terça-feira, 27 de abril de 2021

A Metade Perdida



Sinopse: As irmãs Vignes são gêmeas idênticas. Quando aos 16 anos resolvem fugir de casa, elas não fazem ideia de como isso vai alterar suas trajetórias. Mais de uma década depois, no final dos anos 1960, uma delas volta para a cidade natal, Mallard - uma comunidade negra no sul dos Estados Unidos cuja marca é a pele clara dos moradores, debruçados geração após geração sobre o ideal de se clarear ainda mais. O choque desse regresso não poderia ser maior, porque ela não apenas chega sem a irmã, mas com uma criança. Uma criança de pele muito escura.

Em março/21 o clube intrínsecos disponibilizou para os seus associados o livro 030 chamado A Metade Perdida, da escritora norte-americana Brit Bennett. De mimo foi enviado um livro sobre planejamento financeiro da Nath Finanças, planners financeiros e um quebra-cabeça que também é imã.

Em 1848 Alphonse Decuir começa a colocar em prática uma ideia antiga: criar uma cidade para homens que apesar de ter a pele mais clara, não eram aceitos como brancos, mas que também se negavam a ser tratados como negros. E assim surgiu Mallard, uma cidade que não está nos mapas, representando a invisibilidade de seus habitantes.


Nada de surpreendente havia acontecido naquela cidadezinha rural, não desde o desaparecimento das gêmeas Vignes.


Ele se casou com uma mulher mais clara que ele, e mais pessoas foram chegando, assim como tempo passaram a nascer pessoas com pele cada vez mais próximas do branco, algumas com cabelos loiros ou ruivos, os mais morenos tendo tons semelhantes aos gregos. 

Foi neste lugar que nasceram as gêmeas Desiree e Stella Vignes, descendentes de Alphonso, com personalidades diferentes e muito unidas, que em plena adolescência concordam em uma ação que irá mudar suas vidas e as executam justamente no dia em que todos escolheram celebrar o seu fundador. O dia que passa a ser também aquele que as tataranetas optaram em escolher fugir de tudo e de todos.


Mas até mesmo ali, onde ninguém se casava com pretos, eles ainda eram pessoas de cor, o que significava que homens brancos podiam matá-lo caso você se recusasse a morrer.


Em New Orleans elas tentam recomeçar a vida, primeiro em empregos simples, até que Stella, sempre muito estudiosa e inteligente, se escreve para uma vaga de emprego se identificando como branca. Ela é contratada, e no início isso melhora a vida das duas, mas acaba gerando uma nova separação, quando Stella recebe o convite de acompanhar o seu chefe em uma mudança de cidade e ela opta em abandona sua irmã, pois leva-la junto poderia revelar o seu segredo.

Enquanto Stella acaba assumindo em tempo permanente o seu personagem como mulher branca, Desiree vive do amor ao terror, sendo obrigada a retornar para as suas origens, levando junto a filha pequena.


Já nem notava mais quando olhavam para ela ou, se notava, sabia exatamente por que a encaravam.


Narrado em terceira pessoa, a história se passa entre as décadas de 1950 e 1990, acompanhando a vida das gêmeas, com mais ênfase para Desiree, e depois das filhas de ambas.

Conforme a propaganda, o livro tem como tema o colorismo, o que me fez inevitavelmente lembrar do livro Nascido do Crime, uma autobiografia de um humorista sul-africano, ao qual recomendo e muito a leitura.


Ela sempre soubera que era possível ser duas pessoas diferentes numa mesma vida, ou talvez só fosse possível para alguns.


No livro de Brit Bennett eu me senti um tanto confusa em relação a cor real das irmãs, pois entre conhecidos elas se identificam como negras, mas quando acompanhamos a vida de Sheilla, em meio a um bairro de alto padrão na cidade de Los Angeles, onde as pessoas são racistas, a conclusão que se chega é que ela não está se passando por branca, ela é uma branca descendente de brancos e negros.

