terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Menino Mamba-Negra



Sinopse: ÁDEN, IÉMEN, 1935. Uma cidade vibrante, viva, cheia de perigos ocultos. E lar de Jama, um garoto de dez anos que se vê sozinho no mundo após a morte inesperada de sua mãe. Para chegar na Somália, terra natal de seus ancestrais nômades, o menino cruza o Mar Vermelho. A guerra está no horizonte e as forças fascistas italianas que controlam parte da África Oriental estão se preparando para a batalha, mas Jama não pode descansar até descobrir se o pai, ausente de sua vida desde que ele era bebê, está vivo em algum lugar. Assim começa uma jornada épica que levará Jama ao norte através de Djibouti, Eritreia e Sudão, países devastados pela guerra, até chegar ao Egito. De lá, a bordo de um navio transportando refugiados judeus recém-libertos dos campos de concentração, o garoto segue através dos mares para a Grã- -Bretanha. Esta história da longa caminhada de um garoto em busca de liberdade também é a história de como a Segunda Guerra Mundial afetou a África e seu povo; uma história sobre sentir-se deslocado e, no fim, encontrar-se novamente.

Em novembro/21 foi o mês temático das caixinhas da TAG, onde os assinantes receberam afronarrativas. Pela minha assinatura da TAG Inéditos eu recebi Menino Mamba-Negra da escritora Nadifa Mohamed - nascida em Hargeisa, Somália - que usou a ficção para contar um pouco das aventuras do próprio pai.

Quando Ambaro estava grávida, aos dezessete anos, ela acabava se separando da caravana devido a sua lentidão. Um dia, cansada demais para seguir caminhando, sentou em uma velha árvore, e enquanto sua respiração normalizava, sentiu algo em suas costas, seguindo em direção ao umbigo. O que parecia ser uma mão se revelou uma mamba enorme, cobra venenosa e muito rápida, que se enrolou em torno da sua barriga. Sem se mexer, Ambaro viu a cobra pousar a cabeça em sua barriga e ouvir a batidas do coração do seu bebê. Depois de um tempo juntos, a cobra simplesmente a deixou, e assim ela passou a chamar o filho de Goode, que significa mamba-negra.


Conto a você esta história para poder transformar o sangue e os ossos de meu pai - e seja qual for a mágica que a mãe dele costurou debaixo de sua pele - em história.


Mas Ambaro e seu Goode - oficialmente conhecido como Jama - tiveram que abandonar a família, indo os dois para um lado e o marido para outro em busca de recursos financeiros para uma vida melhor. Morando de favor na casa de parentes distantes, eles são constantemente constrangidos e destratados.

Por trabalhar doze horas por dia, Jama passa rolando pelas ruas do Áden, sem ir para a escola e brincando com outros meninos. Mas a morte inesperada da sua mãe é o primeiro ato para o seu caminho mudar. Se em um primeiro momento a tia-avó o resgata e o leva de volta para Hargeisa na Somalilândia, mas um novo incidente o faz sair em busca do pai.


Meninos do mercado dos mais diferentes tons, credos e línguas se reuniam na praia para brincar, tomar banho e lutar.


E assim passamos a seguir a vida de Jama de outubro de 1935 até setembro de 1947, em uma jornada por Djibouti, Eritreia, Sudão, Egito e Londres, onde é possível acompanhar a presença de soldados em território africano, os efeitos devastadores da guerra e a reconstrução quando tudo chegou ao fim.


Os Personagens

Jama é o personagem principal da história, mas isso não significa que os outros apenas orbitem ao seu redor, pois apesar de todos os percalços, ele teve vários anjos em sua vida.

Mas é através das suas lembranças que conhecemos o amor de Ambaro e Guure, os pais de Jama, cujos perfis eram muito diferentes dos seus clã, a ponto de Ambaro desafiar a família para se casar com Guure.


Me perdoe, meu bebê serpente, e não viva a vida que eu vivi, você merece coisa melhor.


Já Abdi e Shidani são tio e sobrinho com pouca diferença de idade, crianças que se aventuram nas ruas de Áden com Jama e mais tarde o reencontro em um acampamento militar. Dupla que ganhou o meu coração e o deixou pesado na inútil luta nas montanhas de Eritreia.

