Sinopse: K. é a história de um pai em busca do paradeiro da filha desaparecida durante os anos de chumbo. A angústia desse pai é costurada com vagar, intercalada por vozes distintas que irrompem em meio à sua odisseia. Vozes que acompanharão, ora sofrida e comoventes, ora escabrosas e cínicas, o desfiar da trama. O leitor fica suspenso, como à beira de um abismo, incapaz de interromper a leitura, mesmo que conheça, desde as primeiras linhas, o desfecho da história.
No mês de Junho/2022 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria o livro K. do escritor brasileiro B. Kucinski. A indicação foi da também escritora brasileira Natalia Timerman. O mimo foi uma pequena caixa em MDF para ser usada para armazenar memórias.
Eu começo esta resenha dizendo que K. é um livro bastante indicado para quem não viveu os anos de ditadura no Brasil ou que conseguiu viver durante aquele período em uma bolha. Não que ele traga a história completa de anos tão vergonhosos da nossa história, mas é uma mistura de ficção e fatos reais que podem estimular a buscar por mais informações e entender o motivo pelo qual este tipo de regime nunca deveria ser aceito.
Sempre me emociono à vista de seu nome no envelope. E me pergunto: como é possível enviar reiteradamente cartas a quem inexiste há mais de três décadas?
O escritor Bernardo Kucinski nos apresenta diferentes personagens para contar nesta auto ficção o desaparecimento de sua irmã Ana Rosa Kucinski em abril de 1974. Neste período o autor estava na Inglaterra, então quem percorre a busca pela filha desaparecida é o pai, que mescla a dura realidade de não saber o paradeiro de uma pessoa amada com as próprias lembranças.
Pois K. é um judeu polonês que ao escapar para o Brasil da segunda grande guerra ainda tenta preservar o iídiche, língua materna de milhares de judeus que desapareceu durante o holocausto. O que lhe proporciona conhecer várias pessoas, ser respeitado por algumas, mas não ser ajudado por nenhuma que por aqui viviam. Descobrindo que é entre os desconhecidos, tão perdidos em suas buscas quanto ele, que algumas peças de uma quebra-cabeça nunca resolvido serão juntadas.
Ele, que nunca blasfemava, que tolerante aceitava as pessoas como elas eram, viu-se descontrolado, praguejando.
Além do pai estão os companheiros da irmã, em sua luta política, há capturas e torturas, nem todos suportam a dor, nem todos possuem resistência para ficarem calados. O risco e a condenação existem em ambos os lados, o que permite entender quem preferiu ficar neutro durante todo o período, tornando a ignorância e alienação o melhor dos salvos condutos.
Pois em meio a uma guerra interna de um país, os atos e pensamentos acabam tendo mais semelhanças do que se imagina. Havendo uma linha tênue entre o certo e o errado, o justo e o desonesto, a busca de um ideal e a desumanização.
Há um informante entre eles, um traidor ou um agente infiltrado, alguém muito próximo a eles dois, entre os poucos que restaram.
Há os torturadores e seus pequenos obstáculos, como o que fazer com o cachorro de um casal sequestrado? Ou a pobre faxineira que se vê diante de um lugar imundo por uma sujeira comum.
Os que mandam ordens de morte sem remorso, como máquinas que nada vislumbram por trás de cada alma. Ou seus engenhos com cartas e telefonemas falsos, tentando iludir familiares com relações em outros países, de que seus filhos, pais, maridos, simplesmente fugiram e se encontram vivos em outro lugar.
Além do mundo que se vê e nos acalma com seus bons-dias boas-tardes, como vai tudo bem, há um outro que não se deixa ver, um mundo de obscenidades e vilanias.
E há também referência a outras famílias, como do Marcelo Rubens Paiva, que conta a história do seu pai e a luta de sua mãe no livro Ainda estou aqui, já resenhado aqui no blog.
A escrita de B. Kucinski
Memórias. O autor Bernardo Kucinski utiliza das memórias de vivência, do que conhece, do que leu e da sua imaginação para escrever um livro direto, forte, com diferentes olhares e sem nenhuma esperança.
Desde o início sabemos que não houve final feliz, que sua irmã foi mais uma das desaparecidas politicas aos quais a família não pode nem ao menos fazer uma cerimônia de despedida, já que nem isso foi permitido pelo rabino.
Podia pagar pelos livros, mas os roubava por princípio. Expropriava-os em nome da revolução socialista, dizia aos poucos cúmplices em segredo.
É uma escrita que nos faz repetir expressões como Porque isso aconteceu? Como isso foi permitido? Onde está a humanidade desta gente? O que passa na cabeça alguém querer isso de volta? Qual o motivo de manter essa tortura psicológica mesmo passado décadas dos acontecimentos?
Não é à toa que o livro foi um dos finalistas dos prêmios São Paulo de Literatura e Oceanos.
O que eu achei
Creio que por tudo o que escrevi até aqui, ficou claro que K. não é um livro fácil de ler. Apesar de serem menos de duzentas páginas, é uma história pesada, que gera angústia, arrepios, e um sentimento de desespero ao imaginar o que cada família passou.
Tive também momento de indignação, como da postura da USP, local onde Ana Rosa era professora, que a demite por abandono de emprego por não constar registro de sua prisão. Na comissão, nenhuma voz se levanta, ninguém se arrisca, todos simplesmente aceitam. Mas quem pode culpa-los? Quantos leitores não fariam o mesmo para se manterem vivos?
Toda vez é assim, levanta de um pulo, toda assanhada, depois desaba, burra, não sabe que eles nunca mais vão voltar. Como é que os cachorros podem ser tão espertos e tão burros ao mesmo tempo?
E como não entender a culpa paterna, de quem por tanto tempo se dedicou aos próprios hobbies sem saber que o tempo com a filha seria cortado de maneira brutal e sem resposta? Como imaginar que o tempo dedicado a literatura o afastaria da vida da filha? Que um novo casamento poderia dar início a um abismo? E principalmente, que deveriam haver mais fotos para quem sabe alguém a reconhecesse?
Uma leitura dolorida que vale a pena ser vivida, nem que seja para não repetirmos os mesmos erros, para entender o vazio gritado por muitos, para aprender que opiniões diferentes não devem ser silenciadas, mas viverem pacificamente de forma democrática. Um livro de memórias para nos fazer lembrar o que nunca deve ser esquecido.
K.
B. Kucinski
TAG - Companhia das Letras
2011 - 199 páginas
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