sexta-feira, 24 de março de 2023

Confiança



Sinopse: Mesmo em meio ao caos e à efervescência dos loucos anos 1920, não há em Nova York quem não tenha ouvido falar do casal Benjamin e Helen Rask. Envoltos em uma aura de mistério e reverência, o lendário magnata de Wall Street e a herdeira de uma excêntrica linhagem aristocrática chegaram, juntos, ao topo de um mundo onde a riqueza parece não ter fim. A velocidade com que cada número registrado pelo teletipo é lido, interpretado e convertido em lucro por Benjamin parece absurda, irreal. A montanha de capital acumulado e o talento com que ele a ergueu, no entanto, causam inquietação na sociedade e muitas especulações sobre a capacidade de Rask prever cada próximo passo do mercado de ações. É nesse contexto que o casal Rask protagoniza um romance que supostamente disseca as verdades por trás do magnata, seu império e suas relações pessoais — e que, além disso, causa um grande escândalo no coração financeiro dos Estados Unidos. Mas, ao longo das décadas, outras versões dessa história vêm à tona: um manuscrito, memórias de uma pessoa ligada ao casal e um diário perdido. Tudo que até então parecia consolidado como fato é questionado. Afinal, se a verdade sempre resulta da soma das faces de uma pirâmide, Confiança é a prova de que mesmo a mais sólida e monumental delas é frágil em um solo de areia. Entre tantas versões e pontos de vista, em qual acreditar?

Em agosto/2022 recebi pelo já inexistente clube intrínsecos o livro Confiança do argentino cidadão do mundo Hernan Diaz. O mimo foi uma caixinha com botons.

Quatro histórias que para um desavisado podem parecer independentes entre si, mas conforme as páginas vão sendo passadas, observa-se que nada é coincidência e nem tudo é o que parece ser.

Harold Vanner abre com a sua ficção chamada Ligações, onde conta a história de um recluso casal de milionários de Nova York. Helen Rask é uma admiradora de todas as artes e apoiadora frequente do meio, oferecendo saraus para o seu ciclo particular. Para suas bem-feitorias  conta com o apoio do marido Benjamin Rask, um gênio das finanças que sai ileso do desastre da bolsa em 1929.

Tornou-se fascinado pelas contorções do dinheiro - como era possível dobrá-lo sobre si mesmo para que devorasse o próprio corpo.


Mas logo todos desconfiam da inspiração do escritor, inclusive Andrew Bevel, um milionário que fez fortuna com a bolsa de valores e não teve perdas durante a grande crise. E com o título de Minha vida ele compartilha as memórias de infância e do seu casamento com Mildren, uma mulher doce que também adorava o mundo das artes e morreu precocemente ao perder sua luta para o câncer.

Quem ajudou Andrew com suas memórias é a jovem Ida Partenza, que ao ver a antiga mansão dos Bevel se tornar um museu passa a compartilhar a sua versão da história. A escritora identifica a sua parte como Memórias, Relembradas e instiga o leitor a ter curiosidade sob o que os homens não revelaram em suas histórias, principalmente em relação a figura feminina central.

Todos receberam cartões de racionamento e, nos jantares, os convidados, em vestidos de noite e fraques, entregavam os próprios cartões aos anfitriões que forneciam a refeição.


E é ela, Mildred Bevel com seus Futuros que fecha o círculo, revelando o que foi cuidadosamente escondido.


A escrita de Hernan Diaz

Chamei Hernan Diaz de cidadão do mundo por ele ser argentino de nascimento, ter crescido na Suécia e feito o seu doutorado em Nova York, cidade escolhida para ser o cenário da sua desconstrução do mito do capital.

A escrita de Hernan Diaz em Confiança é bastante instigante, conforme o cenário vai sendo revelado e mostrando que a história tem muito mais camadas do que as duas primeiras histórias revelam.

Toda vida se organiza em torno de um pequeno número de eventos que nos impulsionam ou nos fazem minguar até parar.


Com narrativas em primeira e terceira pessoa, em meio a uma economia globalizada, é interessante observar como funcionava o mundo da bolsa de valores nos anos de 1920 e todo o impacto da grande crise de 1929 sob diferentes olhares. Impacto esse que muitos anos mais tarde serviu de base para uma criação de regras mínimas nas instituições financeiras de todo mundo.

