quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

A outra volta do parafuso



Sinopse: A outra volta do parafuso conta a história da jovem filha de um pároco que, iniciando-se na carreira de professora, aceita mudar-se para a propriedade de Bly, em Essex, arredores de Londres. Seu patrão é tio e tutor de duas crianças, Flora e Miles, cujos pais morreram na Índia, e deseja que a narradora (que não é nomeada) seja a governanta da casa de Bly. Ao chegar a Essex, a jovem logo percebe que duas aparições, atribuídas a antigos criados já mortos, assombram a casa. O triunfo íntimo da protagonista, mais que desvendar o mistério de Bly, consiste em vencer o silêncio imposto pela diferença de condição social entre ela e seus pequenos alunos.

No mês de Outubro/2023 eu recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação do tradutor Caetano W. Galindo, que também fez a Apresentação do livro ao qual é realmente fã: A outra volta do parafuso do escritor americano Henry James. O mimo foi do tipo que eu adoro: uma coletânea de Contos de horror da América Latina.

Em uma véspera de Natal um grupo resolve trocar histórias ao redor da lareira. Quando Douglas resolve dizer que na noite seguinte iria compartilhar a história real escrita por uma governanta já falecida, uma mulher mais velha do que ele ao qual o encantou com sua presença e sua história.

Imagino que eu estivesse esperando, ou temendo, algo tão sombrio que o que me recebia era uma boa surpresa.


Uma moça de vinte anos cujo nome não é revelado, é contratada como governanta por um tutor, que deseja terceirizar a criação de seu casal de sobrinhos pequenos. A menina vivia em uma casa de campo na cidade de Bly, próxima a Londres - e o menino se dividia entre a escola e o lugar onde a irmã vivia.

E é para esta casa de campo que a nova governanta vai e se encanta com as crianças quase da mesma fora que se encantou com o tio. Mas a revelação da acontecimentos anteriores fazem com que ela passe a enxergar figuras misteriosas e se sentir dividida entre proteger os irmãos e achar que as crianças estão envolvidas com o mistério que os cerca.


A escrita de Henry James

O escritor norte-americano Henry James coloca o leitor dentro da mente da jovem governanta de Bly em uma narrativa em primeira pessoa. Mas já na introdução do que será contado se cria um clima de suspense, cuja manipulação psicológica irá aumentar no decorrer da leitura.

Pois a história que já gerou uma série de adaptações como Os inocentes, Os outros e a mais recente A maldição da mansão Bly, realmente mexe com a imaginação do leitor, já que a ambiguidade da narrativa abre um leque de possibilidades que podem ser interpretadas conforme as crenças de quem mergulha em suas páginas.

Se tinha me encarado de maneira tão ousada, era por sua indiscrição. A parte boa, ao fim e ao cabo, era que certamente não o veríamos mais.


O que torna A outra volta do parafuso ainda mais genial, levando em conta que a história é relativamente curta, mas com um nível de tensão e reflexão suficientes para várias discussões, que vão do abandono infantil, passando por repressão sexual, reação ao isolamento, fofocas no ambiente de trabalho, diferenças sociais, e claro, será fantasma ou será loucura?


O que eu achei de A outra volta do parafuso

Ambíguo. Já faz um tempo que eu finalizei a leitura e ainda não tenho uma certeza absoluta sobre o que realmente ocorreu no livro. Naturalmente formulei as minhas próprias teorias, mas definitivamente A outra volta do parafuso não te permite ter certezas sobre os acontecimentos.

Quando a jovem é enviada para o local isolado, em um primeiro momento ela projeta a perfeição nas crianças, a ponto de não investigar a recente expulsão do menino da escola. Logo ela cria laços com outra funcionária do local, a sra. Grose, mas como leitora, não sabia o que ela realmente dizia, concordava ou muito menos pensava.

Era uma pergunta bastante direta, mas nossas conversas não eram levianas, e a luz cinza da alvorada forçando a nossa separação conseguiu-me uma resposta.


Conforme ela enxerga os dois ex-funcionários do local, que estão mortos, surgem dúvidas de como ela sabe as características dos dois? A sra. Grose realmente confirma as descrições? Ou seriam características genéricas da época? Ficando a pergunta: estamos realmente nos deparando com fantasmas?

Mas a forma como a narrativa foi construída não me deu medo. Não achei que os momentos das aparições causassem tensão, até pela forma forte e corajosa da governanta encarar as aparições. O verdadeiro charme e suspense da leitura está nos pontos de interrogação que se espalham ao longo da trama. Não é por acaso que já foram gerados diversos filmes inspirados no livro em que cada um deu a sua própria versão.

Era o silêncio mortal de nosso longo olhar em tamanha proximidade que dava àquele horror, imenso como era, sua única nota sobrenatural.


Particularmente no que se refere a terror, o texto introdutório promete mais do que entrega. Por que o livro está mais para um suspense psicológico, onde o estilo da narrativa não permite ao leitor ter a visão dos demais personagens, enquanto a narradora tenta se vender como confiável o tempo inteiro. E o leitor fica sem saber se deve acreditar ou não. E assim temos um novo ponto de interrogação: são fantasmas ou a personagem está enlouquecendo neste lugar isolado?

Um livro para quem não deseja respostas, mas sim perguntas. Para quem não se irrita em não receber tudo pronto e gosta de criar as próprias teorias. Um livro, como disse o curador, para reler e identificar mais detalhes, para ver se as próprias conclusões se mantêm ou se alteram no decorrer do tempo.


A outra volta do parafuso
The turn of the screw
Henry James
Tradução Lígia Azevedo
TAG Experiências Literárias
2023 - 157 páginas
Publicado originalmente em 1898


segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Disque T para titias



Sinopse: Um assassinato (acidental). Um casamento com dois mil convidados. Três gerações de uma família sino-indonésia nos Estados Unidos. E as tias mais intrometidas do mundo prontas para salvar o dia.

A mãe de Meddelin Chan deseja que a filha arrume um namorado, sem saber que a moça não esqueceu o grande amor que havia conhecido na universidade, e nunca apresentado para a família. 

Para resolver a questão, ela se cadastra em um aplicativo de encontros e se passando pela filha, marca um encontro as cegas. Mas a confusão com o idioma inglês faz com que as conversas não sejam nada inocentes. Quando a verdadeira Meddy é convencida a conhecer o pretendente, é assediada, e na tentativa de se defender, um acidente automotivo ocorre.

Mas a maldição não apenas as encontrou, como sofreu uma mutação. Em vez de matar os homens da família, fez com que eles as abandonassem, o que é muito pior.


Mas ao invés de chamar a polícia ou levar o cara para um hospital, ela liga para a mãe, que por consequência chama as suas tias. E assim as cinco que possuem a tarefa de organizar um grande casamento em um resort no dia seguinte, ganham a tarefa extra de se livrar de um corpo.

Mas ao chegar no local do casamento, ela se depara com o seu grande amor e um grupo de padrinhos e madrinhas um tanto agitados, tornando o seu dia longe de fácil.

Há barulho em todo canto, uma cacofonia de mandarim e cantonês.


Com isso uma sequência de cenas que vão do romântico, passando pelo total absurdo com pitadas engraçadinhas recheiam as páginas em um livro leve e de fácil leitura.


A escrita de Jesse Q. Sutanto

A escritora indonésia Jesse Q. Sutanto já informa nas páginas iniciais que o livro é uma carta de amor para a família dela, e conta brevemente a história de imigração que iniciou com os seus avós saindo da China e foi o princípio de uma confusão de idiomas de uma família trilíngue, representada pela personagem principal, sua mãe e suas tias no decorrer da história. 

Utilizando a narrativa em primeira pessoa, a autora nos coloca no olhar da personagem principal Maddelin Chain, ou simplesmente Meddy. Dividido em três partes, na primeira parte há um vai e vem entre passado e presente, até se estabelecer somente no tempo presente nos demais.

Ele abre aquele sorriso, aquele que quase faz seus olhos se fecharem. Aquele que me dá vontade de vomitar.


Usando de base um fato absurdo, Jesse Q. Sutanto compartilha através da sua história os laços familiares, sentimento de culpa que influenciavam nas decisões da personagem, o tratamento dado aos imigrantes, as diferenças culturais dando com pessoas externas ou dentro de casa, entre outros assuntos abordados.

E na sequência que mistura cenas que ficam entre o sem noção e absurdo com toque cômico, tornando o livro leve e fácil de percorrer suas páginas.


O que eu achei de Disque T para titias

Disque T para titias é uma comédia romântica com uma base inusitada, sendo que a parte do romance fica com a personagem principal Meddy reencontrando o seu ex-namorado e a comédia por conta da mãe e das tias. Do uso dos emojis as situações mais sem noção, existem momentos que é quase impossível não rir.

No geral achei um livro leve e despretensioso. Tem um momento de reflexão como quando aborda o preconceito por imigrantes (vocês são todos iguais), até chegar nos dilemas de quem deseja buscar a própria independência e ao mesmo tempo vive sob as asas da proteção familiar. Pois as vezes é mais fácil seguir ordens, mesmo tendo que conviver com a necessidade de aprovação constante. 