E embora isso não seja citado, fiquei com a ideia de que em Mallard houve uma miscigenação, assim como no Brasil, só que mais direcionada. Já que a própria sogra, que foi contra o casamento com Stella, alega ao filho que ela deveria ser de família pobre, mas jamais faz relação a cor de pele ou origem.


Ela era o tipo de garota que os rapazes só beijavam escondido e depois fingiam que não tinha acontecido.


Além do mais, em nenhum momento é citado que ela fez alguma cirurgia plástica ou outro tipo de tratamento. E é interessante como que ao conviver com mulheres negras ela tenha medo e ao mesmo tempo desejo de ser reconhecida, embora seja vista como branca por todas elas.

Já em Mallard observa-se a seriedade com que a população levou as intenções do fundador com a chegada da filha de Desiree, que enfrenta muitas reações racistas de seus colegas, sendo a única de pele escura em meio a todos, o que a faz crescer sozinha e se achando feia.


Ela nadava no rio ou, de vez em quando, na praia da baía, onde os salva-vidas brancos diziam para ficarem na área restrita para pessoas de cor.


A Metade Perdida traz um mix de assuntos secundários interligados com a questão do racismo, mas pra mim parece que a base complementar são as consequências dos estigmas, que é a não realização dos sonhos, a descrença em si, precisando sempre que alguém ou alguma coisa empurre essas mulheres, tanto mães quanto filhas, para que corram atrás de seus objetivos.

O fato é que a história agrupa pessoas infelizes, que não sabem exatamente o que são, que vivem com medo de serem descobertas, vivendo constantemente a síndrome do impostor. 


Seu passado inteiro era como uma prateleira de despensa vazia.


É também sobre separação e saudade, prioridades na vida, a fragilidade dos laços de sangue, a busca de ser aceito. Uma necessidade de se moldar, sem saber de que forma.

A leitura é interessante, em cada fase da vida das gêmeas é muito fácil surgirem perguntas, e nem todas terão respostas. Também é possível surgir comparativos entre as culturas brasileira e americana, e como o racismo estrutural pode afetar até mesmo os princípios de uma pessoa. 


A Metade Perdida
The Vanishing Half
Brit Bennet
Tradução: Thaís Britto
intrínseca
2020 - 332 páginas


quinta-feira, 22 de abril de 2021

Eu não sei quem você é



Sinopse: Jules e Holly são melhores amigas desde os tempos de faculdade. Elas compartilham tudo, desde detalhes do cotidiano até segredos e confissões. Saul, filho de Holly, e Saffie, filha de Jules, cresceram juntos, com apenas três anos de diferença. Quando Saffie faz uma denúncia grave contra Saul, nenhuma das duas amigas está preparada para o impacto devastador que o fato terá amizade e na vida das suas famílias.

No mês de março/21 a TAG Inéditos enviou para os seus associados o tenso e agoniante Eu não sei quem você é da escritora inglesa Penny Hancock. O brinde foi um caderno remetendo ao diário de uma das personagens secundárias.

Holly é uma professora universitária envolvida com as causas feministas, sendo uma das ativistas em movimentos contra o estupro. Viúva de um advogado, muda-se da cidade de Londres para tentar recomeçar a vida em uma região afastada, próximo a sua melhor amiga e das filhas do seu segundo marido.


E ali está ele sozinho de novo, de cabeça baixa, com a mochila pesada apoiada nos ombros ossudos.


Uma de suas maiores preocupações é seu filho Saul, aos dezesseis anos ele não possui amigos na nova região, tendo sido vítima de bullying na escola. Em sua solidão, o jovem rapaz descobre a fotografia, o que enche a mãe de esperança.

Ela é mãe especial de Saffie, filha de sua melhor amiga Jules, que por sua vez, é a mãe especial de Saul. Definição usadas por elas para substituir o título de madrinha, já que nenhuma das duas possuem religião.


