terça-feira, 19 de abril de 2022

Água Fresca para as Flores



Sinopse: Os dias de Violette Toussaint são marcados por confidências. Para aqueles que vão prestar homenagens aos entes queridos, a casa da zeladora do cemitério funciona também como um abrigo diante da perda, um lugar em que memórias, risadas e lágrimas se misturam a xícaras de café ou taças de vinho. Com a pequena equipe de coveiros e o padre da região, Violette forma uma família peculiar. Mas como ela chegou a esse mundo onde o trágico e o excêntrico se combinam?

No mês de janeiro/22 recebi da minha assinatura da Intrínsecos o livro da escritora francesa Valérie Perrin chamado Água Fresca para as flores. O mimo foi um bloquinho de anotação em formato de um passaporte para avaliar e fazer breves observações sobre os livros que os assinantes irão receber.

Basta que um único ser nos falte para que tudo pareça vazio.


Violette Toussaint nasceu morta e sem amor, cresceu passando por várias famílias temporárias sem pertencer a nenhuma, mentiu a idade para trabalhar em um bar, foi vigia ferroviária e agora, próxima aos cinquenta anos, é zeladora de cemitério.

Neste local ela cultiva e vende suas flores, tem um espaço na sua casa onde ouve histórias e lamentos daqueles que tentam entender a própria perda, tem um caderno onde anota tudo que é dito nos funerais e com tranquilidade, cuida da limpeza do local.

Será que um homem que não ama mais sua mulher olha para ela como se ela tivesse enlouquecido?


Mas um dia ela recebe a visita de Julien Seul, um homem que tenta entender o último desejo de sua falecida mãe, que é ter as cinzas jogadas no túmulo de um homem que ele nunca ouviu falar. A atenção de Violette atrai o seu interesse, e usando o seu cargo de delegado, ele acaba remexendo em um passado indesejado para ela, trazendo várias emoções à tona.


Os personagens

Existem os mais diferentes perfis na história, o que traz um equilíbrio entre momentos de risada, tristeza e reflexão. Eu vou listar os principais, mas a verdade é que os pequenos personagens, aqueles que muitas vezes estão só para se despedir de um ente querido também são peças fundamentais na história.

Em Água Fresca para as Flores cada pétala tem sua importância, não estando ali por estar, não são um mero acaso. Mas vamos aos principais, que irão interagir com boa parte delas.

Ninguém nunca diz que podemos morrer de tantas vezes que nos sentimos chegar ao nosso limite.


Violette Toussaint é o fio condutor desta história, o bebê que nasceu morto e ressuscitou ao ser colocado em cima de um aquecedor passou por diversas famílias sem ser verdadeiramente acolhida. Sua carência e tristeza não se refletem para quem não consegue prestar atenção. 

A mulher gentil que acolhe dores, usa roupas coloridas por baixo das de cores sóbrias, e sempre tem um chá ou uma taça de vinho para os que precisam desabafar. Assim como uma memória para saber a moradia de cada um dos seus vizinhos.

Todas as profissões que têm a ver com a morte parecem suspeitas.


Philippe é o ex-marido que nunca esteve presente, filho mimado que não tem responsabilidade e muito menos amor para compartilhar. Parte deste comportamento eternamente infantil é justamente dos seus pais, principalmente de sua mãe, que como boa sogra não perde oportunidade de criticar ou humilhar a nora.

Desde homem machista, cujo tratamento gentil do início era apenas um disfarce, o único presente recebido por Violette foi Léonine, um verdadeiro raio de sol em forma de filha para quem sempre foi solitária.

Gosto da beleza das coisas porque não acredito na beleza das almas.


Mas o que a família do marido tem de negativo os amigos Célia e Sasha tem de anjo quando abrem suas asas para acolher Violette nos anos mais doloridos de sua vida. Demonstrando o que pode haver de mais belo em uma amizade.

Nono, Elvis e Gaston são os coveiros do cemitério, juntos com o Padre Cédric e os irmãos Lucchini - donos da funerária local - são as pessoas que travam os mais diferentes diálogos na sala da casa de Violette, colocando o leitor na rotina e mostrando como o trabalho em um cemitério é igual ao qualquer outro, embora com algumas situações mais inusitadas.

Por muito tempo, eu me perguntei o que havia feito de ruim para merecer aquilo.


O Delegado Julien Seul chega com suas próprias questões e ao tentar agradecer a recepção gentil, acaba trazendo à tona através de uma investigação parcial todo um passado que a própria Violette desejava esquecer. E sem querer, um acaba entrando na vida do outro.