Minha mente está entrando em curto-circuito, tentando pensar em uma solução no meio dessa bagunça.


Além disso tem a utilização de estereótipos como o delegado típico de filmes americanos e o próprio noivo, ao qual o plot twist me pareceu meio estranho, mas nada tão estranho para se dizer que seria impossível de acontecer.

Mas definitivamente para mim as grandes estrelas são as mulheres da vida de Meddy, que se por um lado sentem saudades da presença próxima dos filhos, seguiram seu rumo após o divórcio e tocam seus próprios negócios com sucesso, sendo independentes financeiramente. 

Amo a minha mãe, mas também quero ter uma vida independente. Estremeço só de pensar nisso; parece muito uma traição.

Resumindo: um livro que combina com verão, férias, e para dar aquele descanso na mente entre leituras mais pesadas.


Disque T para titias
Dial A for Aunties
Jesse Q. Sutanto
Tradução: Luciana Dias e Maria Carmelita Dias
intrínseca
2022 - 347 páginas

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Tudo é rio



Sinopse: Tudo é rio é o livro de estreia de Carla Madeira. Com uma narrativa madura, precisa e ao mesmo tempo delicada e poética, o romance narra a história do casal Dalva e Venâncio, que tem a vida transformada após uma perda trágica, resultado do ciúme doentio do marido, e de Lucy, a prostituta mais depravada e cobiçada da cidade, que entra no caminho deles, formando um triângulo amoroso. A metáfora do rio se revela por meio da narrativa que flui – ora intensa, ora mais branda – de forma ininterrupta, mas também por meio do suor, da saliva, do sangue, das lágrimas, do sêmen, e Carla faz isso sem ser apelativa, sem sentimentalismo barato, com a habilidade que só os melhores escritores possuem.

Lucy era uma menina mimada pelos pais, desde pequena dominava e manipulava a todos, principalmente os adultos. Com a morte prematura de seus progenitores, se vê como uma gata borralheira vivendo com a tia e sua família. Até que no início da adolescência encontra a profissão que lhe dará independência e permitirá receber todos os elogios que sua beleza exige: resolve ser prostituta.

Venâncio é um homem amargurado. Teve uma infância difícil junto ao seu pai, que era machista e violento. Violência que encontra eco em Venâncio quando este encontra o amor e é correspondido. Dominado por um ciúme que cega, ele vive em eterno tormento e procura eventualmente os serviços do prostibulo próximo.


Enlouquecia qualquer um que passasse pelos seus cuidados. Não tinha um que não quisesse mais.


Dalva vem de uma família amorosa que fornece apoio aos seus filhos. A mãe é uma apaziguadora natural, que permite aos filhos viverem as consequências das suas escolhas. O pai trata a todos com carinho e tenta proteger a todos. Com os amigos sempre a volta, Dalva tem uma leveza e uma alegria, até se apaixonar por Venâncio.

E são os encontros e desencontros deste triângulo que está longe de ser amoroso que irão desaguar nas páginas de Tudo é Rio, um livro rápido e intenso de ler.


A escrita de Carla Madeira

A autora brasileira Carla Madeira utiliza a linguagem em terceira pessoa no seu Tudo é Rio. Os capítulos são curtos - um tem apenas uma palavra - e diretos, dando um ritmo rápido e intenso de leitura.

As informações e os personagens vão entrando aos poucos. Havendo um vai e vem do passado e presente para entender não só o crescimento e amadurecimento dos personagens, como os acontecimentos que os levaram até ali. E quanto mais você os conhece, mais fácil ou difícil fica de entender as escolhas do trio.


O amor tem nome, mas não é nada que a gente possa reconhecer só de olhar. A dor a gente sabe o que é, tem lugar e intensidade que cabem na ciência.


O rio aqui é uma metáfora justamente para este vai e vem. Em alguns momentos ele é mais profundo, outras mais raso, podendo ganhar rapidez nas descidas e um pouco de calma nas leves subidas, o que também permitiria lhe dar o nome de Tudo é Montanha Russa.


O que eu achei de Tudo é Rio

A primeira coisa é que educadamente discordo da escritora gaúcha Martha Medeiros que o chama de uma obra-prima. O livro é bom, mas como todo livro de estreia as referências gritam e sempre vai haver aquela questão que poderia ser melhor trabalhada.

Vou começar com a personagem Lucy, cujo início da história parece uma mistura de Cinderela e Bruna Surfistinha. A menina mimada pelos pais que se sente a gata borralheira ao ficar órfã e ter que morar com a tia, o tio e as duas primas. Sem conseguir manipular a tia, usa sua sexualidade natural para atender os desejos do seu ego e narcisismo. Pois sim, Lucy sente a necessidade de ser adorada, e as suas atitudes que podem parecer confiança e empoderamento para alguns me passou justamente o sentimento contrário, de uma pessoa insegura, carente e perdida.

Um silêncio de caco de vidro moído esfolando o corpo por dentro. Um desespero, nada por vir.

Já Venâncio é um homem atormentado pelas consequências de suas ações, ao qual frequentemente tenta terceirizar a sua culpa para a figura paterna. Em seu semblante o sofrimento pela esposa, que ama de forma desmedida, não o perdoar, transformando-o em uma espécie de zumbi. Curiosamente é essa postura de morto-vivo que encanta a prostituta Lucy, cuja obsessão por Venâncio só aumenta conforme ele a esnoba. Mas ao contrário de Lucy não achei a dor de Venâncio charmosa ou digna de pena, no mínimo caso de internação.

Deixei para o fim a personagem mais complexa na minha humilde opinião: Dalva. A personagem que despertou quase todas as minhas reações durante a leitura. A única que eu gostaria de estar dentro da mente para compreender seus atos. Como seguir morando com um homem que cometeu uma das ações mais imperdoáveis que um ser humano pode cometer? Sim, sua distância física e seu silêncio maltratam Venâncio, o homem que foi de seu grande amor a algoz. Mas porque optar por sobreviver e não recomeçar em outro lugar, longe de quem te entristece? Qual o motivo de não buscar segurança para viver novamente de forma plena? Amor doentio? Vingança?

Em uma cidade pequena, é difícil acreditar que alguém não se dê conta de que um mundo ao redor caminha junto. O outro existe.


Enfim, Dalva foi a razão por eu finalizar o livro com raiva e achar que o triângulo seriam candidatos perfeitos para habitar algum sanatório, ou quem sabe a Casa Verde de O Alienista?

Como extra falo sobre Francisca e Aurora. Duas figuras com participações mais pontuais que despertam interesse pelas suas próprias histórias e suas formas de lidarem com diferentes fatos. Francisca se doa as pessoas, sua história de vida toca em meio à loucura dos três personagens principais. Já Aurora é aquela pessoa que transmite tranquilidade e otimismo, dando espaço aos filhos para cometerem seus acertos e erros. O que torna mais complicado de entender o comportamento de Dalva.

O imperdoável, o rompimento irreversível. Nada a ser dito. Uma espécie de morte.

Mas só o fato de despertar inúmeras reações, já fez a leitura valer, e sim, é um livro que pode provocar vários debates sobre as relações humanas e sociais, desde o machismo, passando por relações que ultrapassam a definição de amor, perdas, perdão entre outras pautas que você pode encontrar.

Ficando a dica para os leitores do blog que curtem conflitos familiares, cenas apimentadas e claro, adoram ler.


Tudo é rio
Carla Madeira
Editora Record
2023 - 209
Edição original de 2014.


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Oração para desaparecer


Sinopse: Uma mulher nua, sem cabelos nem memória, é retirada da terra na pequena cidade de Almofala, fronteira entre Portugal e Espanha. Os únicos traços de sua origem são o sotaque brasileiro e um colar de búzios, mas a impressão é de que as pessoas que a recebem aguardam há muito a sua chegada. Nesse outro tempo em um país estranho entre os dois parece delinear um novo destino à sua frente. Ainda assim, ela precisará lidar com as imagens que, vez por outra, assombram sua mente - lembranças pouco nítidas de um amor perdido e de pessoas de um lugar distante. Ao finalmente familiarizar-se com a realidade imposta, porém, a mulher é confrontada com uma verdade incontornável: é impossível seguir sem saber de onde se veio.

No mês de Setembro/2023 a TAG Curadoria resolveu imitar sua coirmã TAG Inéditos e foi porta de entrada para um pré-lançamento do novo livro da escritora brasileira Socorro Acioli: Oração para desaparecer. O mimo foi um sachê com 40g de Nescafé Gold.

Na pequena aldeia de Almofala, localizada a cerca de 107 km da capital portuguesa Lisboa, uma mulher nasce da terra sem pelos e sem memória. Quem ajuda no seu "parto” é o casal Florice e Fernando, que aguardam a chegada da última ressurecta, termo utilizado para quem escapou por pouco da morte e ressurgiu em outro lugar para sua segunda chance.

