segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Eu sei por que o pássaro canta na gaiola



Sinopse: Racismo. Abuso. Libertação. A vida de Marguerite Ann Johnson foi marcada por essas três palavras. A garota negra, criada no sul dos Estados Unidos por sua avó paterna, carregou consigo um enorme fardo, aliviado apenas pela literatura e por tudo aquilo que ela pôde lhe trazer: conforto por meio de palavras. Dessa forma, Maya, como era carinhosamente chamada, escreve para se libertar das grades que foram colocadas em sua vida. As lembranças dolorosas e as descobertas da autora são eternizadas nas páginas desta obra densa e completamente atual.

No kit de setembro/2018 a TAG Curadoria trouxe a escritora Conceição Evaristo para indicar aos associados a biografia da multifacetária Maya Angelou.

Todos têm uma história, alguns com momentos mais tristes, outros mais sentimentais, desafios que não podem ser mensurados, pois cada um sabe o peso que pode carregar. O grande desafio é justamente como contá-la.

E eis o grande mérito de Maya Angelou, com uma escrita leve e fluída ela leva o leitor para a sua infância, e como se fossemos o seu amigo invisível, entramos na sua vida e vivenciamos vários momentos, que vão da solidão, ao desrespeito até as risadas. Mas principalmente a todo o racismo que faz com que as pessoas sintam medo, sejam separadas ou simplesmente não atendidas.

Sua autobiografia inicia quando ela estava com três anos de idade, acompanhada com a sensação de abandono é deixada junto com o seu irmão mais velho Bailey para ser criada pela sua avó paterna. Momma é uma mulher forte, dona do mercado que atende aos negros na cidade de Stamps no Arkansas, mas que empresta dinheiro até mesmo aos brancos. O fervor religioso faz com que as crianças participem das missas e eventos. Entre as obrigações dos dois irmãos estava em ajudar no mercado e estudar. 

A seriedade de Momma a faz enfrentar sem dizer uma palavra às provocações das crianças brancas pobres, que mesmo vivendo em uma situação financeira inferior se julgam superior aos que possuem uma cor diferente da sua. Também a faz cobrar uma dívida de um dentista branco, que diz com todas as letras que não atende pessoas de cor. Mas ela também sente medo da ku klux klan e esconde o seu filho deficiente em um barril para que não o encontrem.

Quando tudo vira uma espécie de rotina o pai das crianças reaparece para leva-los de volta para a mãe. Entre a redescoberta materna e volta da confiança entre as duas, Maya é estuprada dentro de casa aos oito anos de idade pelo namorado da sua mãe. Um fato que lhe marca profundamente, fazendo-a carregar uma culpa que não é sua. E a deixa muda por um longo tempo, e nem mesmo o retorno à casa da avó Momma irão reestabelecer o seu desejo de se comunicar.

A violência sofrida causa um amadurecimento misturado à inocência. E são justamente os livros e a poesia que irão trazer Marguerite para fora de sua casca. Enquanto vive com complexos, dúvidas e mudanças, uma consciência de que pode ser o que quiser vai lhe dando força para desafiar aos que lhe dizem não.

Em alguns momentos a leitura dói, nos envergonha, e nos lembra de que para muitos a segregação não é um passado. A falsa superioridade está mais presente do que nunca. E mais uma vez, acompanhando as memórias infantis, fiquei pensando o que motiva o ser humano a tanta maldade.

O grande presente do livro para mim foi apresentar esta mulher fantástica, que apesar de tantas dúvidas desde cedo tomava as suas decisões e não desistia. Uma sobrevivente que lutou não só por ela e seu filho, mas por gerações futuras. O que me despertou a curiosidade por seus outros livros também autobiográficos.

Para quem ficou curioso com a beleza do título, ele é inspirado no poema abaixo:

"Sympathy
BY PAUL LAURENCE DUNBAR
I know what the caged bird feels, alas!
    When the sun is bright on the upland slopes;   
When the wind stirs soft through the springing grass,   
And the river flows like a stream of glass;
    When the first bird sings and the first bud opes,   
And the faint perfume from its chalice steals—
I know what the caged bird feels!

I know why the caged bird beats his wing
    Till its blood is red on the cruel bars;   
For he must fly back to his perch and cling   
When he fain would be on the bough a-swing;
    And a pain still throbs in the old, old scars   
And they pulse again with a keener sting—
I know why he beats his wing!