Com isso temos o julgamento de quem lucrou em meio ao caos, a defesa de quem se sente falsamente acusado, a manipulação de memórias, os imigrantes que escaparam da primeira guerra mundial, a relação das famílias ricas com os diferentes tipos de arte, o trabalho de um ghost-writer e a não valorização e manipulação das mulheres na época.

As mulheres representavam apenas 1,5 por cento dos especuladores de diletantes no início da década. No fim chegaram a quase 40 por cento. Podia haver algum indicador mais claro do desastre por vir?


Tudo colocado de uma forma que o leitor facilmente consegue visualizar cada cena, das paisagens as expressões dos personagens, enquanto questiona o que seria a história real e o que é uma memória criada. 


O que eu achei de Confiança

Eu normalmente não leio contracapa nem resumo sobre o livro que escolhi para ser pega de surpresa pela história, motivo pelo qual espero um tempo para ler os livros comprados. Então ao chegar na segunda história o meu primeiro pensamento foi: será que são quatro histórias diferentes sobre o mesmo assunto (bolsa e 1929)?

Logo descobri que não e isso é o mais legal do livro.

Quase todos ajeitavam a gravata ou arrumavam o paletó, certificando-se de que estavam com uma aparência elegante e adequada antes de fazer as observações obscenas.


Na primeira história temos a ficção de um casal onde o homem foi de lenda a vilão nas finanças, o que irá perturbar a sua esposa. Na segunda começamos a ver as semelhanças na forma de viver dos dois homens para na terceira história tudo começar a se encaixar, conforme a escritora contratada para um livro de memórias começa a criar um milhão de dúvidas na cabeça dela e na do leitor.

Dúvidas que serão parcialmente respondidas conforme o nível de imaginação de quem está do outro lado das páginas na quarta história, quando um diário revela a verdadeira personagem protagonista.

A dor de ter sido traída por alguém tão próximo a mim parecia irrelevante quando comparada às consequências de uma quebra de confidencialidade. 


Motivo pelo qual eu gostei do livro. Da forma como o autor Hernan Diaz monta pouco a pouco a narrativa, onde peças diferentes pertencem ao mesmo quadro.

Também achei muito interessante a abordagem do papel feminino da época, o apagamento e descrição das mulheres pelos narradores masculinos como se fossem bibelôs de homens ricos e poderosos, sem capacidade de ter algum poder, força ou influência, mesmo que pudessem superar e muito os narradores.

Faça com que um número suficiente de indivíduos egoístas concorde e aja na mesma direção, e o resultado vai se parecer bastante com um desejo coletivo ou uma causa em comum.


Então sim, recomendo a leitura para quem curiosidade sobre o século XVIII, para quem curte narrativas diferentes, para os curiosos em ficção econômica, e claro, para quem como eu lê até bula de remédio.


Confiança
Trust
Hernan Diaz
Tradução: Marcello Lino
Intrínseca
2022 - 416 páginas

Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado - que foi encerrado em setembro/2022 - era pago integralmente pela autora. 

terça-feira, 7 de março de 2023

Poeta Chileno



Sinopse: Poeta chileno é um romance sobre a poesia, sobre poetas que desprezam o romance, sobre família e paternidade, sobre os labirintos da masculinidade contemporânea e os trágicos vaivéns do amor, sobre o desejo de pertencimento e, acima de tudo, sobre o sentimento de ler e escrever em nossos dias.

No inverno de 1991 Carla e Gonzalo são adolescentes que em seu namorico vivem as primeiras descobertas que não são exatamente o esperado para Carla, gerando assim o rompimento do relacionamento.

Para externar toda a tristeza que lhe consome, Gonzalo passa a escrever muitos poemas e envia-los a sua amada, e é o amor a escrita que o leva a definir sua carreira na vida adulta.

Os pais biológicos, os pais separados, os pais da porta para fora são todos a mesma merda.

E é na vida adulta que ele reencontra Carla, que agora trabalha para a empresa da família, tem um filho chamado Vicente de seis anos e é separada de Léo, um corretor de móveis que se preocupa mais com sua coleção de carros em miniatura do que com o menino.

Com a evolução de Gonzalo nos pontos que mais deixava a desejar, os dois reatam o relacionamento e ele se torna padrasto do menino, influenciando e sendo influenciado muito mais do que ele mesmo poderia imaginar.