Entre os que ajudam, compartilhando um pouco de sua história, estão Jinnow, Idea e Amina, Jibreel e Lorenzo, entre outros, alguns bons, outros que não são exatamente flor que se cheire, mas que de certa forma permitiram a sobrevivência ao longo caminho do menino que vira homem em meio aos obstáculos.


Nenhuma pessoa morre de verdade enquanto há outras que se recordam dela, que têm afeto por ela.


Há também outros personagens de presença marcante que não irei nomear justamente para não estragar a expectativa de leitura, pois mesmo para os mais curiosos é necessário deixar alguns elementos surpresas.

Mas o fato é que ninguém aparece à toa, todos representam um povo, uma determinada situação, um momento da história, enriquecendo ainda mais o relato. Seja por um capítulo ou aparecendo e desaparecendo conforme o vento levava Jama.


A narrativa de Natifa Mohamed

Natifa Mohamed não é somente a escritora, mas também a narradora da história que nos conta, ou como ela diz o griô do seu pai. E com razão, pois a autora a colocou no papel para contar ao mundo as aventuras e desventuras não só do pai-herói, mas também das comunidades que ele percorreu.

Não um herói de espada e capa, ou romântico que arranca suspiro das donzelas. Mas de um menino que sobrevive à miséria, a violência, a humilhação, as perdas afetivas, e mesmo assim segue em busca dos sonhos, do destino dourado prometido e tantas vezes repetido pela sua mãe.


O ar exalava uma corrupção, um aroma misturado de sordidez, suor e fezes de cabra.


E o seu olhar é gentil e poético, as vezes terno em meio a dor. Pois onde a fome e morte se unem o sofrimento pulsa mais forte que as batidas do coração.

Ao mesmo tempo ela nos dá uma visão dos costumes, da existência de hierarquia mesmo entre os mais pobres, a divisão em clãs, as crenças, alguns rituais, as festas e as comidas.


À sua frente, havia as maiores montanhas e colinas que já vira, subindo além das nuvens.


Somado a isso temos uma forte crítica ao colonialismo europeu no continente africano, assim como uma visão forte do comportamento dos vencedores após a guerra com os colonizados e as vítimas do regime nazista.


O que eu achei

Eu gostei muito do livro, me senti viajando junto com Jama pelas estradas, o frio na espinha em cada situação complicada, mesmo sabendo desde o início que ele iria sobreviver, afinal Natifa nos revela logo de início que é o pai quem lhe conta as histórias.

Também achei ele bem escrito, fluído, do tipo que desperta a curiosidade em saber como ele se livrou de determinada enrascada, o que aconteceu após algum incidente, o que Jama havia feito a seguir. 


Queria encostar na barba por fazer do pai, traçar o único rosto que tinha semelhança com o seu.


E talvez por isso a única coisa que me incomodou foi o final, pois como a história termina em 1947 e pelos agradecimentos e local de nascimento da própria autora é possível ver que outras mudanças aconteceram na vida de Goode, o que me deixou com o sentimento de que deveria haver uma continuação.

Fiz uma pesquisa rápida e a princípio não encontrei, mas se alguém souber, por favor, deixe o título nos comentários.


Achava tudo interessante agora, fascismo, comunismo, anarquismo, só conseguia confiar no que era claramente idiota.


E como não poderia deixar de ser, eu naturalmente recomendo a leitura. Com certeza irá agradar quem quer saber mais sobre a África, para quem gosta de uma aventura baseada em histórias reais, para quem fica mais esperançoso ao ler superações, para quem gosta de acompanhar relatos extremamente humanos.

Menino Mamba.Negra
Black Mamba Boy
Nadifa Mohamed
Tradução: Marina Della Valle
TAG - Tordesilhas
2010 - 284 páginas

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quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Partes de uma casa



Sinopse: Coletânea de contos organizada por Rafaela Pechansky, com prefácio de Itamar Vieira Júnior. João Maia, 237 - Carol Bensimon Solange - Jeferson Tenório Sem saída - Marília Garcia Não me olha, não diz nada - Natália Borges Polesso Basta a cada dia o seu próprio mal - Miguel Del Castillo A porta da rua - Caetano W. Galindo Luan Ângelo - Amara Moira.