A escrita de Valérie Perrin

Em Água Fresca para as Flores a autora Valérie Perrin consegue misturar diferentes estilos narrativos. Tem a voz de Violette em primeira pessoa que é a narrativa mais utilizada, tem narrativa através de diário e discurso fúnebre - lembre-se, a personagem principal é a zeladora de um cemitério - e tem a narrativa em terceira pessoa quando se trata em nos mostrar outros personagens aos quais Violette não tem proximidade.

A escrita é direta, sensível e ao mesmo tempo íntima, pois conforme as páginas vão sendo viradas, vamos descascando as camadas da vida de Violette ao mesmo tempo que ela se confronta com dúvidas e descobertas no presente.

A maldade é como esterco. O cheiro fica grudado no ar por muito tempo, mesmo depois que o recolhemos.


E tudo isso é complementado com pequenos detalhes, como os animais de pessoas falecidas que escolhem ficar no cemitério, ou os gatos batizados com nomes que são músicas do cantor Elvis. Ou os simbolismos que estão na quantidade de pessoas, nos discursos de despedida, e até mesmo no colorido escondido pelo escuro nas roupas da personagem.

Desta forma, para mim, foi quase como se muitas vezes eu sentisse o cheiro das flores e temperos que a rodeiam, escutasse o apito dos trens, o calor do abraço da sua filha, e o vazio que a quase sufocou tantas vezes.


O que eu achei...

Eu adorei a história, já sendo uma das minhas leituras favoritas do ano. É sobre morte e perda, mas também sobre encontrar e viver.

Sobre buscar paz após anos de sofrimento sem se entregar a amargura. Sobre amores imortais, ações impensadas, sogras peçonhentas e maridos que traem.

Cada um faz o que quer. Não. A vida dos outros também conta.


Tudo em uma escrita sensível, gentil, envolvente e fluída. O que me fez classifica-lo como um livro para chorar e sorrir, mas principalmente lembrar de valorizar o tempo e os nossos amores.


Água Fresca para as Flores
Changer l'eau des fleurs
Valérie Perrin
Tradução: Carolina Selvatici
Intrínseca
2018 - 479 páginas

Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado é pago integralmente pela autora.

terça-feira, 12 de abril de 2022

Samarcanda



Sinopse: Saberia o juiz que com aquele gesto, com aquelas palavras, dava vida a um dos segredos mais bem guardados da história das letras? Que seria preciso esperar oito séculos até que o mundo descobrisse a sublime poesia de Omar Khayyam, até que seu Rubaiyat fosse venerado como uma das obras mais originais de todos os tempos, até que fosse enfim conhecido o estranho destino do manuscrito de Samarcanda?

No mês de Fevereiro/2022 recebi da minha assinatura da TAG Curadoria a indicação do jornalista e comentarista de política internacional Guga Chacra. O curador de origem libanesa optou por recomendar a obra de um autor de origem semelhante, o franco-libanês Amin Maalouf. O mimo foi um caderno de receitas, onde além de cinco indicações, fala de especiarias e tem algumas páginas para o leitor descrever as suas próprias.

Um livro perdido no naufrágio do Titanic liga o americano Benjamin Omar ao cientista, poeta e astrônomo persa Omar Khayyam. E é parte da vida adulta destes dois homens junto ao manuscrito do Rubaiyat que Samarcanda irá nos contar.

No fundo do Oceano Atlântico há um livro. É a sua história que eu vou contar.


Uma história que começa no verão de 1072, quando aos 24 anos Omar Khayyam chega à cidade de Samarcanda e interfere nas agressões a um velho, a discussão acaba finalizada junto ao juiz Abu-Tahir, que se torna seu amigo e o presenteia com um belo livro com páginas em branco, para que ele as preencha.

A partir daí vamos acompanha-lo no seu encontro com o amor ao encontrar Djahane, uma mulher independente e viúva que assim como Omar vive a vida de acordo com os próprios desejos.

O que resta de uma cidade é o olhar indiferente que um poeta meio bêbado lhe dirigiu.


Em suas viagens ele conhecerá homens como Hassan Sabbah, um jovem com ânsia por aprender que se tornará o líder político e religioso de um bando de assassinos nas guerras por territórios na persa.

Se tornará amigo de personalidades importantes como Nizam Al-Mulk, o vizir do império turco-persa que atuou como regente, e acompanhará vários acontecimentos.

Sofro pelo erro daquele que me engendrou, ninguém sofrerá por um erro meu.