Não sentia braços e pernas no breu daquela cova. Perdi a noção do meu corpo, achei que me transformaria em um bicho morto, me desfazendo até virar pó.


Pela forma de falar, fica claro que a jovem mulher é brasileira, mas desconhecendo o seu passado, onde apenas pequenos flashs lhe aparecem em sonho, acaba por receber o nome de Cida e sendo acolhida por Fátima, irmã de Florence.

Em sua nova vida ela encontra o amor e assim conhece Félix Ventura, um vendedor de passados contratado para reescrever documentalmente a sua história para que ela possa ir e vir, e que lhe liga todos os anos para saber se o passado verdadeiro retornou.

Vida e morte são mistérios que ninguém alcança. Tudo o que se fala sobre nascer e morrer é mera aposta.


Até Cida encontrar uma imagem de santa quebrada, misturando passado antigo, passado recente e presente, com um grande ponto de interrogação para o futuro.


A escrita de Socorro Acioli

A escritora brasileira Socorro Acioli separou a sua Oração para desaparecer em três partes. Nas duas primeiras temos uma narrativa em formato de entrevista. Sendo que na primeira parte temos Cida contando ao vendedor de passado toda a sua história desde que saiu da terra, e na segunda temos a conversa entre o homem que nunca a esqueceu com o que compartilha sua vida na atualidade. E na terceira parte volta Cida em uma narrativa em primeira pessoa para dar o fechamento a história.

A autora também homenageia dois escritores: José Eduardo Agualussa através do personagem Félix Ventura, cuja história é contada no livro O vendedor de passados, e José Saramago ao citar dois livros que não existem que foram inventados e citados em obras do autor português.

Quando a gente acha que entendeu tudo, o caos aparece para relembrar que não somos coisa nenhuma.


Também a uma espécie de brincadeira em relação as várias Almofalas. São seis aldeias em Portugal que recebem este nome, que é o mesmo de um pequeno distrito de Itarema, no estado do Ceará. Em Oração para desaparecer a personagem sai da Almofala brasileira e chega, através do uso de realismo mágico, em uma das Almofalas portuguesas.

Para dar base ao seu realismo mágico, a escritora usa de uma história real adaptada para a ficção. Nos anos de 1712 a 1758 foi construída na Almofala brasileira a igreja Nossa Senhora da Conceição de Almofala, originada de uma troca dos Tremembés de uma santa de ouro pela construção de um lugar para abriga-la.

Tentei muito, tentei de tudo, mas nada aconteceu. O que eu tenho são sopros de lembrança, nada por inteiro.


Mas passando mais de cem anos, não só a igreja como a cidade foi invadida pelas dunas, gerando um confronto generalizado entre indígenas, população local e membros da igreja. Durante a briga uma prostituta de nome Joana Camelo teria acertado um tamanco na cara do padre Antônio Tomaz. Passado quarenta e cinco anos, na década de 1940, com o trabalho conjunto da natureza e da força humana a igreja ressurgiu e as imagens que originaram as desavenças, retornaram. Hoje a construção está restaurada e tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

E é essa mistura de um Brasil mais antigo, magia e terras portuguesas que servem de cenário para uma mulher que preza a própria liberdade e independência se reencontrar. Pois apesar de usar o realismo mágico, este é secundário. O foco todo está em Cida.


O que eu achei de Oração para desaparecer

O uso do realismo mágico faz a história começar com força, despertando logo de cara o meu interesse e curiosidade em percorrer as páginas. Mas no decorrer da narrativa a autora se perdeu em devaneios românticos, e a narrativa em forma de entrevista é, na minha opinião, enfadonha.

E aqui ocorreu a minha quebra de expectativa como leitora, pois se o realismo mágico abre a história prometendo tudo, logo é substituído por um romance cujo amor não promete a eternidade.

A segunda coisa que faço todas as manhãs é ir até o espelho e dizer o dia, o mês e o ano em que começarei a viver a partir dali.


A brincadeira de usar um personagem de outro autor só funciona com quem conhece ou vai buscar informação, senão é apenas um coadjuvante com a função de ouvir a história da personagem. No meu caso a revista que vem junto com o livro me alertou, e ao pesquisar, fiquei bem curiosa para ler o livro do Agualusa, ao qual confesso, não li nada até hoje.

Eu achei muito interessante o fato real que ela usou como base para o teletransporte da personagem, embora não pareça que a ficção tenha ocorrido no mesmo período do original, e aqui fiquei com o sentimento de que poderia ter sido melhor aproveitado. 

Se fôssemos dois cavalos-marinhos eu estaria agora com ela. O mar teria salvado nosso amor, talvez, da armadilha da areia.


No geral nem gostei nem desgostei, apenas acho que não será um livro que ficará marcado na memória, mas isso só o tempo dirá.

Mas como sempre digo, gosto literário cada um tem o seu. Então para quem gosta de livros com realismo mágico, que são embasados em histórias reais, que torcem por personagens femininos fortes, talvez você tenha uma opinião completamente diferente da minha. Só você lendo para saber.


Oração para desaparecer
Socorro Acioli
TAG - Companhia das Letras
2023 - 205 páginas


terça-feira, 7 de novembro de 2023

Gênio e Nanquim


Sinopse: Uma brilhante coletânea de ensaios críticos escritos anonimamente para o Times Literary Suplement entre as duas guerras mundiais, Gênio e Nanquim une os maiores nomes da literatura com a escrita e a análise impecáveis de Virginia Woolf. A obra nos apresenta uma Woolf ensaísta, que expõe a estranheza das peças elisabetanas, o prazer de revisitar seus romances prediletos e o brilhantismo dos clássicos de Charlotte Brontë, George Eliot, Henry James, Thomas Hardy e Joseph Conrad. Mais do que isso, nos revela uma Virginia Woolf leitora, cujo entusiasmo pela literatura nos inspira até hoje.

Com prefácio da tradutora e mestre em estudos literários Emanuela Siqueira, Gênio e Nanquim reúne quatorze textos que podem parecer ensaios, uma crítica literária ou aquele momento fofoca onde Virginia Woolf compartilha detalhes da vida de determinado escritor publicados entre os anos de 1916 e 1935, tanto na TLS quanto na The Common Reader.

O primeiro texto é sobre Charlotte Brontë, inicialmente temos o centenário do nascimento da escritora, mas de forma delicada ele evoca ao mesmo tempo morte e memória em um belo tributo a autora nascida em 1850. Ao mesmo tempo Woolf nos lembra que Charlotte Brontë não possuía espaço no terreno literário, e apesar de não ter amigos para preservar sua memória na área profissional, seus livros conseguiram romper barreiras, despertando interesse em quem vê o seu nome, situação que permanece atual para qualquer uma das irmãs Brontë.

Desses cem anos, ela não viveu mais que trinta e nove, e é estranho refletir sobre a imagem diferente que faríamos dela se tivesse vivido uma longa vida.


Analisando tanto o que define como limitações profundas, como a sua sensibilidade e tenacidade, ao finalizar a leitura do texto eu fiquei com vontade de ler um livro da escritora e observar com mais atenção tudo o que ela havia descrito.

O segundo texto é Horas numa biblioteca, aqui Woolf nos leva para um dos lugares favoritos de todos os leitores e a relação do leitor com o objeto do seu desejo: os livros. Da juventude que se mantém através da curiosidade alimentada por inúmeras páginas até as listas de livros a serem lidos e os realmente lidos (e muitas vezes relidos).

Para começar, convém esclarecer a velha confusão entre o homem que ama aprender e o homem que ama ler, e salientar que não há qualquer ligação entre os dois.


Este foi o texto que me evocou lembranças das primeiras leituras, das idas a biblioteca da escola para procurar novos amigos, o cartão de leitura que chegava cheio no final do ano. 

Também achei o texto muito atual ao citar as comparações entre livros clássicos versus contemporâneos, e a disputa leitor versus intelectual, já que o leitor juiz - aquele que se sente no direito de dizer o que deve ser lido ou não, o que deve ser considerado boa literatura ou não, segue ativo e forte, principalmente nas discussões literárias.

O terceiro texto é sobre George Eliot, pseudônimo da romancista britânica Mary Ann Evans, ao qual eu não conhecia e fui para internet pesquisar, e assim achei ainda mais interessante o paralelo que Woolf faz entre as heroínas das histórias e a própria escritora.

Ela se tornou motivo de riso para os jovens, símbolo conveniente de um grupo de pessoas sérias, todas culpadas pela mesma idolatria e passíveis de desprezo com o mesmo escárnio.


Aliás, só a vida da própria escritora já chama atenção por si, uma mulher que usa um nome masculino para ter liberdade de escrita - precisamos lembrar que em 1850 mulheres deveriam escrever livros leves - passando por seus relacionamentos, cujas escolhas, olha que surpresa, poderiam causar alvoroço ainda nos dias de hoje.

O misto de solidão e tristeza, o transbordamento de energia e calor de seus livros, me deixaram curiosa para ler algumas de suas obras.