Enviado em 2021 como mimo do kit que tinha o livro O pássaro secreto, foi feito com exclusividade para a TAG enviar aos seus associados, tendo como base o contexto vivido durante a pandemia de COVID-19 cuja frase Fique em casa foi muito usada principalmente em 2020.

Afinal como Itamar Vieira Júnior nos lembra no Prefácio, os últimos meses tornou a casa sinônimo de proteção, mesmo quando nela há desigualdade social, transformações que precisam ser compreendidas, memórias , dúvidas, barulhos, silêncios e as nossas próprias loucuras.

Repasso abaixo cada um dos contos para compartilhar com vocês um pouco mais dos sete contos e as minhas impressões.

João Maia, 237

Quem abre a coletânea é a escritora gaúcha Carol Bensimon, no seu conto um homem carrega o fardo de no final da adolescência dirigir alcoolizado e sofrer um grave acidente, ao qual ocasionou a morte do caroneiro Leonardo.

Os rapazes haviam se conhecido em uma festa e se descobriram vizinho, Leonardo tinha ganhado uma guitarra elétrica e já planejava o primeiro show em um palco que ficaria no próprio jardim. 

O fim deste sonho marca a vida do motorista sobrevivente no restante dos seus dias.


Ele já era a parte mais sombria da noite dessa pessoa.


Sabe aquele detalhe que pode te estragar a leitura? Pois então, foi o que aconteceu comigo neste conto, quando logo no início a autora liga o acidente a passagem do Trensurb - como é chamado o trem metropolitano que liga Porto Alegre e cidades próximas - às 03 da manhã. Só que o trem não funciona de madrugada, duas horas a mais e eu não teria este desconforto.

No geral achei que o conto não tem nada demais, e faltou uma relação mais direta com a parte da casa, talvez se o acidente fosse ele entrando no jardim e atingido o rapaz no palco improvisado, a ligação pulsasse mais. É uma história morna, mas rápida de ler. 

Solange

O carioca Jeferson Tenório usa a dependência de empregada, um aposento que nem todas as casas possuem, para tratar justamente de desigualdade social.

Aqui existem duas histórias paralelas, começa com Léa uma fisioterapeuta recém separada que precisa equilibrar a nova rotina com o filho pequeno e as lembranças do marido que ainda estavam espalhadas pela casa.

É ela quem encontra a personagem do título, vivendo em um quarto minúsculo sem janela, trabalhando sete dias por semana, em um trabalho escravo que roubou até o seu nome.


Em cima da cômoda, porta-retratos vazios, onde antes havia fotos de sorrisos e felicidades com o ex-marido.


Quando comecei a leitura deste contou achei que se tratava de uma mulher tentando se reerguer após a separação, na sequencia o foco muda para a situação de trabalho escravo e preconceito.

Terminei a leitura com a sensação de que faltava algo, como se o conto fosse mais o resumo do que viria a ser um romance longo, com os detalhes mais bem trabalhados. Não consegui formar uma opinião sobre o que achei da história, ela é interessante, mas fiquei pensando se o foco fosse a própria Solange, talvez em uma narrativa em primeira pessoa, o conto teria ficado mais redondo.

Sem saída

É na cozinha da bisavó que a poeta Marília Garcia buscou inspiração para misturar memórias e isolamentos em um dos contos que mais gostei.

Foi o isolamento que mudou a sua ideia original, como ela explica logo no início, quando viu a si mesma presa em uma cozinha com suas lembranças, um chaveiro da bisavó e os espaços em branco que a mente queria preencher.

E nestas lembranças ela acaba comparando o tempo atual com outro período onde enfrentou um confinamento diferente com um ponto em comum entre os dois, já que em ambos ela enfrenta uma gravidez de risco que lhe impede de se locomover livremente.


Seria uma história com muitas lacunas naquilo que parece o mais significativo: como ela viveu, o que pensava, o que aconteceu.


