolou a antiga União Soviética, e foi uma das muitas entrevistadas pela jornalista biolorrussa Svetlana Aleksiévitch, vencedora do prêmio Nobel de literatura de 2015. Ela conversou com vários sobreviventes que eram crianças durante a guerra e presenciaram horrores que nenhum ser humano jamais deveria experimentar. Os relatos francos desses indivíduos, adultos à época das entrevistas, mas nunca antes ouvidos, são a matéria dolorosa e potente deste livro colossal.


"Não gosto de lembrar...Não gosto. Em suma: não gosto..."

O livro de Svetlana Aleksiévitch foi o mais difícil de resenhar até hoje. As palavras viraram vozes e ainda soam em meus ouvidos. Sua tristeza, dolorosamente real, parece ter passado das páginas para os meus dedos e entrado na corrente sanguínea, deixando o coração apertado mesmo após virar a última página. 

"Eu já tenho 51 anos, tenho os meus filhos. Mesmo assim, eu quero a mamãe..."

As últimas testemunhas são entrevistas com sobreviventes da segunda guerra mundial feitas pela escritora e jornalista nascida em Stanislav, que ganhou o Nobel de literatura em 2015. Assim como ela, eles viviam na antiga União Soviética, com a diferença que eles viram os alemães invadirem suas cidades, suas casas e suas almas.

"Uma vez, na rua, encontrei um homem que parecia o papai. Passei muito tempo andando atrás dele. É que eu não vi o papai morto..."

O que estes relatos possuem de diferentes? O fato de durante este período eles serem crianças. São lembranças de sua não infância. De um dia acordar cheio de expectativa e de repente ver a brincadeira guerra se tornar real. Ou de quem nasceu no pós-guerra, como Svetlana, e mesmo assim teve a vida marcada por fatos não cicatrizados por seus sobreviventes.

"Tenho medo da felicidade. Sempre acho que logo mais ela vai acabar."

Para tornar a presença da autora invisível, as respostas se tornam relatos de tamanhos variáveis, conforme a dor de cada um permite lembrar e falar. Remexer no passado para estes adultos que tiveram uma etapa da vida pulada é mais do que difícil, muitos jamais assimilaram as perdas. As idades são variadas, assim como as experiências durante e após o período da segunda grande guerra. Podendo ser um fato isolado, ou do primeiro ao último dia de um período que deve ter parecido eterno.

"Não entendo o que são pessoas desconhecidas, porque eu e meu irmão crescemos entre pessoas desconhecidas."

Em comum a perda de um estilo de vida, o amadurecimento precoce, a fome, a proximidade da morte. O tipo de realidade difícil de imaginar para quem está na segurança de sua casa. 

"Boris de fato era nosso, porque haviam matado a mãe e o pai dele, e queriam jogá-lo no gueto."

Muitos relatos são semelhantes, pois as cidades de origem são as mesmas, parecendo que apenas os nomes mudaram. O que acentua a verdade do que é descrito, não há distorções, apenas páginas e páginas gritando que sim, todo aquele horror é real.

"Quando eu conto, mordo a mão até sangrar para não chorar..."

Para quem lê fica a falta de explicação para soldados perderem a sua humanidade e agirem como monstros. O uso da violência de forma gratuita, desproporcional e totalmente desnecessária. Seguido de um choque por saber que muitas pessoas ainda vivem isso, em guerras que damos pouca atenção por estarem distante de nós.

"Como morreu, se hoje não atiraram?"

E quando os soldados não os encontravam, uma outra guerra, esta invisível, aparecia para atormentar. Eram as doenças que se aproveitavam da fragilidade dos pequenos que passavam fome, frio e carência. 

"Vi o que não deve ser visto... O que o ser humano não deve ser."

Os que tiveram sorte ainda conseguiam ficar com a sua família, mas muitos ficaram sem rumo, sendo amparados por desconhecidos ou cedo virando voluntários de uma guerra que nem eles entendiam.

"Como sobrevivi se morri cem vezes?"

Complementando os relatos estão as fotos. Crianças em campos de concentração. Crianças sentadas em destroços. Deixando ainda mais nítido o recado de quem são as maiores vítimas de toda essa loucura.

"Na aldeia não sobrou nenhuma criança. Não havia com quem brincar na rua..."

Um livro para nos tirar dos eixos, que deveria ser leitura obrigatória em todos os exércitos, e nos faz pensar no que a falta de compaixão pode nos transformar.

"No inverno às vezes deslizávamos sobre os cadáveres alemães congelados, eles ainda ficaram muito tempo nos arredores da cidade."

As frases em itálico fazem parte de alguns dos relatos descritos no livro, raramente eu faço isso, mas desta vez se fez necessário para reforçar a força destas histórias.