O quarto texto tem o charmoso título de As cartas de Henry James, misturando textos do autor com o seu ponto de vista em relação a fama e as críticas, a relação das cidades/países com a literatura e o fato de Henry James ser, na opinião de Woolf, um homem sem raízes, um andarilho que anda a dar suas voltas.

Contudo, ele foi a todos os lugares e conheceu todo mundo, como atesta a farta chuva de nomes célebres e grandes ocasiões.


O quinto texto é sobre John Evelyn, ao citar o diário do autor que estaria completando cem anos no momento do seu ensaio, ela faz um paralelo entre a sociedade, comportamento e um toque de crítica ao autor, ao qual considera a escrita opaca e sem profundidade.

O sexto texto é Sobre reler romances, tendo como base o lançamento de novas edições de escritoras reconhecidas, Woolf nos fala desde a origem do título de um livro até os sentimentos que atingem o leitor durante uma leitura. As diferentes formas narrativas, as críticas, tornando a crônica atemporal ao entender a alma dos leitores de qualquer época.

Para começo de conversa, é óbvio que colocamos na cabeça que existe um jeito certo de ler, que consiste em ler tudo e compreender o livro na íntegra.


O sétimo texto é Aos olhos de um contemporâneo, onde os críticos literários voltam a ser citados, agora com um foco no que é dito sobre os escritores contemporâneos de Woolf, que chega a fazer uma rápida comparação com os clássicos. Sua lista que relata tantos defeitos para os escritos de sua época nos lembra que a vida dá voltas, inclusive na literatura, já que muito dos citados, como Ulisses, hoje são clássicos.

O oitavo texto é sobre Montaigne e o seu texto que é pura filosofia sobre a vida, a morte, a beleza, a sanidade, a alegria... o que permite a Woolf falar da dificuldade que temos de nos expressar e de ser quem se é, até retornar ao próprio Montaigne que define como um homem sutil, meio sorridente, meio melancólico, com seus olhos caídos e seu semblante onírico e perplexo.

Afinal, em toda a literatura, quantas pessoas deram conta de se desenhar com uma pena?


O nono texto é sobre Joseph Conrad, ao qual Woolf abre falando da sua morte sem adeus - ele morreu de um ataque cardíaco súbito aos 96 anos de idade - e lista os livros do autor que ela acredita que irão virar clássicos, a relação com os navios, os grandes títulos na sua opinião.

O décimo texto é Notas sobre o teatro elisabetano, como não poderia deixar de ser, começa citando Shakespeare, e chega aos não tão conhecidos, mas tão perturbadoras quanto o do autor mais reconhecido. Da sensação de quem assiste as peças a uma comparação interessante com um clássico da literatura russa, Woolf nos coloca por algumas páginas em uma poltrona de um teatro inglês, enquanto explica o funcionamento das peças.

Pois tendemos a esquecer, quando lemos as obras-primas de um passado remoto, como é grande o poder que tem um corpo literário para se impor!


O décimo primeiro texto é Os romances de Thomas Hardy, a quem Woolf define como um mestre, ao qual espera que a grandiosidade seja reconhecida com mais justiça pelos críticos do futuro. A admiração que a escritora sente por Thomas Hardy é latente nas páginas, e eu que já li Jude, O Obscuro do autor - e gostei - fiquei com ainda mais vontade de conhecer outras obras do escritor.

Dezessete obras que Virginia Woolf nos apresenta desde o primeiro, publicado em 1871, com suas primeiras dificuldades, mas muita imaginação, seguido do segundo livro e contorno das dificuldades e assim listando, livro a livro a evolução. Há também comparação com o estilo de outros escritores, como Henry James, Flaubert e Dickens. Sempre confirmando a genialidade de Hardy.

Sua força era de caráter espiritual: ele fazia parecer honroso escrever e desejável escrever com sinceridade. 


O décimo segundo texto é A meia-irmã de Fanny Burney, onde temos uma espécie de fofoca literária. No momento do texto havia uma nova edição do livro Evelina e a revelação de que a história era baseada na vida da meia-irmã da autora: Maria Allen, ao qual Woolf define como insensata e desafortunada.

E como em um chá da tarde, o leitor fica sabendo desde como a família foi formada, a mistura da moça rústica, simplória, audaz e impetuosa com a família Burney cujos membros eram cosmopolitas, cultos, tímidos e reservados. E naturalmente vários detalhes das trocas de confidências de Fanny e Maria Allen que inspiraram o livro.

Eram tão cultos, tão inocentes; sabiam tanta coisa, e no entanto não sabiam metade do que ela sabia sobre a vida.


O décimo terceiro texto é Aurora Leigh, o livro de Elizabeth Barret Browning, cujo cachorro de estimação se tornou um livro da própria Virginia Woolf misturando fatos reais com ficção. Mais do que falar sobre o amor que os Browning provocavam nas pessoas até o livro em si, novamente o leitor vai para a poltrona ouvir sobre como a Aurora fictícia parece trazer à tona a Elizabeth real.

E assim mergulha na história da escritora que perdeu a mãe ainda na infância, quando a política não era um assunto feminino e a escrita como forma de vida.

Não havia dúvida de que os longos anos de reclusão haviam lhe causado um dano irreparável enquanto artista.


O décimo quarto texto é O leito de morte do capitão, o último texto de Virginia Woolf é sobre o escritor inglês e oficial da Royal Navy Frederick Marryat e começa juntamente com os últimos textos escritos quando estava perto da morte, tendo referência a uma de suas filhas que lhe trazia suas flores favoritas.

E aos poucos ela vai retornando no tempo, misturando diferentes momentos da vida de Frederick Marryat, dos seus diários de bordo aos dezesseis anos aos demais detalhes de sua vida pública, já sua vida particular não teve tantos detalhes, apenas algumas observações que corriam entre amigos, familiares e conhecidos.


O que eu achei de Gênio e Nanquim

A primeira coisa que me encantou foi a edição de Gênio e Nanquim, o cuidado e as cores deixaram a edição da TAG com a Harper Collins belíssima.

A segunda foi a surpresa com a leveza de alguns textos da Virginia Woolf, ao qual só havia lido Rumo ao Farol - hoje chamado Ao Farol - e achei bastante arrastado na época, me afastando de futuras leituras da escritora.

Mas quem era esse homem moribundo cujos pensamentos se voltaram para amor e flores enquanto jazia entre seus espelhos e pássaros pintados?


Tanto que demorei um certo tempo para abrir os ensaios literários, mas que ao final me surpreenderam positivamente e me abriram a mente para ler outros livros da autora.

Gostei principalmente dos textos finais, onde ela deixou o lado mais técnico e colocou uma leveza e em alguns casos o próprio coração - como no texto do Thomas Hardy - tornando a leitura muito mais envolvente e despertando em mim a curiosidade em conhecer os livros de alguns dos escritores citados.

Ficando a recomendação não apenas para quem é fã da Virginia Woolf, mas como uma alternativa para quem quer começar a ler a autora, para quem gosta de ler textos sobre literatura, para quem busca novos títulos para sua lista de desejos e naturalmente para os ratos de biblioteca que não resistem a virar páginas.


Gênio e Nanquim - Ensaios Literários
Genius and Ink: Virginia Woolf on How to Read
Virginia Woolf
Tradução: Stephanie Fernandes
TAG - Harper Collins
2021 - 175 páginas

terça-feira, 17 de outubro de 2023

País sem chapéu



Sinopse: Depois de vinte anos de exílio na América do Norte, um escritor regressa a seu Haiti natal e enfrenta o desafio de narrar essa experiência. À maneira de um pintor primitivo, com traço firme, cores vivas e perspectiva multifacetada, conta sua perambulação por Porto Príncipe e seu cotidiano singular. A cada passo surgem pequenos quadros com personagens e situações inusitadas; reencontros que disparam lembranças; diálogos inesperados, que revelam as inquietantes novidades do aqui e agora. Em meio ao vaivém de reconhecimento e estranhamento, onde se alternam o país real e o país sonhado, o autor é convidado a realizar uma viagem ao "país sem chapéu": o reino dos mortos e dos deuses do vodu. Primeiro livro de Dany Laferrière a sair em português, País sem chapéu é também um convite a penetrar num território que tem muitos paralelos com o nosso. Com o estilo límpido e permeado de ironia, Laferriére integra-se ao time de escritores de cultura híbrida, desarraigada, que erguem sua voz acima das fronteiras e falam com toda a humanidade.

No mês de agosto eu recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação do escritor brasileiro Allan da Rosa, o livro País sem chapéu do autor haitiano Dany Laferrière. O mimo foi um pequeno quadro branco magnético e uma caneta para escrever no mesmo.

O escritor Laferrière, ou Velhos Ossos como é chamado pelos mais íntimos, retorna para casa após vinte anos, sendo recebido pela sua mãe e pela sua Tia Renée. O rapaz de vinte e poucos anos que precisou abandonar o próprio país hoje é um autor reconhecido que vive o estranhamento de se sentir estrangeiro no seu próprio país.