Mas um dos decretos da boa terapia, e, portanto, da boa educação parental, é que você seja um espelho para o que seu filho está falando.


Jules é dona de uma rede de lojas infantis, tem um alto padrão de vida, junto com o marido realiza festas em sua casa. Sua filha Saffie tem treze anos, está descobrindo as roupas curtas e as maquiagens, sendo bastante popular na escola.

Ambas são amigas desde que se conheceram na faculdade, opostos em personalidade, se complementam na hora de se apoiar. Elas possuem um acordo silencioso, de uma não criticar a outra, o que faz com que tenham muitas palavras não ditas.


A realidade é muito mais escorregadia, com os limites muito mais confusos.


Em uma noite em que ambos os maridos estão ausentes e elas tem uma reunião entre amigas programadas, Saul vai para a casa de Jules para usar a internet e ficar de olho em Saffie. Tudo certo, visto que os dois cresceram juntos.

Mas duas semanas depois, Saffie chama sua mãe para dizer que o rapaz a estuprou e agora ela está grávida. Saul fica indignado e nega a acusação. E isso vira a vida das duas famílias de cabeça para baixo.


Naquelas semanas em que eu mergulhei dentro de uma neblina de tristeza, ele era o meu conforto.


Penny Hancock intercala os capítulos com duas visões, como que instigando o leitor há tirar as suas próprias conclusões. Utilizando a narrativa em primeira pessoa temos a visão de Holly, que se vê enfrentando tudo o que sempre condenou, ao questionar a veracidade da acusação e negar que o seu filho, um menino educado desde cedo para respeitar as mulheres, seja um estuprador.

Em terceira pessoa temos a visão de Jules, na luta pelas aparências tenta insistir na confissão de Saul, enquanto convive com um marido extremamente machista e violento. Sem ter o ombro de Holly, ela se sente sozinha em como ajudar a filha neste momento delicado.


Que elas estavam bêbadas ou que a roupa era muito curta, que elas no fundo desejavam aquilo.


O primeiro sentimento que o livro me provocou foi desconforto, pois conforme eu dava andamento na leitura, era convencida pelos argumentos de Holly, o que provocou um segundo sentimento: culpa.

Não foram raras as vezes que eu me questionava se não estava sendo injusta com Saffie, ao criar várias teorias com o que era apresentado, me agoniava o fato de não estar aceitando a palavra da vítima, me sentindo atormentada por não conseguir aceitar a palavra da Saffie em relação ao Saul, embora tivesse certeza que algo muito errado estava acontecendo com a menina.


Suposições que, muitas vezes, são repetidas nos tribunais, quando a verdade é que não existe um modelo que indique como uma vítima deve se comportar.


Pois sim, ela é uma menina, naquela terrível fase onde a infância e a sexualidade se misturam de uma maneira bastante delicada, permitindo a manipulação, o engano, a desconfiança e até mesmo a inocência de soluções fáceis para questões difíceis.

Utilizando como base a questão do consentimento em relação ao corpo feminino, o machismo e o acreditar na vítima, além da própria fragilidade das relações quando colocadas a prova em situações limites, Penny Hancock me colocou dentro da história com o máximo de desconforto possível.


Eu sou a feminázi hipócrita que não reconhece um estupro nem quando ele está bem na sua frente.


E desta forma a autora consegue nos transmitir as dúvidas, as angústias e as razões que levam as mulheres a permanecerem em silêncio após serem vítimas de alguma violência.

Não é um livro nada fácil pelos assuntos que aborda, pelos sentimentos que desperta ao entrar mais a fundo na história, pelas incertezas despertadas pelos dois adolescentes que mexem com questões extremamente delicadas.


Engraçado como você pode se sentir mais solitária tendo seu marido ao lado da cama do que estando realmente sozinho no quarto.