As últimas testemunhas
crianças na segunda guerra mundial
Svetlana Aleksiévitch
Tradução: Cecília Rosas
TAG – Companhia das Letras
2013 – 317 páginas

sábado, 28 de julho de 2018

Voragem



Sinopse: Escrito originalmente em forma de fascículos entre 1928 e 1930 para uma revista japonesa, Voragem é um dos romances mais aclamados de Junichiro Tanizaki. No centro da trama está Sonoko Kakiuchi, uma jovem casada que frequenta um curso de arte. Nas aulas, ela conhece Mitsuko, uma colega de beleza estonteante por quem se vê perdidamente apaixonada. Sem conseguir frear seu desejo arrebatador, Sonoko se aproxima em uma pretensa relação de amizade e forja um contato cada vez mais íntimo, despertando rumores ao seu redor. Mitsuko, por sua vez, éimplacável e não tarda a enredar sua amante em uma trama de chantagens. Voragem é uma obra-prima sobre amor e traição, verdades e mentiras, perversão e ciúmes. 

Quando um turbilhão de emoções nos atropela não raro queremos coloca-la no papel. Assim começa Voragem, com a personagem Sonoko explicando o seu desejo em transformar um incidente em romance, mas não se sentir capaz em redigir, e por isso ela o pede para uma pessoa que chama de Sensei.

Narrada em detalhes, a história é longa e tomará um bocado do seu tempo...

Junto com sensei o leitor irá descobrir que ela é casada, mas não fiel, já teve um amante masculino, mas a desestruturação de tudo veio quando ela se encantou pela colega da escola de artes Mitsuko. A aproximação das duas ocorre devido ao boato de que as duas teriam uma relação homossexual, que com o tempo elas tornam verdadeiro.

O relacionamento é movido a mentiras, manipulações, ciúmes, domínio, promessas de suicídio, em um relacionamento mais pautado pela loucura do que pela paixão, chegando a beirar o absurdo em determinadas situações.  E talvez seja isso que me tenha feito achar o livro bom, embora ao pensar nele a primeira coisa que me venha a mente é mucho loko, mas não o suficiente para reler.

Sagrado por sagrado, a nudez de uma virgem também é.

Durante a leitura criei uma grande dúvida sobre a “verdade” da história contada. Como se Sonoko houvesse invertido os papéis para justificar a própria vida ou quem sabe se livrar da responsabilidade que os incidentes narrados poderiam lhe trazer, acrescentando uma dose de exagero como se tudo não passasse de um grande teatro. Em suas justificativas os culpados, os ruins sempre são os outros, quando a verdade se aproxima ela chora com os olhos, mas jamais com a alma.

Voragem é fácil e rápido de ler. Narrado em primeira pessoa a escrita é fluída apesar de todo peso psicológico dos personagens. Há muitas facetas em cada um, e mesmo os que possuem um papel menor são relevantes. Mais do que nunca a história está nos detalhes, no jogo de palavras, no que cada um não diz.

Você não está escondendo nada de mim, está, maninha?

A leitura de Voragem vale a pena quando você vê um tema ainda tabu como o homossexualismo feminino sendo tratado na literatura japonesa dos anos 1930. E ela desperta a curiosidade quando se observa as notas do autor, gerando a dúvida se Tanizaki é um personagem em seu próprio livro.

Mas ele cansa quando o jogo obsessivo entre Sonoko e Mitsuko beira a inverossimilhança. Quando a palavra maninha é repetida de tal forma a ponto de você não suporta-la mais. Tornando a leitura tão torturante quanto o relacionamento das personagens, como se o autor quisesse que o leitor entrasse na mesma loucura da sua ficção.

Voragem
Manji
Junichiro Tanizaki
Tradução Leiko Gotoda
TAG – Companhia das Letras
1931 – 240 páginas

Outros livros da literatura japonesa resenhados no blog:

terça-feira, 24 de julho de 2018

A Amiga Genial



Primeiro volume de quatro da série napolitana, A Amiga Genial me apresentou a Elena Ferrante, que por si só possui uma história a parte, visto que é o pseudônimo de uma escritora italiana que nunca se mostrou e fez gerar várias teorias de quem é a autora misteriosa.

Voltando ao livro, logo nas páginas iniciais ele ganha um subtítulo: infância, adolescência. Há também uma lista dos personagens, que pode auxiliar quem costuma se perder entre tantos nomes. E finalmente é hora de entrar na vida de Raffaella Cerullo e Elena Greco, ou simplesmente Lila e Lenu.

Sem preâmbulos o livro começa com uma Elena adulta atendendo a uma ligação do filho de Lila, para saber se a amiga tinha conhecimento do paradeiro da mãe que havia desaparecido. Isto irrita Elena, que trás a tona todo um histórico de competição e resolve escrever a história das duas.