Há muito tempo que espero este momento: poder sentar à minha mesa de trabalho para falar do Haiti com calma, com tempo.


Pois ao viver tanto tempo longe ele não estava preparado para a superpopulação e a miséria em que vários vivem, com as superstições já esquecidas e os seus próprios conflitos internos.

Tudo em meio a reencontros e redescobertas em que não só Laferrière, mas como o próprio leitor, vai descobrindo o país real e o país sonhado tem para nos contar.

E foi isso que aconteceu também desta vez: você ligou anteontem para dizer que ia chegar hoje.


A escrita de Dany Laferrière

Em uma mistura de ficção e autobiografia, o autor haitiano Dany Laferrière nomeia o personagem-narrador com o seu nome para compartilhar o próprio retorno ao país natal, ao qual precisou abandonar durante o período da ditatura militar.

País sem chapéu faz parte de uma coletânea de dez livros intitulada autobiografia americana, o que não impede a sua leitura individualmente, já que este é o seu primeiro livro publicado no Brasil.

Aproximo a xícara fumegante do meu nariz. Toda minha infância me sobe à cabeça.


Na narrativa dividida entre País real e País sonhado, encontramos subtítulos que acompanham o passo-a-passo do seu retorno, do reencontro com a família e amigos, a investigação de fatos curiosos que atraem não só a sua atenção, como também de militares estrangeiros, e os comparativos entre a cultura canadense em que viveu nos últimos vinte anos com a já esquecida que encontra em casa.

O que permite ao leitor através do narrador acompanhar o choque cultural que vai da religião na comparação e semelhanças do vodu versus religião católica, a pobreza nos detalhes da mesa capenga, passando pela mãe que oferece a própria filha até as notícias dos zumbis e da população estudada por passar semanas sem se alimentar. 

Este calor vai acabar comigo. Meu corpo viveu tempo demais no frio do norte.


E naturalmente as conexões e os estranhamentos nos reencontros, que aborda desde a mudança de visão sobre pessoas tão próximas como revisitar antigos amores.

Tudo com uma escrita direta, sem muitos diálogos ou descrições, o que exige mais atenção aos detalhes. Tornando a leitura aparentemente simples, mas rica no aspecto cultural, o que pode provocar estranhamentos e até mesmo teorias para quem olha de fora.


O que eu achei de País sem chapéu

Um alter ego que retorna ao Haiti 20 anos depois como um autor conhecido que aparece até na tv. Mas ao retornar aos seus parece compartilhar o mesmo olhar do leitor em uma terra desconhecida para ambos. Enquanto ele vai ao reencontro de suas memórias e busca informações para a escrita do seu novo livro, acompanhamos os seus questionamentos entre o país real e o país sonhado.

Os zumbis, tão falados no decorrer da história, me pareceram uma analogia a quem perdeu tudo, inclusive a esperança, e agora apenas anda miseravelmente pela terra sem esperar nada em troca. Outro retrato forte da fome é o povo estudado por militares por passarem meses sem se alimentarem, cujo ponto de interrogação também ficou na minha cabeça: como eles sobrevivem?

Deve-se oferecer primeiro aos mortos. Aqui, servimos os mortos antes dos vivos. São nossos antepassados.


No aspecto cultural achei muito interessante o fato de que o País sem chapéu é o mundo dos mortos, porque ninguém é enterrado de chapéu. Lembrando que o Haiti é um país muito quente, e eu imagino que seja bem difícil para os vivos circular pelas suas ruas sem um na cabeça.

Outro aspecto que eu achei bastante curioso foi a forma como o povo haitiano conseguiu manter viva a sua religião apesar da imposição de adotar a igreja católica, como a transformação de santos em seus deuses, permitindo que ao orar estivessem conversando com quem eles acreditam.

O problema não é tanto a multidão. É o cheiro. Por volta de cem mil pessoas concentradas em um espaço estreito sem água corrente.


No que se refere a relações pessoais, gostei muito da forma como o autor abordou a relação entre mãe e filho. Se por um lado ela ainda faz o café da manhã que ele gostava de tomar aos vinte anos, por outro se surpreende quando ele a lembra que já está na casa dos quarenta e acha que seria melhor eles dormirem em camas separadas, ainda que no mesmo quarto.

Outro fato aqui é que a distância permite que ele também a veja como mulher ao comentar a mudança das feições dela ao flertar com outros homens, realizar negociações de transporte ou troca de dinheiro sem se amedrontar.

Antigamente, o cemitério era o único lugar seguro no Haiti. Agora a gente se pergunta se vale a pena morrer neste país.


Também gostei bastante dos ditados que abrem cada capítulo. Na edição se tem o original em créole e a sua tradução, que me permitiu encontrar desde os mais reflexivos até os mais engraçados, havendo também os sem sentido nenhum para quem, como eu, não conhecia nada da cultura.

Mas apesar de compartilhar tantas situações através do olhar do personagem, o livro me pareceu um pouco impessoal. Não conseguia sentir o coração do narrador ali e fiquei pensando se isso foi uma forma de aumentar o sentimento de estranhamento, este bem presente, de quem fica tanto tempo longe do lugar de origem.

Eles vêm aqui estudar quanto tempo o ser humano pode ficar sem comer nem beber. Mas eles não sabem que já estamos mortos. Os brancos só querem acreditar naquilo que conseguem entender.


No geral gostei de País sem chapéu, me dando uma segunda visão do Haiti, cujo meu único contato tinha sido através de outro livro, chamado Clara da Luz do Mar, que também é muito bom e se passa em outra região do país.

Ficando a recomendação para quem gosta de viajar através da leitura para outras culturas, se interessa em conhecer escritores de diferentes países, curte livros de ficção com toque autobiográfico e naturalmente quem simplesmente quer ler.


País sem chapéu
Pays sans chapeau
Dany Laferrière
Tradução Heloisa Moreira
TAG - editora 34
2023 - 224 páginas
Publicado originalmente em 1996

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Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.


quarta-feira, 4 de outubro de 2023

A melhor história está por vir


Sinopse: Um furacão acaba de passar pela vida da professora espanhola Blanca Perea: o que parecia um casamento feliz de vinte anos termina bruscamente quando seu marido lhe abandona por uma mulher mais jovem, e logo ela é avisada de que, além da nova união, o novo casal também espera um filho. Incapaz de continuar vivendo do mesmo jeito enquanto seu coração está despedaçado, ela aceita uma proposta de emprego nos Estados Unidos para organizar os arquivos esquecidos do falecido professor Andrés Fontana. mais do que um recomeço, é a chance de Blanca se reencontrar, descobrir o que existe dentro de si e reconstruir sua felicidade. O trabalho, que no começo parece simples, se mostra cada vez mais suspeito e, entre documentos e novos colegas, como o charmoso Daniel Carter e o rígido diretor Luis Zárate, Blanca começa a perceber que algumas coisas não são esquecidas por acaso.

Escrito pela espanhola María Dueñas, a mesma autora de O Tempo Entre Costura, o título dado para a versão brasileira definitivamente não representa a narrativa. O título original de Misión Olvido representa muito melhor essa história que na verdade é três, já que podemos dizer que o livro é composto de três personagens principais.

Blanca Perea é uma professora universitária, na casa dos quarenta anos, com dois filhos iniciando a vida adulta, tentando administrar um divórcio recente após uma vida se colocando em segundo lugar para evolução profissional do marido. 

De qualquer maneira, antevia que meu trabalho não seria nem estimulante nem enriquecedor, mas, por ora, bastava-me ter conseguido, graças a ele, fugir da minha realidade com a pressa que do diabo fugindo da cruz. 


Precisando de um tempo, ela pede ajuda para uma transferência temporária. Entre as bolsas ainda disponíveis os destinos são Lituânia, Portugal e Estados Unidos. Em um primeiro momento ela cogita Portugal, onde ela estaria longe e perto ao mesmo tempo.

Enquanto decide o seu destino ela recebe mais uma notícia bomba, seu marido vai ser pai novamente, agora de uma menina. A menina que ele lhe negou tentar mesmo após inúmeros pedidos. E na necessidade de se afastar ainda mais, ela decide colocar um oceano de distância e pega uma bolsa na Califórnia.

Aquela pequena mudança de planos no calendário desviou irremediavelmente seu destino: por conta dos maus passes da história, nunca voltou.


O objeto da sua pesquisa é o professor espanhol Andrés Fontana, falecido em 1969, teve toda a sua documentação esquecida e armazenada de forma desorganizada em um porão da universidade.

Inicialmente o trabalho é feito de forma mecânica, mas logo a história que os inúmeros papeis escondem atraem a atenção de Blanca, fazendo com que ela dê a devida atenção ao homem que saiu da pobreza na Espanha e nunca mais voltou a ver os seus devido à guerra mundial e a ditadura que assolou o seu país.

Nessas circunstâncias, decidi comemorar a data, talvez para provar a mim mesma que a vida, apesar de tudo, seguia em frente.