Até pularmos para 1870 e encontrarmos o americano Benjamin, que recebeu o segundo nome Omar em homenagem ao seu xará persa. Se inicialmente ele não acreditava nos escritos inspirados no poeta, quando é convencido da existência do livro, é tomado por uma obsessão que o fará percorrer o Oriente Médio e a Ásia Central em busca do seu paradeiro.


Os personagens

Um dos grandes charmes deste livro é que ele mistura personagens reais e ficcionais, despertando uma curiosidade ainda maior pela história.

Começando pelo próprio Omar Khayyam, que deixou contribuições muito importantes tanto no campo das exatas quanto da literatura. Esta última tendo alcance mundial quando o também poeta Edward Fitzgerald traduziu os rubaiyats e os publicou em um livro.

Por que ter medo? Depois da morte, há o nada ou a misericórdia.


Na ficção Samarcanda temos um homem que prefere a paz a violência, onde tudo o que quer é um grande celescópio para observar o céu, enquanto dá conselhos aos poderosos e escondido, escreve os seus pequenos versos, vistos na época como algo inferior a tudo o que ele conhecia e descobria.

Djahane é a alma gêmea de Omar na ficção, uma mulher que não deseja filhos nem abandonar o estilo de vida escolhido para ficar ao lado do seu amor. Uma figura feminina forte, com opiniões e ações independente, surpreendendo quem espera encontrar apenas mulheres submissas.

Há uma alegria perversa em estar numa cidade sitiada, as barreiras caem quando se erguem as barricadas, homens e mulheres reencontram as alegrias do clã primitivo.


Outra figura real é Hassan Sabbah, o líder extremista cujos pensamentos parecem ecoar até hoje em grupos semelhantes e bastante conhecidos para quem acompanha os noticiários internacionais, inicialmente nos é apresentado como um jovem sedento por conhecimento, não é difícil ele se tornar amigo de Omar e assim entrar no círculo de poderosos na época. Até suas ideias e manipulações se mostrarem fatais.

Falando em poder, temos outra personagem que é um dos modelos até hoje da emancipação feminina, esposa do sultão Malikchah, Terken Khatun entendia das manobras necessárias para se manter no poder. Uma mulher extremamente forte que não se dobra para manter os seus interesses.

Em meu difícil combate pela sobrevivência, precisava dessas aliadas, de seu entusiasmo e de sua coragem, de sua admiração injustificada.


Já o fictício Benjamin Omar é o narrador desta história, que ao se encantar pela história do homem ao qual leva o nome em homenagem, demostra a mesma determinação em adquirir conhecimento, se dividindo entre a busca pelo livro perdido e publicações sobre o oriente médio.

Assim como Omar, ele irá encontrar o amor ao conhecer a princesa Chirine, a neta do xá que compartilha da paixão e obsessão pelo livro, ao mesmo tempo que é um espelho da personalidade de Djahane.

Se os persas vivem no passado, é porque o passado é sua pátria, porque o presente é para eles uma terra estrangeira em que nada lhes pertence.


O irreal Benjamin será responsável por nos apresentar outras figuras reais, como o professor americano Howard Baskerville, que abraçou a revolução constitucional persa durante o pesado cerco de Tabriz.


A escrita de Amin Maalouf....

Samarcanda é dividida em quatro partes, nas duas primeiras narradas em terceira pessoa o foco é em Omar Khayyam, onde temos a apresentação das cidades e dos personagens principais, passando pela disputa de poder, os sultões, a questão religiosa e os assassinos suicidas.

Aqui a mistura de lendas, história real e ficção me fizeram lembrar de mil e uma noite, pois o autor Amin Maalouf me transportou para um mundo que me encantou com toda a cultura e força do Oriente.

Daí em diante, foi preciso esconder-se para falar em liberdade, democracia, justiça.


Na terceira e quarta parte o narrador Benjamin Omar começa a participar da história, mudando a narrativa para terceira pessoa. Aqui passei a acompanhar todas as usas aventuras e encrencas que ele se mete ao buscar o lendário livro. Como pano de fundo temos a luta pela constituinte na Persa, uma paixão que nos invoca a dúvida entre o real e a ilusão, até chegar no então indestrutível Titanic e os tesouros que ele carregou para as águas geladas.

Tudo isto em capítulos não muito longos, com belas descrições, em uma escrita fluída que te convida a viajar pelas páginas junto com o personagem e admirar a inteligência e força dos que entram em cena.


O que eu achei...