Narrado em primeira pessoa, a voz de Elena faz o leitor retornar no tempo, para o dia em que as duas se aproximaram. Em uma leitura que começa devagar e aos poucos acelera, lembrando exatamente a passagem da infância para adolescência, onde na primeira parecêssemos ter todo o tempo do mundo e na segunda à urgência de tudo para ontem.

Nas páginas estão o machismo e a violência, perfis de moradores e alunos, relações familiares, pobreza, e acima de tudo uma amizade entre duas meninas. Lila é inteligente ao natural, corajosa, ávida por livros, tem dom para escrever, e sofre fisicamente as consequências de desafiar e responder quando acredita que o outro lado está errado. Lenu é esforçada, cheia de dúvidas e complexos, vive entre competir com Lila e ser levada por sua mão a enfrentar situações que sozinha nunca encararia.

Uma é o combustível da outra, e não sendo elas são as melhores amigas uma da outra. Não sendo por não haver intimidade total, a inveja está nas duas por oportunidades que pipocam em um momento para uma e em outro para a outra. Não parece haver felicidade sincera em relação ao que elas consideram conquistas. Existem escolhas, existem conselhos, até elas começarem a amadurecer, assim como a sua amizade.

Dos bancos escolares, passando pelos primeiros amores e espinhas, o sonho de ser rica e uma visão além do próprio bairro, A Amiga Genial encanta pela sinceridade e simplicidade. Ao mesmo tempo em que pode trazer na memória as nossas lembranças de infância, aquela amiga genial que por n motivos se perdeu contato.

Completando temos o cenário de uma Nápoles nos anos 1950 que ainda não superou totalmente as consequências da última guerra mundial, onde em meio à pobreza os camorristas são respeitados e a agressão é gratuita.

Enfim, um livro que eu gostei tanto que já comprei os três volumes faltantes.

A Amiga Genial
Infância, Adolescência
Elena Ferrante
Primeiro Romance Série Napolitana
Editora Globo – Biblioteca Azul
Tradução Maurício Santana Dias
2011 – 331 páginas

Outros livros de Elena Ferrante resenhados no Blog:

domingo, 15 de julho de 2018

Chatô - O Rei do Brasil



Sinopse: Biografia do proprietário de um império de quase cem jornais, revistas, estações de rádio e de televisão. Figura carismática e intempestiva, Assis Chateaubriand teve uma trajetória indissociável da vida cultural e política do país entre as décadas de 1910 e 1960.

No velório de Assis Chateaubriand o diretor do MASP Pietro Maria Bardi coloca na parede três obras do museu: Banhista com o cão grifo de Renoir, Retrato do cardeal Cristóforo Madruzzo de Ticiano e o retrato de d. Juan Antônio Llorente de Goya. Sua justificativa era de uma última homenagem, pois “Nesta parede estão às três coisas que ele mais amou na vida: o poder, a arte e mulher pelada”.

Para quem quer um resumo do homem considerado um dos reis do Brasil, transcrevo as palavras do arcebispo de Olinda e Recife Hélder Câmara:
De Chateaubriand se pode dizer o melhor e o pior. Haverá quem diga horrores pensando nele, mas como não recordar as campanhas memoráveis que ele empreendeu? Dentro do maquiavélico, do chantagista, do cínico, o Pai saberá encontrar a criança, o poeta. Deus saberá julgá-lo.

Em quase 700 páginas Fernando Moraes inicia a biografia atendendo ao desejo de Chatô, em seu delirante piquenique onde ele e a filha completamente nus se alimentavam de bispos portugueses antes de ir para a sua hospitalização, onde deixou de ser um nome e virou um corpo.

No capítulo seguinte retornamos para o ano de 1892 e entramos na casa dos descendentes de José Bandeira de Melo, um homem que admirava o poeta e pensador francês a ponto de transforma-lo em sobrenome da família.

Única criança no meio de tantos adultos, ele levantou-se a um sinal do pai, caminhou até a mesa do maestro e repetiu a mensagem inteira. Sem esquecer, sem gaguejar e sem molhar as calças.

Da infância a vida adulta, o leitor não é levado apenas fatos de um dos homens mais influentes do Brasil, como todo o cenário político de décadas e décadas, cujo comportamento político se reflete até hoje na vida dos Brasileiros.

Um ciclo vicioso de um relacionamento que ia da troca de favores a perseguição, verdades e mentiras jogadas em um mesmo cesto em uma relação maliciosa entre o jornalismo e a política.

Acha que andando de bonde e fazendo vida de classe média inspiro confiança aos acionistas da futura gazeta? O carro próprio é hoje o melhor índice de prosperidade.