Um livro para ler olhando para os seres humanos retratados, para despir a capa de juiz, para se colocar no lugar das vítimas, para se questionar o quanto você contribui para o silêncio.


Eu não sei quem você é
I thought I Knew you
Penny Hancock
Tradução: Davi Boaventura
TAG - dublinense
2019 - 413 páginas

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terça-feira, 20 de abril de 2021

O Céu da Meia-Noite




Sinopse: Augustine é um cientista brilhante que dedicou toda a sua vida às estrelas. Isolado na beleza gélida de uma base de pesquisa no Ártico, ele recebe notícias de um evento catastrófico. Augie se vê sozinho, exceto por Iris, uma criança que foi deixada para trás quando os pesquisadores partiram. Sullivan sacrificou tudo para embarcar na espaçonave Aether, que, após uma missão até Júpiter, está finalmente voltando para a Terra. Porém, quando todas as comunicações cessam, Sully se pergunta o que os aguarda neste retorno.

O livro de março/21 da TAG Curadoria é o que deu origem ao filme na NETFLIX O Céu da Meia-Noite da escritora americana Lily Brooks-Dalton, uma indicação da curadora e escritora norueguesa Maja Lunde. Junto com a linda edição, os assinantes receberam como mimo porta-copos/imãs com as luas de Júpiter - testadas e aprovadas.

No Círculo Ártico, Augustine assiste a chegada da unidade da Força Área no Observatório Barbeau. A ordem é de evacuação, a justificativa era que alguma catástrofe no mundo externo.


Ele se deixou banhar por aquele brilho suave, sentindo a pele formigar.


Aos 78 anos ele não tinha para o que voltar, e decide ser o único a ficar, mesmo ao ser avisado que não haveria mais viagem de volta. Dois dias depois, enquanto organiza o espaço para o seu aproveitamento, ele encontra escondida em um dos dormitórios uma menina com cerca de oito anos chamada Iris.

Ele espera que alguém retorne para busca-la, os dias passam, mas ninguém aparece. Assim como a comunicação com o restante da Terra. Parecendo que só eles e os animais da região habitam o planeta. O que faz com que aos poucos ele sinta um elo de ligação com a menina e com um grande urso polar.


Sem pensamentos; só instinto. Só fome e sonolência. E desejo, se fosse o momento ideal do ano, mas nunca amor, nunca culpa, nunca esperança.


No espaço a astronauta Sully é a responsável pela comunicação da nave espacial Aether. Com a missão de adquirir dados do planeta Júpiter e as quatro luas de Galileu, ela não hesitou em aceitar a missão com duração de dois anos, se afastando da filha ainda criança, para fazer parte de um grupo único composto por seis pessoas incluindo ela. O que é uma mudança em sua vida, já que invariavelmente ela não se sentia parte dos grupos ao qual deveria pertencer na Terra.

Mas o encantamento pelas descobertas espaciais leva o primeiro choque ao perder o contato com o Controle da Missão. Quando o silêncio da Terra se transforma em semanas, os ânimos dentro da nave não são mais os mesmos, a preocupação pelos familiares está nas fotos dos filhos e em jogos de videogame que eram compartilhados em momento de lazer.


Limitou-se ao outro lado do Equador por anos, incapaz de suportar a proximidade de uma criança que ele não tinha a capacidade de amar.


Conforme vamos acompanhando a rotina dos dois, cada um em seu canto no universo, descobrimos também o passado que os persegue. A ambição profissional que norteia os dois e tornam a família secundária até o momento que o silêncio os atinge com a força de um tapa.

Ao não saber o que aconteceu com os outros, eles entram em uma espiral de lembranças, onde suas ações são analisadas agora com outros olhos, e sentimentos inesperados ou há muito guardados vão surgindo, como um grito em meio ao silêncio absoluto.


Tinham lhes mostrado como eram minúsculos, extraordinários e insignificantes.