Mas além da sua própria história, há os papeis falando das missões jesuíticas em território americano que despertam a atenção em outras pessoas. Principalmente as que lutam pela não instalação de um shopping em um agradável ponto da cidade de Santa Cecília.

Como o professor e escritor Daniel Carter, que além de estar na defesa do local foi um aluno orientado pelo próprio Andrés, tendo vivido as suas próprias aventuras na Espanha, as quais mudaram a sua vida para sempre.


A escrita de María Dueñas


A autora mescla narrativa em primeira e terceira pessoa, conforme o personagem escolhido para o capítulo. Por se tratar muito mais de passado do que presente, aos poucos ela vai nos revelando o cotidiano de Blanca, o caminho percorrido por Andrés e o motivo pelo interesse de Daniel nas missões tão pesquisadas pelo seu mestre.

E apesar da sinopse dar um ar de suspense, o mesmo não se reflete na escrita. Não há perigos físicos, apenas os mentais quando os personagens são obrigados a enfrentar os próprios fantasmas. Seja Blanca tendo que superar a própria mágoa com o fim de um relacionamento ao qual ela tanto se doou, seja Daniel tendo que abrir a sua própria caixa de pandora.

Uma vida que, de repente, quase de um dia para o outro, havia exigido que me reinventasse e começasse a dar voltas incertas.


Os personagens secundários complementam a história, como Rebecca que já passou pela mesma situação de Blanca e se torna sua primeira amiga nos Estados Unidos, a funcionária da universidade Fanny que foi recomendada por Andrés e vive com uma mãe amargurada, dona Antonia que recebe os jovens estudantes tão bem em sua casa na Espanha, a irmã de Blanca que quer ver fogo no parquinho e o diretor bonitão.

Como cenário há guerra, ditatura espanhola e os efeitos em sua sociedade enquanto os personagens vão construindo o que Blanca só irá descobrir anos depois, quando organizar os papeis de Andrés.


O que eu achei de A melhor história está por vir


Eu gostei muito do início da narrativa, a sequência de fatos que fazem Blanca trocar a Espanha pelos Estados Unidos para fugir de suas tristezas já mexeram comigo. Afinal, quantas pessoas já não desejaram pelo menos uma vez na vida deixar todos os problemas para trás e recomeçar do zero sem a sombra do passado? Mesmo que por um curto período de tempo.

E o livro captou de vez a minha atenção quando a vida do professor André Fontana passa a ser contada, aliás, o primeiro ponto negativo na leitura para mim foi parar de explorar a vida do personagem, que se apresentou tão rico e teve a sua narrativa interrompida do nada para entrar um terceiro personagem.

Mas atingir certa idade tem seu lado positivo. Você perde algumas coisas pelo caminho, mas ganha outras também. Aprende a ver o mundo de outra maneira, por exemplo, desenvolve sentimentos estranhos.


E quando a história passa a ser do Daniel Carter meu ritmo de leitura passou a diminuir, apesar de instigar a procura por uma conexão que vá além do fato de ele ser um aluno do Andrés enviado para a Espanha, tendo contato com pessoas do passado do professor, senti falta de mais exploração disso.

E não só dos contatos como do escritor que ele vai pesquisar, pois aqui, dando um spoiler - pule o parágrafo se não quiser nenhum - acaba sendo uma história de amor de início proibida que dá um toque de comédia na narrativa quando ganha apoio da missão americana em solo espanhol, mas ao mesmo tempo cansa um pouco, devido a pausa total que dá no restante da história.

Dizem que a compaixão é um sintoma de maturidade emocional; não é uma obrigação moral nem um sentimento que nasce da reflexão. 


O que me fez achar o tempo presente parecer um tanto superficial, ficando um tanto corrido e pouco explorado e as demais histórias com a sensação de que havia muito mais para ser explorado.

Mas no geral eu gostei, achei super interessante a questão das missões jesuíticas, que eu não tinha conhecimento nenhum, e me fez recordar as que temos no sul do Brasil e nos países vizinhos.

Ficando a dica para quem ficou curioso, gosta da escrita da autora, curte narrativas com fundo histórico ou simplesmente para quem gosta de ler.


A melhor história está por vir
Misión Olvido
María Dueñas
Tradução: Sandra Martha Dolinsky
Planeta - 352 páginas
Originalmente publicado em 2012


terça-feira, 26 de setembro de 2023

Memphis



Sinopse: Joan, de dez anos de idade, a mãe e a irmã mais nova fogem do temperamento explosivo do pai e buscam refúgio na casa ancestral da mãe, em Memphis. Não é a primeira vez que a violência altera o rumo da trajetória da família. À medida que cresce, Joan encontra alívio pintando retratos da comunidade de Memphis. Um dos seus modelos é a Srta. Dawn, uma enigmática vizinha que afirma saber algo sobre maldições e cujas histórias sobre o passado ajudam Joan a ver como sua paixão, imaginação e esperança implacável são, de fato, a continuação de uma longa tradição matrilinear. Joan começa a entender que a mãe, a mãe de sua mãe e as mães antes delas perseverarem, fizeram escolhas impossíveis e deixaram seus sonhos de lado para que sua vida não tivesse de ser definida pela perda e pela raiva. Desdobrando-se ao longo de setenta anos através de um coro de vozes inesquecíveis que se movem pelo tempo, Memphis pinta um retrato indelével sobre legados, celebrando toda a complexidade do que passamos, em família e como país: brutalidade e justiça, fé e perdão, sacrifício e amor.

Julho é o mês de aniversário da TAG Curadoria, motivo pelo qual a escolha do livro a ser enviado é deles. E o livro enviado foi Memphis da escritora norte-americana Tara M. Stringfellow, livro que frequentou algumas listas de melhores publicações de 2022, quem lhe fez companhia na caixinha foi uma vela aromática como mimo.

No ano de 1995 Joan e sua irmã Mia passam horas dentro de um carro enquanto a mãe Mirian foge da violência que sofreu do marido, sendo obrigada a correr para casa que foi de seus pais. Hoje habitada pela irmã August e seu sobrinho Derek.

Ao bater, ao abrir a porta, eu sabia que deixaríamos sair toda espécie de fantasmas.


Mas ao mesmo tempo que a mãe foge de suas dores, ela leva a sua filha mais velha de encontro as suas. Não importa que os médicos digam que ela era muito pequena e iria esquecer. Toda a dor está lá, latente e o medo escorre em forma de xixi em suas pernas infantis.

Só que as mulheres da família North são fortes, e desde Hazel que perdeu o seu grande amor e nunca desistiu de lutar para criar suas meninas bem, suas filhas e netas seguiram sua trilha para sobreviver e também aprender a viver, descobrindo na passagem dos anos que sim elas podem escolher os próprios caminhos e se tiverem coragem suficiente, realizar os próprios sonhos.

Deus era um duende. Uma fada. Podia assumir a forma que Ele quisesse.


O que permite o leitor acompanhar o crescimento, lutas, amadurecimento, dores e alegrias de três gerações da mesma família em uma escrita fluída que nos faz viver em Memphis nas suas pouco mais de trezentas páginas.


A escrita de Tara M. Stringfellow


Logo de início encontramos uma dedicatória a Gianna Floyd, filha do afro-americano George Floyd, cuja cenas do seu estrangulamento em maio de 2020 chocaram o mundo. A escritora americana Tara M. Stringfellow define o seu livro como um conto de fadas negro, e ao mesmo tempo que diz a menina que talvez ela ainda não esteja pronta para a leitura, transfere o questionamento para os leitores que abrem o seu livro.

A autora divide a história da família North em três partes em um vai e vem no tempo. Na primeira parte temos 1995, 1978 e 1988. Já a parte dois temos 1997, 1937, 1943, 1955 e 1978. Já na terceira e última página temos 2001, 2002, 2003, 1968 e 1985. E ao contrário do que se possa imaginar, o vai e vem de passado e presente, não torna a leitura confusa, muito pelo contrário, ela vai preenchendo os vácuos ao pouco, ao mesmo tempo que nos ajuda a entender mais da personalidade das irmãs Mirian e August.

Ela repreendera a filha apenas por querer existir como uma criança.


Existe diferença também na forma narrativa. Joan narra em primeira pessoa, o que nos permite ver e sentir tudo com o seu olhar. Já as demais personagens - Miriam, August e Hazel, já possuem um olhar externo, tendo a narrativa em terceira pessoa. Mia não tem capítulos próprios, tendo parte da sua história contada pelas outras.

E nestes capítulos elas abordam diferentes pontos de vida desde um amor que aquece o coração de quem lê, até a violência física e psicológica sofrida pelas mulheres. Do desbravamento de profissões em diferentes épocas - onde não só o gênero, como a cor pesam muito - até as disputas territoriais, a maternidade solo e a importância de uma rede de apoio. Com a busca pela força e coragem que muitas vezes as mulheres acreditam que não possuem, mas as encontram em momentos chaves.

Talvez eu não fosse tão diferente de meu pai. Um pensamento desconfortante. Talvez ele me tivesse feito dessa forma, percebi. com raiva.