Nascido no nordeste brasileiro, Francisco Chateaubriand tem a seu favor o amor pelas artes, o acreditar em si, a luta pelos objetivos. Um homem com uma visão a frente do seu tempo, que buscava novas tecnologias, que usou o marketing de uma forma ainda desconhecida, que deixou os diários associados para um grupo de funcionários. Que mesmo sem falar e andar não abandonou a escrita, suas opiniões e esperanças pareciam nunca serem abaladas.

Contra está o seu lado manipulador, vingativo, um homem que usava a caneta contra quem ousasse contraria-lo ou dizer não. Que mudava a lei para se beneficiar. Um homem que não poupava métodos nem violência. 

Foi também graças a Getúlio, de outra feita, que Chateaubriand deu em primeira mão uma notícia da área militar que nenhum jornal tinha.

Em suas extorsões e ameaças, o modos operantes de Chatô é sempre o mesmo. Para mim ele não é uma figura que desperte simpatia, e para os que tem fé, pode-se dizer que ele pagou em vida as suas maldades. Pois sim, o jornalista, advogado e político não possuía dó de suas vítimas. Sabia como ninguém virar o jogo em seu favor. Mesmo quando perdia, conseguia ganhar.

Mas sua história pode cansar, e as mais de setecentas páginas não foram realmente completadas por mim. Pulei frases e capítulos ao me entediar com tanta sujeira, um eco do que vemos nos dias de hoje.

Aquele não era mais o Chateaubriand que infligia pânico aos poderosos - e isso valia também para a fila de credores oficiais que se acumulava fazia décadas.

Também me peguei repensando o que usamos como verdades. Chatô parece ser uma das origens das famosas fake news, onde páginas de grandes jornais eram usadas para espalhar difamação ou favorecimento. E o que é verdade e o que é mentira nos dias de hoje? Interesses continuam em jogo, grandes famílias ainda guardam seus monopólios, o jogo entre imprensa e políticos parece ainda estar rolando. Em quem acreditar? 

O próprio livro pode fazer o leitor se interrogar. Será tudo verdade? Haverá fantasia? O homem preconceituoso, egoísta e extremamente influente era real em sua totalidade? Ou parte da sua imagem foi construída com base em histórias da carochinha?

Nunca saberemos.

Chatô – O Rei do Brasil
Fernando Moraes
Companhia das Letras
1994 – 732 páginas

Outras biografias e memórias resenhadas no blog:

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Tempo de Migrar para o Norte


Após anos de estudos na Europa, o narrador retorna para a sua aldeia, que fica ali, na curva do rio Nilo. Neste local mora a sua família, e na bagagem ele trás toda a saudade que o acompanhou até mesmo nos sonhos. Um retorno ao antigo quarto, ao chá materno, as muitas perguntas sobre o mundo ocidental e repentinamente um rosto desconhecido.

Assim entra Mustafa, um homem que como ele estudou na Europa e percorreu o mundo até se acalmar em um lugar afastado de tudo o que ele havia vivido, e são os seus questionamentos que irão despertar no narrador curiosidades e pensamentos, sentimentos e reações que até então ele não estava preparado.

E é ele também que irá trazer diferentes facetas da colonização britânica na África, a visão que muitos tinham de seus moradores até chegar ao Sudão pós-colonial e seus políticos, que renegam saúde e educação aos seus habitantes, mas não abrem mão de seus luxos. A ironia é palpável, em uma crítica a forma de governar.

Outro ponto forte na história é o papel da mulher, a forma como são tratadas tanto por Mustafá quanto pelos moradores da aldeia dão uma pitada bem mais tensa, costumes inexplicáveis, atitudes de difícil compreensão para quem vive o feminismo ocidental. Ali estão a paixão, a loucura, a decepção e o regime patriarcal. Em uma conversa entre os mais velho, é citada a mutilação na região genital das meninas, onde uma das justificativas é o fato de ser uma das normas do islã.

Quem se aventurar por esta migração, irá se sentir flutuar pela escrita de Tayeb Salih que logo no primeiro capítulo o encerra com  ‘ : ’, como que instigando ao leitor a manter o livro aberto. E não é um livro de ideias prontas, Mustafa está ali para provocar dúvidas, não para solucionar mistérios. Assim como o narrador, você é atirado em um rio e levado a viver por um breve momento entre uma pequena aldeia e as ruas da Europa. Onde você vai parar? Só a sua conclusão final irá dizer.

Tempo de Migrar para o Norte
Mawsim al-hijra ila al-shamal
Tayeb Salih
Tradução: Safa Abou-Chahla Jubran
TAG – Planeta
1966 – 175 páginas