É um conto sobre confinamento - seja individual quando somente ela não podia sair da cama ou coletivo quando todos devem ficar em casa -, sobre histórias de família, relações superficiais, e as lacunas dos que preferiram esquecer.

Como eu disse no início, eu gostei, é muito fácil se identificar com algum dos sentimentos descritos ou de se sentir viajando entre as ruas de Portugal e Brasil. 

Não me olha, não diz nada

Outra gaúcha dá sequência a coletânea, e por ter lido recentemente A Extinção das Abelhas - já resenhado aqui no blog - mesmo que não identificasse que era a Natalia Borges Polesso, pelo estilo era fácil de adivinhar.

Em plena início da pandemia, quando tudo está fechado e se recomenda ficar em casa, Karina resolve fazer um encontro em seu apartamento e convidar pessoas próximas, que por sua vez resolvem convidar outras pessoas próximas, transformando o evento em uma festa.

Quando tudo foge do seu controle, ela simplesmente foge para o banheiro e se tranca lá, e entre limpezas do local e cochilos, ela acaba refletindo sobre as suas escolhas, tendo um gato como juiz.


Ela poderia não ter comprado tudo aquilo, mas foram tão bem recomendados.


O conto é introspectivo, onde a personagem usa o gato para colocar muitos dos pensamentos que há tempos martelavam sua mente, mas ela não arriscava a olhar de frente.

Como um fio de lã, um pensamento vai puxando a outro, misturando sentimentos, lembranças e emoções. Algo que depois de começado nem o álcool gel consegue impedir de se propagar.

Basta a cada dia o seu próprio mal

Um conto que me deu um arrepio na espinha, é assim que defino a história do carioca Miguel Del Castillo.

Heitor vive em um futuro pós pandemia, mas segue medindo a saturação de oxigênio, limpando tudo com álcool, evita sair na rua e quando sai é de máscara e na chegada a roupa vai direto para a máquina de lavar.

Um homem que simplesmente não consegue retornar ao ritmo no chamado de normal mesmo após as vacinas finalmente conseguirem pôr fim aos dias de isolamento. E isso acaba impactando em sua vida familiar e na social de forma devastadora.


Recorda-se bem da apreensão naquela noite de 2020, quando a saturação do filho caiu para 89%.


Por seguir todos os cuidados ainda nos dias de hoje, pois na minha casa ainda temos quem espere a vacina, já havia me pegado pensando em como seria romper esta bolha de proteção com a mesma despreocupação de antes.

Então quando li este conto, confesso que bateu um medo enorme de ficar como o Heitor e ter dificuldade de voltar a fazer as malas e voar as tranças pelo mundo. Então posso dizer que foi definitivamente a história que mais mexeu comigo.

A porta da rua

São as batidas na porta que dá acesso à rua que nos fazem entrar no conto de Caetano W. Galindo, no que parece um primeiro momento preocupante e depois se revela muito mais sensível.

Quem escuta essas batidas é Denise, que após a separação e com o filho adulto já tendo a própria vida, está vivendo sozinha na casa da sua infância. 

Logo após as batidas, segue-se uma voz chamando pelo nome de um homem, e isso desmorona as defesas da personagem trazendo lembranças do passado e muitas mágoas.


Ainda não se sentia em casa, de novo entre as cores e os volumes daquela casa.


Relacionando a porta com os laços familiares, o autor construiu um conto bastante sensível, em uma realidade não incomum na nossa sociedade. Ao qual é muito fácil sentir todas as emoções que inundam a personagem e compreender todos os seus momentos de dúvida e medo.

Luan Ângelo

Curiosamente é em tom de comédia que a coletânea se encerra no conto de Amara Moira.

Na história uma adolescente que tem o seu quarto no sótão, resolve comprar pênis artificiais para satisfazer o desejo que possui desde a infância de ser um menino.

Entre treinamentos para colocá-lo na cueca que mantém escondida da mãe e as tentativas de usá-lo para fazer xixi, a forma como os seus pais irão tomar conhecimento dos objetos é no mínimo inusitada.


Conheceram-se há poucos minutos e já eram como que parte um do outro.