I know why the caged bird sings, ah me,
    When his wing is bruised and his bosom sore,—
When he beats his bars and he would be free;
It is not a carol of joy or glee,
    But a prayer that he sends from his heart’s deep core,   
But a plea, that upward to Heaven he flings—
I know why the caged bird sings!"

Eu sei por que o pássaro canta na gaiola
Maya Angelou
I know why the caged bird sings
Tradução Regiane Winarski
TAG – Astral Cultural
1969 – 333 páginas

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

História de Quem Foge e de Quem Fica - Série Napolitana



Atenção para quem não leu os dois primeiros volumes: há spoiler.

Sinopse: No terceiro volume da série napolitana, Lenu e Lila partem para os embates da vida adulta. Numa sequencia angustiante e sem espaço para a inocência de outrora, Elena Ferrante coloca o leitor no meio do turbilhão que se forma das amizades, das relações sociais e dos interesses individuais. História de quem foge e de quem fica é uma obra de arte a respeito do amor, da maternidade, da busca por justiça social e de como é transgressor ser mulher em um mundo comandado pelos homens.

Comecei a ler a série napolitana por curiosidade, gostei muito dos dois primeiros livros, mas fui realmente capturada no seu terceiro volume. E como um quebra-cabeça que está perto do final, consegui compreender a maestria de Elena Ferrante em trazer todo o universo feminino sendo representado por duas personagens tão ricas e similares as mulheres de qualquer época.

Elena começa falando do sucesso do seu livro, o primeiro encontro com Nino após a separação dele e de Lila, e a descoberta que seus amores e filhos pipocam sem que ele dê muita importância a eles.

Significava acima de tudo que no outono, ou no máximo no início do próximo ano, nós nos casaríamos e eu deixaria Nápoles.

Com o casamento marcado com um jovem professor de família influente, Elena retorna para casa e é chamada as pressas para cuidar de Lila, momento que vamos descobrir todo o sofrimento que ela passou após abandonar o marido e ser abandonada pelo amante. A beleza perdida em uma fábrica, a inteligência sempre afiada.

Se Elena move mundos e fundos para ajudar Lila, sua recompensa são olhares irônicos, comentários humilhantes e uma tentativa de lhe dar pouca importância por aqueles que já estimou. Nem Lila a defende, apesar de estar sendo salva pela amiga. Enquanto Elena foge determinada do local do seu passado, Lila volta para o bairro para um novo recomeço.

Lila notou como era fácil distinguir entre os rostos dos estudantes e os dos trabalhadores, a desenvoltura dos líderes e o balbucio dos gregários.

E é justamente após este encontro que tudo parece dar errado a Elena. Ao casar com um homem machista, tradicional e fraco perante outros homens, Pietro a trata como um ser inferior, não respeitando nem suas opiniões ou inteligência, subjugando-a como uma mulher de respostas prontas, mas sem conteúdo.

O pano de fundo é uma Itália em rebuliço, fascistas, terroristas, protesto de universitários e operários, e a Camorra ganhando força na cidade de Nápoles. Uma hora ou outra todos se vendem, todos tem o seu preço. E a morte não poupa lado.

E para quebrar minha cara você foi pedir autorização a meu marido?

Outro tema muito bem abordado é a maternidade, se no segundo livro temos uma Lila que tenta estimular o filho ao máximo, agora temos uma Elena que tenta administrar a culpa, vê toda a sua vida mudar, dando a visão mais realista de ser mãe. 

Há também o início do uso de tecnologias, que geram empregos com maiores rendimentos, e os movimentos feministas, que começam a questionar relacionamentos e empoderamento muito antes da palavra virar moda.

E por uns segundos tive a impressão de que Lila não me reconhecesse, mas visse diante de si um espírito que se aproveitava de sua fraqueza.

E para fechar um final que te faz ficar com vontade de iniciar o quarto volume quase que imediatamente, que pode provocar diferentes sentimentos nos leitores. A dúvida entre o despertar e a loucura persiste em minha mente. Assim como o medo de que não haverá final feliz para nenhuma das duas. De onde elas vêm, por mais que se afastem de tudo e de todos, isto não parece possível.

História de Quem Foge e de Quem Fica
Storia di chi fugge e di chi resta
Série Napolitana
Elena Ferrante
Tradução Maurício Santana Dias
Biblioteca Azul – Editora Globo
2013 – 415 páginas