A escrita de Alejandro Zambra

Usando uma narrativa em terceira pessoa, o escritor chileno Alejandro Zambra conta para o leitor nesta narrativa de pouco mais de quatrocentas páginas a vida de Gonzalo, Carla, Vicente e Pru - sendo esta última não tão completa, mas sua participação não pode ser considerada coadjuvante na história.

Ambientado no Chile, o romance permite conhecer um pouco mais da sociedade chilena pós ditadura em meio ao despertar da poesia em um país onde nomes como Pablo Neruda e Gabriela Mistral tornam o mesmo uma referência no mundo literário.

E você acha mesmo que esses adultos que vivem brigando, de repente, vão resolver ficar mancomunados pra mentir para as crianças no Natal?

Tudo dentro de uma família que seria chamada de não tradicional se não fosse o fato de sua composição ser tão comum e numerosa quanto as demais. Tendo aqui como diferencial falar sobre paternidade sobre o olhar do padrasto e não do pai, uma figura que é esquecida até mesmo nos contos de fadas (afinal, é a madrasta que é sempre a vilã).

E não podemos esquecer do amor, afinal são raras as pessoas que não associam o sentimento a poesia. E aqui ele se apresenta de diferentes formas, estilos e dúvidas, afinal, no complexo processo da paixão que vira amor que vira amizade que vira ódio não existe nada que faça gerar mais perguntas que o amor.

O tempo nos encurrala. O tempo nos engorda, desenha rugas, cabelos brancos e muletas em nós.

Mas ao contrário do que um leitor desavisado possa pensar neste momento, sem nada meloso ou pedante. Pelo contrário, a escrita de Alejandro Zambra tem a mistura certa de ironia, emoção, gargalhadas e vontade de virar mais uma página para acompanhar a vida destes quatro personagens.


O que eu achei de Poeta Chileno

Eu não conhecia o autor Alejandro Zambra, recebi dois de seus livros quando o blog fez parte do Time de Leitores da Cia das Letras em 2021, e preciso dizer que adorei Poeta Chileno.

A forma leve de como ele consegue abordar diferentes assuntos ao mesmo tempo que realiza uma homenagem a poesia e aos próprios poetas chilenos através de seus encontros, diálogos, publicações simplesmente me encantou.

Dizem que isto é felicidade: nunca sentir que seria melhor estar em outro lugar, nunca sentir que seria melhor ser alguém que não você.

Sobre leveza, gostei de ele trazer diferentes visões da paternidade, que vão do avô cheio de filhos que não cuida de nenhum, do pai de Vicente que precisa de uma conversa com Gonçalo para participar mais da vida do próprio filho, até chegarmos ao olhar de quem não é o pai e sim o padrasto, aquele homem que cai de paraquedas em meio a uma família com todas as suas manias e precisa descobrir como apresentar aos outros o menino que o acompanha em todos os lugares. 

Os laços e as influências que se criam entre Gonçalo e Vicente são mais fortes do que eles mesmo querem acreditar, algo que começa na forma de se apresentar até o companheirismo dos dois na rotina do dia-a-dia. E entre os diferentes amores apresentados na narrativa, com certeza o mais bonito.

Fracassar seria, para ele, acordar de repente em meio a uma vida insossa, condenado à prisão perpétua de um trabalho miserável.

Em relação as personagens femininas, embora não sejam as protagonistas na narrativa, trazem questões importantes sobre as escolhas que precisam fazer e o papel da mulher dentro da literatura, que vai além da chilena.

Também gostei de saber mais sobre o funcionamento do próprio Chile, como a questão de todas as universidades serem pagas, dificultando e muito o acesso para quem não tem condição financeira para arcar e assim acabam impedidos de evoluir profissionalmente nas áreas desejadas.

Na poesia, você tem que jogar com tudo. Se for um bom poeta, pode escrever romances para ganhar uma graninha, porque escrever romances é mais fácil.

Somado a tudo isso os personagens são carismáticos, a escrita fluída e envolvente, não foi raro dar uma gargalhada com o desenrolar da história, assim como a divertida inserção de fotos, como de um gato para representar Oscuridad, a amada felina que tinha como concorrente de ração o próprio Vicente.

Definitivamente depois de tudo isso, acho até meio redundante dizer que sim, recomendo e muito a leitura de Poeta Chileno. Com certeza vocês não irão se arrepender.


Poeta chileno
Alejandro Zambra
Tradução: Miguel Del Castillho
Companhia das Letras
2020 - 428 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.