Achei bacana a opção por encerrar a sequência de contos de forma mais leve, onde é impossível não escapar pelo menos um sorriso.

O que eu achei

No geral eu gostei, como pode ocorrer em qualquer coletânea, alguns contos atraíram mais o meu interesse do que outros. E apesar da nota citando o contexto da pandemia, a maior parte dos contos parece se passar antes deste período tão pesado, pelo comportamento dos próprios personagens.

Então sim, como diz o título, a base de tudo é uma casa. E de modo geral é possível caminhar por esta casa imaginária, cujos cômodos vão mudando de forma conforme memórias e ações são estimuladas a cada história que se alterna.

O que sem querer me fez olhar em volta e pensar o que me dizem cada espaço da minha própria casa. Que lembranças, desejos e planos futuros elas despertam na minha mente enquanto aguardo tudo passar.

Para quem ficou curioso, infelizmente o livro não está à venda nas livrarias, sendo, por enquanto, uma exclusividade dos associados da TAG.

Partes de uma casa
Vários autores
TAG - Experiências Literárias
2021 - 179 páginas

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Risque esta palavra



Sinopse: Em versos meditativos e arrebatadores, Ana Martins Marques, uma das vozes mais celebradas da literatura brasileira contemporânea, cria uma espécie de inventário de experiências afetivas. Com clareza, inquietação e extrema habilidade, mapeia os encontros e desencontros, a paixão e o luto, e prova que "quase só de palavras/ se faz o amor".

Confesso que não sou de ler poesias, não tenho um motivo concreto para isso, apenas é um gênero que nunca consta na minha lista de compras. Então assumo que o Risque esta palavra ficou um tempo me esperando, até que decidi um dia que iria ler um pouco a cada dia, e me surpreendi positivamente com o que encontrei, tornando a leitura muito mais rápida do que a planejada inicialmente.

A autora mineira Ana Martins Marques divide suas palavras em quadro partes, usando itens, situações e vícios que estão presentes no nosso dia-a-dia, sendo muito fácil se identificar com alguns dos poemas.

A Porta de Saída

Os poemas desta parte são relacionados com o tempo, a morte e a ausência. Ora como um enfrentamento, ora como questionamento, e enfim como aceitação. O que eu mais gostei foi o chamado História, onde o passado está no tempo de cada coisa, seja dos cabelos, das calças ou da poça d'água.


As casas

coloridas

estão alegres sem motivo.


Postais de parte alguma

Itens de viagem ganham um novo significado para falar das relações humanas, sejam elas as possíveis ou as idealizadas. Segue-se o contato com o mar em um jogo de expectativa e realidade, só discordo do poema Parte Alguma, sim, nos levamos na bagagem, mas se não ficamos escondidos dentro dela, não voltamos iguais.


A terra prometida a um

será no entanto entregue

a outro


Noções de Linguística

Já no primeiro poema temos a relação da mãe como pessoa e como língua, em um bonito retrato sobre a evolução do filho de nenê até a sua independência. 

E depois disso temos as diferenças línguas que nos fazem sentir estrangeiros, assim como uma espécie de brincadeira de quem é o narrador. Até chegar no silêncio que também se comunica.


em breve a língua será a mãe

mais do que você é a mãe


Esta foi a minha parte favorita do livro, ao qual concluía os poemas com várias reflexões. E achei muito interessante a referência ao tradutor, que ao realizar as trocas de palavras para o português acaba também se tornando um poeta.

Parar de Fumar

Uma ocupação para as mãos, uma auto sabotagem, uma forma de fugir do momento, uma desculpa para se isolar sem se sentir sozinho. Por não ser fumante, acabei substituindo muitas vezes esse item que não é um objeto pelo chocolate.


O que fazer agora

com as mãos

cegas?


Na ansiedade é possível fazer a mesma transferência de sentimentos, ambos utilizando as mãos e a boca. Ambos gerando questionamentos, embora um não tenha a mesma maleficência do outro.

O livro

Gostei deste contato com uma poesia que conta pequenas histórias, mistura lendas e dilemas, aflições e desejos, que tocam de forma sutil a alma e depois podem vir a ocupar o pensamento.