Além disso a autora coloca vários fatos históricos como pano de fundo nos acontecimentos dos personagens. Desde a parte musical com o blues o rock'n'roll, passando pelo pós guerra, o assassinato de Martin Luther até o atentado de 11 de setembro. E naturalmente o racismo, pulsante em diferentes situações, e que influenciam até mesmo na escolha de uma profissão.

Tudo isso em uma escrita envolvente, fluída, que não só nos aproxima dos personagens, como nos faz sentir as mesmas sensações, nos gera questionamentos e indignações.


O que eu achei de Memphis


Memphis inicia com impacto, uma situação pesada envolvendo duas crianças já apertaram o meu coração. Mas a forma como as três gerações de mulheres da família North levanta a cabeça e recomeçam após cada queda, independente da dor, é surpreendente e encorajador para seguir virando página e mais página, se sentindo cada mais próxima delas.

O fato da escrita ser fluída também convida a imersão, sendo muito fácil ir descobrindo o passado de cada uma e acompanhar o presente que vai virando futuro em um tempo que não é nada linear. O que me fez pensar em um quadro que está sendo pintado aos poucos, e a cada capítulo uma parte nova dele me era revelada, até ter sua visão completa no final. Como se fosse uma das obras da sensível Joan.

O fato de estar acordada ou de ficar na cama em nada mudava o caos dentro ou fora de sua casa.


Sim, muitas vezes questionei a escolha de Miriam, que foge da violência e leva Joan para o cenário de sua experiência mais traumática. Entendi o orgulho de August, mas não o fato de ela não querer expor sua bela voz. Assim como não consegui nem me surpreender com Jax ao não se preocupar com as filhas após a partida, algo tão comum ainda nos dias de hoje. Mas acima de tudo admirei a coragem de cada uma delas em tomar as rédeas de suas vidas, fazerem suas próprias escolhas, errarem, acertarem, chorarem e sorrirem. 

Ficando a dica deste livro sensível e bem escrito, que facilmente pode prender a sua atenção como prendeu a minha.


Memphis
Tara M. Stringfellow
Tradução Carolina Candido
TAG - Alfa Books
2023 - 336 páginas
Publicado originalmente em 2022

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Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

A Fina Flor de Stanislaw Ponte Preta



Sinopse: "O diabo não frequenta os inferninhos de Copacabana com medo de ficar desmoralizado", anota Stanislaw Ponte Preta. Um dos mais irresistíveis intérpretes de nossa cultura e de nossos costumes, o pseudônimo (ou seria heterônimo) de Sérgio Porto misturou lirismo e humor para retratar como ninguém a beleza e o absurdo do Brasil durante as décadas de 1950 e 1960. Parte de uma geração de cronistas que revolucionou a literatura nacional, Porto foi campeão de audiência, lido e comentado por brasileiros de diferentes classes e idades. Nesta farta seleção, o leitor tem acesso às melhores crônicas de um autor que marcou época. Saboroso, hilariantes, implacáveis e debochados, seus textos se revelam mais atuais do que nunca.

Com seleção e apresentação de Alvaro Costa e Silva, A Fina Flor de Stanislaw Ponte Preta leva o leitor através desta coletânea de crônicas de volta aos anos de 1950 e 1960 no Brasil e apresenta - ou relembra conforme a idade do leitor - personagens como Tia Zulmira , Primo Altamirando e Rosamundo do cronista Stanislaw Ponte Preta, ou melhor do carioca Sérgio Porto.

Separado em oito partes identificando entre parênteses o ano,  quem nos introduz ao mundo de Stanislaw Ponte Preta é justamente Tia Zulmira, uma mulher que já foi condensa, vedete, cozinheira e dona de uma personalidade forte. Entre os personagens apresentados, ela foi a minha preferida. Adorei a ironia, o deboche e as situações sem noção envolvendo essa figura.

Depois fez ver que existem certas coisas que chateiam a gente de maneira tão sutil, que raramente a gente dá pelo motivo da chateação.


Quem segue a Tia Zulmira é justamente um primo criado por ela: o Primo Altamirando, um cara de caráter duvidoso, mas figurinha carimbada em noventa por cento das famílias. Assim como outras figuras que aparecem pelas crônicas.

Mas não, A Fina Flor não é um caso de família em livro, mas sim crônicas recheadas de ironias e deboche, as vezes escancarados, outras bem disfarçadas sobre os aspectos culturais, comportamentais, morais, urbanísticos e naturalmente políticos daquela época.


O que eu achei de A Fina Flor de Stanislaw Ponte Preta

O conjunto de crônicas que compõe A Fina Flor de Stanislaw Ponte Preta apresentam um retrato bastante interessante da década de 1950/1960 no Brasil. Permitindo uma visão mais divertida para quem não viveu a época onde importantes fatos históricos ocorreram no país.

Seja com parentes fictícios, seja com anedotas, não raro me recordei de outros cronistas do cotidiano, como o Luís Fernando Verissimo e o David Coimbra, já citados no blog por suas obras.  Pois a escrita de Sérgio Porto possui leveza e aquele toque de quem está sentado na mesa do bar contando história para os amigos.

Por que teria saído da casa de câmbio tão enfezada? Vai ver foi o preço do dolár.


Por ser uma obra do "século passado" algumas histórias e termos podem ferir os leitores mais sensíveis, já que naquela época não havia politicamente incorreto. Em compensação muitos dos comportamentos apresentados ainda estão longe de serem aposentados. Demonstrando que a sociedade não mudou tanto assim.

Outro ponto presente é a crítica ao governo, que pode ser sutil, irônica ou bem direta. Lembrando que o período englobado pega tanto o período do Jango quanto da ditatura militar, havendo muita censura nesta última e exigindo uma escrita onde a crítica está escondida no deboche do dia a dia dos personagens.

Tá na cara que um camarada distraído assim não dava certo em emprego nenhum e, de decadência em decadência, ele acabou arrumando um reles empreguinho de vendedor de bilhetes de loteria.


No geral me deparei com crônicas engraçadas, outras que retratam bem um período, algumas sem noção e outras que achei chatas mesmo. Não foi um livro que li direto, de uma única vez. Levei alguns meses intercalando com outras leituras, algo que livros de crônica e contos permitem com tranquilidade.

Um livro bem interessante para ver um pouco do Brasil em décadas passadas com uma visão mais bem-humorada, motivo pelo qual deixo a recomendação para quem se interessa pelo período.

A Fina Flor de Stanislaw Ponte Preta
Stanislaw Ponte Preta/Sérgio Porto
Organização: Alvaro Costa e Silva
Companhia das Letras
2021 - 358 páginas


terça-feira, 29 de agosto de 2023

A Mulher do Século



Sinopse: Mame Dennis é uma mulher sofisticada e extravagante que, no final dos anos 1920, vive com ousadia e alheia ao que os outros pensam. Porém, quando seu irmão morre, ela se torna a guardiã legal do jovem sobrinho, o educado Patrick. Apesar do choque de temperamentos, pouco a pouco eles desenvolvem uma relação de carinho e amizade, enfrentando juntos não apenas as convenções sociais, mas também a Grande Depressão norte-americana.

No mês de Junho/2023 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação da escritora italiana Ilaria Gaspari A Mulher do Século, do escritor americano Patrick Dennis/Edward Everett Tanner III. O mimo foi um jogo de cartas.

Em um dia de chuva o Patrick adulto se depara com uma antiga edição da revista Digest e um artigo escrito por um famoso escritor, que trata da personagem mais inesquecível que ele teria conhecido. Mas já nas primeiras linhas do texto o narrador tem despertado suas memórias com a pessoa mais inesquecível que surgiu em sua vida: tia Mame.

Personagem mais inesquecível? Faça-me o favor, esse escritor não faz a menor ideia do que está falando!


Tudo começa quando Patrick tinha 10 anos, órfã de mãe, o pai faz um testamento informando quem cuidara do menino e quem administrará suas finanças. Há uma série de condições, como o filho ser criado como protestante e ser enviado para escolas conservadoras.

A morte paterna não tarda a chegar e Patrick acompanhando pela empregada da família se vê arrumando as malas e indo para Nova York. Mas ao ir para a casa da tia então desconhecida, um novo mundo se abre para o menino, que passa a viver diferentes aventuras com uma mulher realmente a frente do seu tempo.

Mas Tia Mame não era de admitir derrotas. Existia nela um certo espírito insolente, típico de uma escoteira tagarela.


De escolas experimentais, passando pelo crash da bolsa que tornou milionários em pobres em poucos dias, casamento, ida para a universidade, guerra mundial, entre outros eventos, o narrador personagem traz além de uma comparação com a personagem inesquecível da revista a sua visão de por que sua tia é a mais única entre todas.

Tudo com uma ironia e excentricidade que podem arrancar boas gargalhadas e obrigar o leitor a concordar que tia Mame é sim uma personagem inesquecível.


