quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

A Velocidade da Luz



Sinopse: Espanha, final dos anos 80. Um convite para lecionar em uma cidade no interior dos Estados Unidos muda para sempre a vida de um jovem aspirante a escritor. Lá, ele conhece Rodney Falk, homem cínico, culto e marcado por um terrível segredo de guerra. A partir desse encontro, os personagens - tão complexos e humanos - desenvolverão uma relação tumultuosa que culminará em um enfrentamento trágico da realidade e os seus demônios.

TAG Curadoria iniciou o ano de 2018 com a indicação do escritor brasileiro João Anzanello Carrascoza, que me apresentou o escritor espanhol Javier Cercas e um dos livros que entrou para a minha lista de favoritos: A Velocidade da Luz.

Um aspirante a escritor na cidade de Barcelona recebe o convite para dar aulas em Urbana, uma pequena cidade nos Estados Unidos. Neste ambiente tão diferente ele conhece Rodney Falk, um professor um tanto misterioso que vive a parte dos demais docentes. E essa amizade irá marca-lo em definitivo ao ter em suas mãos as cartas que o seu amigo enviava ao pai durante o tempo que serviu ao exercito na guerra do Vietnã.

Hoje eu levo uma vida falsa, uma vida apócrifa, e clandestina, e invisível, porém mais verdadeira que uma vida de verdade.

O livro de Javier Cercas possui três bases para capturar o leitor: a própria literatura, a psicologia humana e uma guerra. Os três possuem munições suficientes para uma discussão conforme o olhar do seu leitor, já que o livro em si não possui lado, não faz julgamento, apenas conta sobre duas vidas e seus traumas em uma mistura de ficção e realidade.

Curiosamente o livro também possui três cidades de referência: Girona, Urbana e Barcelona, esta última com mais um autor espanhol utilizando de seu lado sombrio para intensificar os sentimentos contraditórios de seu personagem.

...quem sempre sabe aonde vai nunca chega a lugar nenhum, e que a gente só sabe o que quer dizer quando isso já foi dito.

A guerra do Vietnã tem como personagem Rodney, um jovem culto e inteligente que se obriga a ir para uma guerra que não acredita apenas para não decepcionar o seu pai, um veterano da segunda guerra mundial que tem muito orgulho de ter ajudado a salvar o mundo. O homem que retorna é muito diferente, entre as perdas estão o da sua essência, fazendo com que Rodney se construa e descontrua conforme as situações enfrentadas.

Em um dos seus sumiços, o narrador sai em sua busca e acaba recebendo as cartas. Conforme o horror vai acontecendo, uma mudança no conteúdo é evidente, da inocência perdida após a morte do irmão, muitas dúvidas irão surgir na cabeça do narrador, que leva o leitor junto na busca por respostas. E sim, a história de Rodney daria um livro próprio, mas ela é a inspiração do nosso narrador, que precisa dividir o que acontece com ele conforme a ideia da história é construída.

É possível que logo tenha entendido que ninguém volta do Vietnã; que, para quem esteve lá, o regresso é impossível.

O psicológico permite o contraponto entre os dois personagens principais da história: se Rodney possui cultura e luta com os seus monstros internos, o narrador é superficial. Não é difícil desgostar de quem conta a história, seu egoísmo e deslumbramento podem fazer o leitor esnobar os seus sentimentos de culpa conforme os ciclos se repetem. Ele é humano? Sim. O livro escrito pelo narrador parece uma forma de expurgar a culpa? Talvez. Conseguimos ver os dois como espelhos, como muitas vezes o narrador tenta nos induzir? Irá depender de quem está lendo.

...a melhor maneira de contar uma história é não conta-la.

E a literatura? Ah, ela está nas várias referências bibliográficas como Hemingway e Mercè Rodoreda, nos conselhos de Rodney para que um escritor não sucumba ao sucesso, ao gosto de ter seus livros vendidos, a dificuldade de contar uma história quando você começa a fazer parte dela. Ela é o próprio livro quando você não sabe se o narrador é realmente fictício ou autobiográfico, quando ele fica anos escrevendo suas histórias acreditando que aquilo é uma forma de vida, quando a escrita faz a vontade dos olhos se abrirem voltar.

E para quem é assinante da TAG, o posfácio de João Anzanello Carrascoza pode mexer ainda mais com a cabeça do leitor e os seus pontos de interrogações.

  ...agora era eu o homem mais sozinho do mundo, um animal perdido no meio de uma manda de animais de outra espécie...