É o retrato do cotidiano, o questionamento da poesia ter tanto valor e ao mesmo tempo não ser valorizada, podendo os livros do gênero ficarem em um cantinho da estante próximo ao chão.  

Ao mesmo tempo que desafia o leitor a encontrar poesia em tudo, pois ela está intimamente ligada as nossas ações, reações, frustações, júbilos, saudade e solidão.

Deixo assim a sugestão, para quem gosta de poesia ou para quem, como eu, ainda não havia descoberto os seus encantos.


Risque Esta Palavra
Ana Martins Marques
Companhia das Letras
2021 - 114 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Cai o pano



Sinopse: Aceitando o convite de seu velho amigo, Capitão Hasting reencontra Hercule Poirot em Styles, a casa de campo onde os dois resolveram seu primeiro caso. No entanto, não foi apenas o lugar que mudou com os anos. Acometido pela artrite e abatido, Poirot já não é mais o mesmo. Quando o detetive belga anuncia que um dos aparentemente inofensivos convidados de Styles é um assassino, algumas pessoas ficam em dúvida. Será que os instintos dedutivos de Poirot finalmente o abandonaram? Cabe a notre ami descobrir a identidade de um dos seus mais desafiadores inimigos e provar que, embora o tempo tenha alterado as regras do jogo, suas células cinzentas e o coração de ouro de Hasting continuam os mesmos.

A grande dama do romance policial Agatha Christie encerra a carreira do detetive belga Hercule Poirot, um dos seus personagens ícones no livro Cai o Pano, que teve como tradutora a grande escritora brasileira Clarice Lispector.

Na história o Capitão Hasting atende um chamado do seu velho amigo, mas nada o havia preparado para encontrar Poirot em uma cadeira de rodas e extremamente limitado, tendo toda a sua movimentação física dependente de um auxiliar.


Quem nunca sentiu uma súbita pontada ao reviver uma velha experiência ou a sentir uma emoção antiga?


Mas ao contrário do que diz na sinopse da contracapa, a revelação de que há um assassino entre o pequeno grupo de convidados é revelado somente ao Capitão Hasting, que inicialmente dúvida da sanidade mental de Poirot, mas ao ouvir sobre cinco casos que estariam relacionado ao suspeito, ele passa a mudar de ideia.

Só que Poirot não irá lhe revela o nome do suspeito, ao qual chama de X, pois para que Hasting seja seus olhos e ouvidos de forma eficiente e sem correr riscos extremos, não pode revelar no seu rosto tão transparente a desconfiança sobre nenhuma pessoa.


Na minha opinião, nada é tão triste quanto à ruína pacientemente forjada pela idade.


A narrativa de Agatha Christie

Apesar de ser o livro de despedida de Hercule Poirot, toda a narrativa em primeira pessoa é feita pelo capitão Arthur Hasting, que relata os seus diálogos e próprias observações, só havendo a voz de Poirot através de uma carta.

Uma curiosidade que o escritor Raphael Montes relata na apresentação do livro é que a história foi escrita originalmente em 1940 devido ao medo que Agatha Christie sentiu de morrer durante a segunda guerra mundial e consequentemente deixar o seu personagem sem um desfecho, e assim o romance ficou trancado em um cofre até ser publicado em 1975, um ano antes do seu falecimento.


Porque um assassino, meu amigo, é mais vaidoso do que qualquer outra criatura do mundo.


Naturalmente a história foi revisada e atualizada, mas mesmo assim traz um retrato da sociedade da época, principalmente nas opiniões emitidas pelos personagens sobre o comportamento um dos outros.

Fechando assim um ciclo, já que o primeiro livro em que ele aparece é justamente O misterioso caso de Styles, cuja referência ao assassinato é citada diversas vezes no local que agora é um pequeno hotel.


Por que os piores tipos de homem são os que mais agradam e interessam às mulheres mais simpáticas é um problema acima do meu entendimento.


Os personagens

O hotel agora pertence ao casal Luttrell, ele um aposentado do exército que possuía excelente mira e era respeitado por seu batalhão, ela uma mulher de personalidade forte, que não raro lhe chama a atenção na frente dos outros, causando assim um constrangimento no ambiente.