A escrita de Patrick Dennis


A primeira pegadinha de A Mulher do Século está no nome do autor, que sim, é o mesmo do narrador personagem e um dos vários pseudônimos do autor norte-americano Edward Everett Tanner III, que foi um dos autores mais vendidos da metade do século 20 e chegou a ter três de seus livros de uma só vez na lista dos mais vendidos do New York Times.

Em A Mulher do Século a narrativa utilizada é em primeira pessoa, sendo o relato das memórias de Patrick Dennis em relação a várias etapas da sua vida, do final da infância até a vida adulta, sempre com a presença de sua Tia Mame.

Quando a Grande Depressão a atingiu, ela se jogou em muito mais carreiras do que a Personagem Inesquecível e, de um jeito ou de outro, ela também conseguiu nos salvar.


A escrita é uma mistura de ironia, deboche, drama e comédia. Gerando um livro leve e engraçado, ao mesmo tempo que crítico e reflexivo. Pois ele relata não apenas os momentos históricos das épocas vividas pelos personagens (como o crash da bolsa, a segunda grande guerra, a conquista da autonomia feminina, conflitos entre o norte e sul dos EUA, entre outros assuntos abordados) como também o estilo de vida da alta classe nova iorquina. 

Outro ponto interessante no livro é a sua divisão, ele é dividido em dez capítulos longos, mas muito redondos com início, meio e fim da memória contada. Se fosse transformado em uma minissérie, os capítulos já estariam previamente distribuídos. Aliás, a escrita de A Mulher do Século tem bem o estilo cinematográfico, sendo muito fácil ao leitor visualizar as cenas e entrar em sintonia com os diálogos.

Ela nunca revelava sua idade exata e, em um documento oficial, uma vez, escreveu "acima de vinte e um", o que ninguém pareceu se importar de questionar."


Aliás, A Mulher do Século já foi adaptado para o cinema - um dos filmes está disponível no Youtube para quem ficou curioso - como também peça teatral em um musical da Broadway.



O que eu achei de A Mulher do Século


Eu adorei a mistura de humor e crítica encarnada por uma mulher muito à frente do seu tempo - inclusive do nosso atual. Tia Mame é uma personagem que encanta e enlouquece as pessoas a sua volta, seja com o seu estilo de encarar a vida, seja pelo toque de sorte combinado com suas escolhas.

Em cada capítulo uma surpresa que podia ter um toque surreal, sem noção, superação ou tudo junto misturado. Em paralelo é muito bonita a forma como a tia e o sobrinho se conectam, apesar de personalidades tão diferentes, criando laços definitivos.

A carreira literária de Tia Mame surgiu mais como uma espécie de terapia, para tirá-la da depressão na qual ela havia mergulhado ao se tornar viúva.


Dei muita risada com a escola diferentona escolhida pela tia Mame para Patrick na infância e o desespero do Sr. Babcock - administrador da herança do menino - ao conhecer o local. O momento sogra sendo sogra se unindo a ex do filho Burnside, para separa-lo de Tia Mame me garantiram gargalhadas pelas situações inusitadas.

Mas também tive meu momento de agonia em um capítulo que Tia Mame resolve adotar órfãos de guerra e achei o capítulo das irmãs fantasmas - não, não tem fantasma na história, mas apelidei assim pelas irmãs andarem sempre de branco - o mais fraco. Mas não desnecessário, pois ele tem motivo para estar ali.

Quer dizer, existem certas coisas que você faz do jeito certo ou é melhor você nem fazer.


No geral eu adorei, me diverti e achei a leitura extremamente agradável. Me apaixonei pela Tia Mame, o que me faz recomendar e muito a leitura.


A Mulher do Século
Auntie Mame
Patrick Dennis / Edward Everett Tanner III
Tradução: Davi Boaventura
TAG - Dublinense
Edição 2023 - 352 páginas
Publicado originalmente em 1955

Ficou interessado em assinar a TAG? Indique o meu código de amigo ANDJ8CMF e ganhe 30% de desconto na primeira caixinha e eu ganho o mimo do mês.
Assinatura integralmente paga pelo autora da resenha.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

A boneca de Kokoschka



Sinopse: Em uma Dresden devastada pelos bombardeios, Bonifaz Vogel esconde na sua loja de pássaros o jovem judeu Isaac Dresner. A partir daí, vão entrando em cena diversos personagens, incluindo Mathias Popa, autor de A boneca de Kokoschka, que conta a história do pintor Oskar Kokoschka e da sua boneca, feita à imagem e semelhança da sua amada. E dessa singular galeria de vidas, Afonso Cruz compõe um irônico e magistral jogo de matrioskas, no qual a realidade se confunde com a ficção e cada história é ressignificada pelo olhar do outro.

Em meio a segunda guerra mundial, o jovem Isaac Dresner corre desesperadamente para salvar a sua vida. É na loja de pássaros onde seu pai havia construído uma cave que ele encontra a salvação ao se esconder no local. Um dia, passa a falar de seu esconderijo com Bonifaz Vogel, o dono do local, que curiosamente obedece a voz sem dono, gerando uma curiosa relação.

Com o fim da guerra, Isaak apesar de ser o mais jovem, adota Bonifaz, ao grupo se une Tsilia, que os encontrou por acaso na rua após fugir do local onde morava. Mudam de país para se reconstruir através da pintura e de uma livraria. E é o encanto de Isaak pelos livros que o faz cruzar com o escritor Mathias Popa.

Sabia que aquilo acontecia dentro da sua cabeça, mas tinha a estranha sensação de que as palavras vinham do soalho, passando-lhe pelos pés.


E este encontro irá gerar um livro dentro de um livro, onde o foco é Adele Varga, que após a guerra contrata um investigador para descobrir os mistérios que sua avó escondida. A chave de tudo é o autor que se torna personagem na própria história e transforma tudo em um jogo de espelho, quando as semelhanças entre a realidade da ficção de Afonso Cruz começam a ser refletida na ficção de Mathias Popa, e vice-versa.

E é neste romance também que o leitor irá encontrar a explicação do título, ou melhor, toda a origem da criação da boneca de Kokoschka.


A escrita de Afonso Cruz


A boneca de Kokoschka recebeu o Prêmio da União Europeia para a Literatura em 2012, mas este não é o único motivo pelo qual o livro do escritor português Afonso Cruz merece ser lido.

Com uma escrita que mistura agilidade, reflexões, cenas fortes, toques cômicos e lirismo, ele divide a sua boneca de Kokoschka em três partes mais o romance de Mathias Popa. Sendo a primeira parte referente a guerra, a segunda parte com as memórias de Isaac - e por tabela de Bonifaz e Tsilia - e seu encontro com Popa, o livro de Popa e a última parte onde temos um novo personagem.

As pessoas diziam que ele era estúpido e ele concordava acenando com a cabeça e passando os dedos no queixo.


Os capítulos são curtos, rápidos, as vezes fortes, outras vezes objetivos e também há momentos em que se explica um pouco mais sobre os personagens. A narrativa em sua maioria está em terceira pessoa, havendo alguns momentos nas memórias e cartas que o autor utiliza a narrativa em primeira pessoa.

O resultado é um livro envolvente que exige atenção para não se perder nos acontecimentos e reviravolta, pois se o início da história parece mais simples, no decorrer das páginas ela vai ganhar uma complexidade que não permite devaneios entre os parágrafos.

 

O que eu achei de A boneca de Kokoschka


O livro tem logo de início a cena mais emblemática para mim, Isaac Dresner brincando com um amigo vê o mesmo ser baleado na cabeça por um soldado alemão, e quando o garoto vai ao chão, a sua cabeça cai justamente no pé direito de Isaac. O peso da cena trágica o acompanhará para sempre, já que ele passa a coxear ligeiramente na perna direita, carregando eternamente os efeitos de uma guerra.

Já para o final achei surpreendente o cuidado pelos detalhes da obra de Mathias Popa, já que o livro dentro do livro é completo, com direito a capa, capítulos e apresentação do autor. E claro, o nome da editora do Isaac.

E, se o que é harmonioso e proporcional é fácil de reconhecer, donde vem essa atroz desproporção que vemos no mundo?


E apesar de ter sentido um certo estranhamento e perdido um pouco do meu ritmo de leitura quando comecei a ler o livro dentro do livro, no geral eu gostei bastante da obra.

Principalmente da primeira parte que eu achei triste e ao mesmo tempo formidável o fato do menino se comunicar pelo chão e o senhor simplesmente obedecer a aquela voz. O cuidado do menino que passou a auxiliar até nos negócios da loja e no fim da guerra se sentia pai de quem o ajudou sobreviver.

É assim o nosso destino, fazemos curvas e parábolas para que ele se cumpra com perfeição.


Pois existe muita humanidade entre os personagens, no auxilio mútuo e em suas buscas após anos de muitas perdas, e na eternização da memória através das histórias.  

Um livro que me chamou a atenção pelo resumo e não decepcionou, ficando aqui a minha recomendação de leitura.


A boneca de Kokoschka
Afonso Cruz
Editora Dublinense
Edição em Português de 2021
2010 - 288 páginas