Por esta história multifacetada, de escrita fácil e leitura rápida, mas de pensamentos longos e muitas teorias, que eu me encantei pela Velocidade da Luz e por Javier Cercas. Um livro para quem deseja escrever, para quem deseja uma boa história, para quem gosta de uma mistura de fracasso, sucesso e culpa.

A Velocidade da Luz
La Velocidad de la luz
Javier Cercas
Tradução Sérgio Molina
TAG – Biblioteca Azul
2001 – 268 páginas

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terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Eu sou um gato



Sinpse: Os humanos têm quatro patas, mas se dão ao luxo de utilizar apenas duas. Poderiam andar mais depressa se usassem todas, mas se contentam apenas com um par, deixando as restantes estupidamente penduradas como bacalhaus postos a secar.

Publicado em forma de série em uma revista, os onze capítulos desta obra narram toda a inteligência, consciência, comportamento humano e intelectualidade do início do século XX em terras japonesas (embora sirva perfeitamente para os nossos dias atuais) na visão de um gato sem humildade nenhuma, cujo amo é definido pela sua imbecilidade.

Contam que por vezes esses humanos denominados estudantes nos agarram à força para nos comer fritos. 

Logo na nota dos editores podemos observar a primeira curiosidade do livro, o nome do autor é um pseudônimo, seu sobrenome, Soseki, em chinês significa incômodo/estorvo. O que parece descrever o seu sentimento por vários dos personagens da história, e talvez como ele mesmo se sentisse, já que a sua vida não pode ser categorizada como fácil.

Como escrevi no primeiro parágrafo, quem conta esta história de forma irônica, debochada e às vezes um tanto preguiçosa é um gato. Um gato sem nome. Um gato abandonado que ainda filhotinho achou uma casa e o seu amo. No local às vezes é pisado, às vezes vira saco de pancada, e assim ele acabou sendo apenas um bicho que por ali ficou, circulando entre as casas da vizinhança, ampliando a narrativa para além da área central.

Minha inteligência é indubitavelmente superior à dele, estou certo disso, mas não me comparo a ele quando se trata de força física e coragem.

O seu amo é o professor Kushami, casado com uma mulher sem estudos e submissa, com filhas pequenas e uma empregada. Além deles, amigos e ex-alunos frequentam a casa, onde há discussões que vão da literatura, passando por fatos históricos, até conversas simples do cotidiano. Um dos mais divertidos é Meitei, com uma mente mirabolante, suas histórias misturam realidade e fantasia de uma forma um tanto engraçada. 

Um dos eventos principais da história está na chegada da família Kaneda e um suposto interesse de Kangestu – um ex-aluno de Kushami e um doutorando que passa polindo bolas de vidro – em se casar com a filha do empresário. Como o comportamento da Sra. Kaneda não é exatamente simpático ao questionar Kushami sobre o pretendente, somado ao desprezo que o professor sente por homens de negócio como o marido da mulher em questão, logo o nariz da senhora vira o assunto principal das conversas, estas escutadas por vizinhos que levam as fofocas quentinhas aos interessados, que insultados acabam provocando situações ainda mais ridículas na história.

Em um mundo onde há humanos que se vangloriam de terem sido cobiçados por alguém que era apenas estrábico, semelhante engano não é nada de se espantar, e eu continuei a receber calmamente suas carícias. 

O livro é cheio de observações de rodapé, sejam para listar autores ou fatos históricos aos quais os pseudo-intelectuais estão discutindo. E o engraçado de tudo, é que em muitos momentos o professor Kushami me passa o sentimento de ser o alter ego de Soseki, pelas semelhanças físicas assinaladas nas mesmas notas.

E mesmo sendo uma crítica à sociedade japonesa da época, muita das frases são mais atuais do que nunca, como uma parte que me chamou especialmente a atenção e assim diz: “Só pensamos em nós mesmos, ao irmos dormir, aos nos levantarmos, em todas as ocasiões reverenciamos nosso eu. Por isso, as ações e palavras se tornaram artificiais, impacientes e asfixiantes.” . Confesso que fiquei tentando imaginar o que Soseki escreveria se estivesse vivendo os dias de hoje.

Um livro para ler com calma e como um gato se aconchegar em um lugar macio para se perder em reflexões.


Eu sou um gato
Wagahai wa neko de aru
Natsume Soseki
Tradução Jefferson José Teixeira
Estação Liberdade
1905 – 486 páginas