Devido ao tamanho do hotel o grupo que ali se encontra é bem pequeno. Além de Hercule Poirot e Arthur Hasting, estão hospedados no local Judith, a filha independente de Hasting, cujo relacionamento com o pai não é muito afetuoso, e em cada conversa ela parece estar com as pedras na mão para contesta-lo.


O que é o mal? O que é bem? Essas concepções mudam de época em época.


Judith não está ali para fazer companhia ao pai, mas trabalhando como assistente de Franklin, um homem muito dedicado as suas pesquisas e que se sente preso a esposa Barbara, que se diz sempre doente para ser o centro das atenções e conta com o atendimento constante da enfermeira Craven, mas é sumariamente ignorada pelo marido.

Quem atende o seu desejo é o rico vizinho Boyd Carrington, um homem há muitos anos apaixonado por Barbara, cujo arrependimento é não a ter pedido em casamento quando teve chance e agora visita o hotel frequentemente para conversar com os hospedes e fazer companhia a ela.


Seu problema é a sua preguiça mental. Você gosta de jogar e adivinhar. Não gosta de usar a cabeça.


Completando o quadro estão Curtiss, o assistente temporário de Poirot, que liberou George para tratar de assuntos familiares. O admirador de pássaros Stephen Norton que flutua entre comentários inofensivos e sem noção, o mulherengo Allerton e Elisabeth Cole, uma mulher que mudou o seu sobrenome para se afastar da sombra negra que paira sob a sua família.

O que eu achei...

Um livro que combina perfeitamente com o verão que está chegando, e não por oferecer sombra e água fresca, mas por ser leve e instigante. Conforme os capítulos vão passando, eu me pegava junto com o Capitão Hasting tentando adivinhar quem daquelas pessoas poderia ser o suspeito X.

E quando o primeiro assassinato ocorre, e isso não é um spoiler quando estamos falando de um romance policial de Agatha Christie, eu continuava sem ter certeza de nada, pois todos podiam ter um motivo, e assim eu ficava trocando de suspeito página a página.


Um homem que já matou uma vez matará outra e outra e outra e outra.


Eu que não lia nada da autora desde a adolescência, adorei este mimo que veio da renovação da minha assinatura da TAG, pois havia esquecido de como Agatha Christie consegue nos confundir.

E assim deixo a dica dessa leve despedida que te provoca a desvendar e se surpreender com os acontecimentos, na envolvente escrita da rainha dos policiais.


Cai o Pano
Curtain
Agatha Christie
Tradução: Clarice Lispector
TAG - Harper Collins
1975 - 223 páginas

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

A história de Shuggie Bain



Sinopse: Glasgow, 1981. A cidade está morrendo. A pobreza, aumentando. A esperança, desaparecendo. Agnes Bain sempre esperou por mais. Ela sonhava com coisas grandiosas: uma casa com entrada particular, uma vida confortável. Quando seu segundo marido, um taxista mulherengo, sai de casa, ela e os três filhos se veem presos em uma cidade mineradora dizimada pela política da então primeira-ministra Margaret Thatcher. Enquanto Agnes se entrega cada vez mais ao álcool em busca de conforto, seus filhos tentam salvá-la. Porém, um a um, vão desistindo porque precisam salvar a si mesmos.

No mês de outubro/21 recebi pela minha assinatura da intrínsecos o livro premiado em 2020 pelo Booker Prize A história de Shuggie Bain, onde o autor escocês Douglas Stuart mistura ficção e vivências pessoais em um livro pesado e intenso. O mimo foi um caderno de memórias que eu achei meio bobo, mas como vira e mexe tem livro extra na caixa, eu nem me importo.

Na cidade de Glasgow, na Escócia, Wullie e Lizzie mimaram sua única filha Agnes, dando a ela o que eles não tiveram. E a garota cresceu sempre querendo mais, a ponto de arrancar todos os dentes naturais e troca-los por uma dentadura de dentes perfeitos.