Utilizando a narrativa em terceira pessoa, Lily Brooks-Dalton oferece ao seu leitor uma história bonita, triste e poética, onde saber o que aconteceu com a Terra simplesmente não importa para quem imerge na alma dos personagens, onde estar sozinho também pode ser um estado de espírito.

O Céu da Meia-Noite fala de escolhas e solidão, ao refletir sobre o passado os personagens irão se depara com uma balança onde estão o que se perdeu para seguir o caminho desejado, mágoas, arrependimentos, amores, narcisismo e o significado de família. Cabe a eles concluir se tudo realmente valeu a pena.


Havia tanto dele - as horas de cada dia e as horas de cada noite, e assim por diante, repetidamente. Semanas, meses a preencher.


Em meio ao silêncio os personagens se reencontram, enxergam as suas ações, o que traz a oportunidade de mudar e seguir em direção a novas possibilidades, mesmo quando tudo ao redor parece dizer que não há. Como uma lembrança de que nunca é tarde demais para colocar em prática o que desejamos.

Para quem assistiu ao filme e não gostou, fica um aviso: os personagens podem ser os mesmos, mas a história, quanta diferença. Sim, eu tentei assistir ao filme e assumo que dormi, o que me fez questionar mil vezes o meu marido para completar as lacunas que eu tinha - sim, ele assistiu tudo.


Sem antes, nem depois, só uma brecha infinita de tempo que separava a noite do dia.


E por este motivo revirei os olhos ao descobrir o título do mês de março, mas nada como um belo cuspi na testa ao descobrir que não haveria sono, e sim muitas reflexões. 

Então eu digo a vocês, deem uma chance ao livro, que é maravilhoso. E permitam-se embarcar nesta jornada em que involuntariamente os personagens buscam a si mesmos, enquanto provocam o leitor a fazer o mesmo.


O Céu da Meia-Noite
Good Morning, Midnight
Lily Brooks-Dalton
Tradução: Ana Guadalupe
TAG - Editora Morro Branco
2016 - 280 páginas

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quinta-feira, 15 de abril de 2021

Os tais caquinhos



Sinopse: Faltava muita coisa no apartamento 402: Zoma - que partiu levando Huga e Ariel-, sofá, iogurte, comida, lençóis limpos. Mas sobravam muitas outras: caixas de papelão, bandejas de isopor, cacarecos, baratas, cupins, muriçocas, poeira, copos sujos na pia. O som do mar era o pano de fundo daquela sala onde não batia sol, e os barulhos dos cômodos ao lado se repetiam numa liturgia previsível. "Nossa casa era ruim."

O primeiro livro recebido pelo Time de Leitores 2021 do Grupo Companhia das Letras foi Os tais caquinhos da escritora cearense Natércia Pontes. A capa é uma reprodução da obra Falconeira de Julia Debasse, que combinou bem como representação da narradora-personagem da história.

Utilizando o formato de diário, onde as datas foram substituídas por títulos, e por consequência a narrativa em primeira pessoa, quem nos conta a história é Abigail, uma adolescente que vive na cidade de Fortaleza dos anos de 1990 em um apartamento que mais parece uma lata de lixo.


Compenetradas, faziam caras e bocas, inflamando as expressões, dilatando as narinas e esbugalhando os olhos com fascínio e repugnância.


Ela divide o teto com o pai Lúcio e eventualmente com sua irmã um pouco mais nova, Berta. Sabemos que as meninas possuem mais duas meias-irmãs: Huga e Ariel, que foram embora com a mãe quando o relacionamento acabou.

Entre os caquinhos distribuídos em pouco mais de cento e trinta páginas, muitas perguntas não são respondidas, e o leitor apenas consegue fazer suas próprias suposições sobre a família, como um estranho que encontra um diário pessoal perdido no banco de um trem.


Os insetos adoravam dormitar nas xícaras, explorar os recônditos dos nossos tênis, mergulhar no resto de água do garrafão, palmilhar nossas escovas de dentes.


