sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Tudo é rio



Sinopse: Tudo é rio é o livro de estreia de Carla Madeira. Com uma narrativa madura, precisa e ao mesmo tempo delicada e poética, o romance narra a história do casal Dalva e Venâncio, que tem a vida transformada após uma perda trágica, resultado do ciúme doentio do marido, e de Lucy, a prostituta mais depravada e cobiçada da cidade, que entra no caminho deles, formando um triângulo amoroso. A metáfora do rio se revela por meio da narrativa que flui – ora intensa, ora mais branda – de forma ininterrupta, mas também por meio do suor, da saliva, do sangue, das lágrimas, do sêmen, e Carla faz isso sem ser apelativa, sem sentimentalismo barato, com a habilidade que só os melhores escritores possuem.

Lucy era uma menina mimada pelos pais, desde pequena dominava e manipulava a todos, principalmente os adultos. Com a morte prematura de seus progenitores, se vê como uma gata borralheira vivendo com a tia e sua família. Até que no início da adolescência encontra a profissão que lhe dará independência e permitirá receber todos os elogios que sua beleza exige: resolve ser prostituta.

Venâncio é um homem amargurado. Teve uma infância difícil junto ao seu pai, que era machista e violento. Violência que encontra eco em Venâncio quando este encontra o amor e é correspondido. Dominado por um ciúme que cega, ele vive em eterno tormento e procura eventualmente os serviços do prostibulo próximo.


Enlouquecia qualquer um que passasse pelos seus cuidados. Não tinha um que não quisesse mais.


Dalva vem de uma família amorosa que fornece apoio aos seus filhos. A mãe é uma apaziguadora natural, que permite aos filhos viverem as consequências das suas escolhas. O pai trata a todos com carinho e tenta proteger a todos. Com os amigos sempre a volta, Dalva tem uma leveza e uma alegria, até se apaixonar por Venâncio.

E são os encontros e desencontros deste triângulo que está longe de ser amoroso que irão desaguar nas páginas de Tudo é Rio, um livro rápido e intenso de ler.


A escrita de Carla Madeira

A autora brasileira Carla Madeira utiliza a linguagem em terceira pessoa no seu Tudo é Rio. Os capítulos são curtos - um tem apenas uma palavra - e diretos, dando um ritmo rápido e intenso de leitura.

As informações e os personagens vão entrando aos poucos. Havendo um vai e vem do passado e presente para entender não só o crescimento e amadurecimento dos personagens, como os acontecimentos que os levaram até ali. E quanto mais você os conhece, mais fácil ou difícil fica de entender as escolhas do trio.


O amor tem nome, mas não é nada que a gente possa reconhecer só de olhar. A dor a gente sabe o que é, tem lugar e intensidade que cabem na ciência.


O rio aqui é uma metáfora justamente para este vai e vem. Em alguns momentos ele é mais profundo, outras mais raso, podendo ganhar rapidez nas descidas e um pouco de calma nas leves subidas, o que também permitiria lhe dar o nome de Tudo é Montanha Russa.


O que eu achei de Tudo é Rio

A primeira coisa é que educadamente discordo da escritora gaúcha Martha Medeiros que o chama de uma obra-prima. O livro é bom, mas como todo livro de estreia as referências gritam e sempre vai haver aquela questão que poderia ser melhor trabalhada.

Vou começar com a personagem Lucy, cujo início da história parece uma mistura de Cinderela e Bruna Surfistinha. A menina mimada pelos pais que se sente a gata borralheira ao ficar órfã e ter que morar com a tia, o tio e as duas primas. Sem conseguir manipular a tia, usa sua sexualidade natural para atender os desejos do seu ego e narcisismo. Pois sim, Lucy sente a necessidade de ser adorada, e as suas atitudes que podem parecer confiança e empoderamento para alguns me passou justamente o sentimento contrário, de uma pessoa insegura, carente e perdida.

Um silêncio de caco de vidro moído esfolando o corpo por dentro. Um desespero, nada por vir.

Já Venâncio é um homem atormentado pelas consequências de suas ações, ao qual frequentemente tenta terceirizar a sua culpa para a figura paterna. Em seu semblante o sofrimento pela esposa, que ama de forma desmedida, não o perdoar, transformando-o em uma espécie de zumbi. Curiosamente é essa postura de morto-vivo que encanta a prostituta Lucy, cuja obsessão por Venâncio só aumenta conforme ele a esnoba. Mas ao contrário de Lucy não achei a dor de Venâncio charmosa ou digna de pena, no mínimo caso de internação.

Deixei para o fim a personagem mais complexa na minha humilde opinião: Dalva. A personagem que despertou quase todas as minhas reações durante a leitura. A única que eu gostaria de estar dentro da mente para compreender seus atos. Como seguir morando com um homem que cometeu uma das ações mais imperdoáveis que um ser humano pode cometer? Sim, sua distância física e seu silêncio maltratam Venâncio, o homem que foi de seu grande amor a algoz. Mas porque optar por sobreviver e não recomeçar em outro lugar, longe de quem te entristece? Qual o motivo de não buscar segurança para viver novamente de forma plena? Amor doentio? Vingança?

Em uma cidade pequena, é difícil acreditar que alguém não se dê conta de que um mundo ao redor caminha junto. O outro existe.


Enfim, Dalva foi a razão por eu finalizar o livro com raiva e achar que o triângulo seriam candidatos perfeitos para habitar algum sanatório, ou quem sabe a Casa Verde de O Alienista?

Como extra falo sobre Francisca e Aurora. Duas figuras com participações mais pontuais que despertam interesse pelas suas próprias histórias e suas formas de lidarem com diferentes fatos. Francisca se doa as pessoas, sua história de vida toca em meio à loucura dos três personagens principais. Já Aurora é aquela pessoa que transmite tranquilidade e otimismo, dando espaço aos filhos para cometerem seus acertos e erros. O que torna mais complicado de entender o comportamento de Dalva.

O imperdoável, o rompimento irreversível. Nada a ser dito. Uma espécie de morte.

Mas só o fato de despertar inúmeras reações, já fez a leitura valer, e sim, é um livro que pode provocar vários debates sobre as relações humanas e sociais, desde o machismo, passando por relações que ultrapassam a definição de amor, perdas, perdão entre outras pautas que você pode encontrar.

Ficando a dica para os leitores do blog que curtem conflitos familiares, cenas apimentadas e claro, adoram ler.


Tudo é rio
Carla Madeira
Editora Record
2023 - 209
Edição original de 2014.


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