Seu primeiro casamento foi com um católico que trocava os bares na sexta por um retorno cedo para casa, onde entregava todo o seu salário para a esposa, algo que o tornava fraco na visão de Agnes. Com ele teve dois filhos, Catherine e Leek, e poderia se dizer que tinha uma vida confortável.


Naquela manhã a mente o abandonara e deixara seu corpo vagando lá embaixo.


Mas isso não foi o suficiente para Agnes, que trocou sua vida estável por um taxista protestante e mulherengo chamado Shug, que por falta de uma boa situação financeira a fez retornar junto com o novo parceiro para a casa dos pais, onde tiveram um terceiro filho chamado Hugh, mais conhecido como Shuggie, personagem que dá nome ao título do livro.

Como não existe nada que não possa piorar, Shug se cansa das bebedeiras e cenas da esposa, mas como ainda a considera muito bonita e não deseja que outros homens se aproximem, larga Agnes e as três crianças em um bairro afastado de tudo, um lugar que já teve dias melhores antes da mineradora que empregava os homens da região entrar em decadência.


Queria sentir um pouco da inveja de estranhos, dançar com homens que a conduziam com orgulho e intimidade.


E enquanto a mãe se afunda ainda mais no alcoolismo e os irmãos mais velhos buscam uma forma de fugirem dali, Shuggie precisa cuidar dela enquanto enfrenta bullyng e abusos físicos e psicológicos.

Douglas Stuart nos apresenta uma Glasgow em pedaços nos anos de 1981 a 1992, a crise econômica impacta em um grande desemprego e não raro a população se apega as bebidas, gerando situações de alcoolismo generalizado nas regiões mais pobres.


Ficara orgulhoso ao ver o filho enfileirando as mulheres e soletrar o nome de cada uma delas foneticamente.


Na casa de Agnes não é raro faltar comida e ter latas de cerveja escondidas pela casa. O que a faz ter relacionamentos abusivos, onde o egoísmo e machismo dos homens sobressaem as suas próprias vontades e em relação aos seus filhos, que crescem abandonados a sua própria sorte.

E quem aparentemente mais sofre este impacto é justamente Shuggie, que tenta protege-la enquanto ele mesmo é violado de diferentes formas. Sendo perseguido pela sua maneira mais educada e feminina, como se isso o transformasse em um alvo ambulante. Trazendo a tona novamente a maldade infantil com o que é diferente e uma questão já antiga que questiona quem é que disse que todas as crianças são inocentes?


Era a cara que os cachorros protestantes sempre tinham, como se fossem muito amados, muito bem alimentados, o centro das próprias vidas.


E é realmente complicado cobrar inocência em meio a pobreza, a sujeira, a mesquinharia, o abandono e o vício. Pois os papeis de vítima tanto dentro de casa quanto na rua se alternam o tempo todo, assim como os discursos que vão do machismo, da disputa entre protestante x católicos aqui representados por dois times de futebol - Celtic e Rangers que possuem o título de maior rivalidade do mundo -, além das falas cheias de preconceito com qualquer um que foge do estereótipo padrão.

Cenário que pode chocar os mais incautos já que se trata de uma visão muito diferente que se tem da Europa e baseado em fatos reais, já que todas as empresas fechadas, todo o desamparo social, realmente aconteceram durante o governo da primeira-ministra Margareth Thatcher quando administrava o Reino Unido com sua mão de ferro.


Depois rezou para Deus torná-lo normal como presente de aniversário.


Finalizei a leitura com o coração apertado, pois não foram raras as vezes que senti vontade de abraçar as crianças e jovens que pelas páginas caminharam perdidos em busca de melhores expectativas. 

Mas esta nuvem de tempestades que parece contrastar com o belo tom escolhido para a capa do livro não me impediram de gostar, e muito, da escrita do Douglas Stuart e de sua A história de Shuggie Bain. Ficando a indicação de leitura, principalmente para quem gosta de livros mais tensos.


A história de Shuggie Bain
Shuggie Bain
Douglas Stuart
Tradução: Débora Lansberg
intrínseca
2020 - 528 páginas

Esta resenha não é patrocinada, a assinatura do clube citado é pago integralmente pela autora.