Samarcanda é o tipo de livro que sinto pena de finalizar, que convida a fazer pesquisa no Google a saber mais dos personagens, que deixa o olho espichadinho sabendo que mais tarde queremos uma releitura para descobrir mais detalhes que talvez tenham passado despercebido no primeiro contato.

Ele também me encantou por mostrar - mais uma vez - como o nosso mundo é cíclico em quase tudo, especificamente em Samarcanda vemos a guerra e os países envolvidos, onde se inclui a Rússia, que no momento em que escrevo esta resenha está em guerra com a Ucrânia e causando calafrios no resto do mundo.

Ficando a dica para quem gosta de viajar pela literatura, conhecer outras culturas, curte a mistura de realidade e ficção, para quem quer se encantar ou simplesmente gosta de ler um bom livro.


Samarcanda
Samarcande
Amin Maalouf
Tradução: Marília Scalzo
TAG Curadoria - Tabla
1988 - 348 páginas

Ficou interessado em assinar a TAG? Indique o meu código de amigo ANDJ8CMF e ganhe 30% de desconto na primeira caixinha e eu ganho o mimo do mês.
Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.

terça-feira, 5 de abril de 2022

Lili novela de um luto



Sinopse: Ao trazer a morte da mãe para o centro deste relato, Noemi Jaffe, uma das principais vozes da literatura brasileira, expõe de forma brutal as feridas do luto e o que é possível fazer para vivê-lo.

A escritora paulista Noemi Jaffe conseguiu transformar todos os sentimentos que a envolveram quando ela perdeu a figura materna em um livro dolorido, real e bonito sobre o luto.

Utilizando uma narrativa direta, ela nos apresenta a Dona Lili, uma mulher que sobreviveu ao holocausto, que teve três filhas com um marido pelo qual não era apaixonada, que com a viuvice mudou de endereço e passou a viver pelos próprios conceitos, que no final da vida ficou doente e conviveu com sua doença por anos até uma simples infecção nos pés a levar aos 93 anos.

Quando ela estava morta, eu beijei seu rosto, suas mãos, seu colo,


E é com delicadeza que vemos a própria Noemi Jaffe utilizar a escrita como forma de reação ao luto de uma das pessoas mais importantes de sua vida, onde mistura a parte prática da perda com desabafos sobre os sentimentos que a percorrem com o passar dos dias, sejam eles de saudade ou de culpa.

Tudo se inicia justamente com a perda, o último beijo, a última imagem, os conflitos internos que surgem quando se acompanha uma pessoa se esvair aos poucos, onde muitas vezes se imagina preparado para a morte do outro ou se vê até como forma de descansar, e quando acontece a pessoa simplesmente se dá conta que o destino poderia ter esperado um pouco mais, que bem poderia haver mais um dia, qual era a pressa afinal?

Esse nunca mais, como no poema "O corvo", é a grande dor.


Então entra a parte prática, os preparativos do funeral, os ritos de despedida - aqui no caso é a cultura judaica, onde a autora descreve a shiva, com visita de amigos e parentes e rezas na sinagoga -, além da dita divisão dos bens, quem fica com o que, o que se torna doação.

Até que entra o impalpável e inestimável, que são as lembranças. E são as memórias evocadas pela saudade que Noemi Jaffe sente pela mãe que permitem conhecer um pouco da Dona Lili, sejam os seus hábitos, seja a sua personalidade, suas receitas, sua sinceridade e até mesmo a sua cara de pau.


O que eu achei...

É um livro tristemente bonito, em que a filha escritora imortaliza a mãe através de palavras, enquanto tenta expressar e administrar toda a saudade que sente.

Para quem como eu nunca viu uma perda de tamanho significado, é possível entender minimamente o quanto existem dores que não podem ser medidas, que não há palavra ou circunstância que amenize quando parece faltar um pedaço de si.

Quero continuar tendo, mesmo com a rotina quase normalizada, intervalos de concentração na dor e na lembrança física da presença dela.


E imagino que para quem passou por tamanha perda, algo que com a pandemia se tornou dolorosamente comum, esta breve novela de um luto talvez permita compreender os próprios sentimentos que se atropelam, enquanto se tenta recuperar o equilíbrio para seguir em frente.

Ao mesmo tempo a autora nos lembra que entre as lágrimas do vazio também há as gargalhadas das lembranças, aquela voz que te deu força e seguira ecoando internamente, como reforçando que ela segue ali com você em mais um belo dia para se viver.


Lili novela de um luto
Noemi Jaffe
Companhia das Letras
2021 - 107 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.