No apartamento onde o acumulo do pai se estende como tentáculos de um polvo por todas as peças, as filhas se criam por conta. Sexo, drogas e música fazem parte do entra e sai do local durante o dia. Quando a fome bate, elas ligam para o pai. Se ele não tem dinheiro, o menu se resume a água congelada e sal.

Mas curiosamente ambas as meninas estudam em um colégio particular, e quando são levadas a restaurantes por Lúcio, possuem a liberdade de escolher qualquer prato, sem restrição de preço. Não sabemos o que ele faz, apenas que ele gosta de tomar uma cerveja gelada na mesa de um bar.


Eu fazia questão que todos os conhecidos viessem à nossa casa para fumar maconha, inclusive aqueles que eu ainda não conhecia.


Se Abigail é resignada com a sua vida, trocando de parceiros sem tomar os devidos cuidados e apenas observando o pai - que parece um tanto depressivo ao desejar a morte inúmeras vezes - dormir. Sua irmã Berta foi praticamente adotada pelas famílias de suas amigas, ganhando roupas, dormindo em casas alheias, sendo convidada a viajar junto nas férias e até mesmo comemorando seu aniversário longe de seu pai e da sua irmã.

Em alguns momentos, o leitor descobre que não foi sempre assim. E surgem as perguntas se o comportamento desligado de Lúcio começou após a sua separação de Zoma, se a separação ocorreu por causa do seu distanciamento e falta de responsabilidade com as filhas, ou se não é nada disso. 


Em qualquer lugar do país a TV é sempre a mesma e quer sempre o mesmo - que a gente deixe de ver as diferenças e semelhanças e não converse sobre a nossa vida.


Também nada sabemos sobre a mãe das duas adolescentes, quem é, onde está, se fugiu, se morreu, o caso é que pelo menos em um momento da narrativa Abigail gostaria e precisava que ela existisse.

Por ser narrado por uma adolescente, há cenas de extrema violência descritas de uma forma um tanto blasé, com a típica inocência de quem parece não saber o quão sério são as atitudes e as consequências do que está sendo vivido. O que pode causar uma grande agonia nos leitores mais sensíveis.


Pai, palavras bonitas e ditas de maneira organizada, comunicando um pensamento coeso e brilhante, não alimentam ninguém.


Com isso certas cenas podem passar uma certa artificialidade, como se o excesso de caixas no apartamento fizesse uma oposição ao vazio interior dos seus moradores.

Uma leitura onde pais podem refletir e observar mais os efeitos de suas atitudes sobre os filhos. Uma leitura onde os jovens podem analisar que não vale tudo para chamar a atenção ou tentar curar suas carências, visto que as consequências podem ser muito mais doloridas.


Não sei qual fundamento me fez vir ao mundo, já que não contribuo para nada, nem para o meu próprio benefício.


Um livro onde os cacos se tornam cada vez menores já que não param de quebrar em um ambiente onde não se vive, mas apenas se sobrevive em meio à fome, o abandono e a dependência da bondade alheia.


Os tais caquinhos
Natércia Pontes
Companhia das Letras
2021 - 141 páginas

*Livro recebido pelo blog por participar do Time de Leitores 2021 do Grupo Companhia das Letras



terça-feira, 13 de abril de 2021

Os Sonhadores


Sinopse: Uma pacata cidade nos Estados Unidos é transformada por uma misteriosa doença. Seus habitantes caem aos poucos em um sono profundo, perpétuo, e os que continuam despertos precisam aprender a seguir com a vida e a sobreviver - sem saber se irão acordar no dia seguinte. 

Tenho o hábito de comprar os livros e quando os pegos para ler, não leio nem sinopse nem orelha, então imaginei pelo título que Os Sonhadores se tratava de pessoas que, ou corriam atrás de seus objetivos, ou passavam a vida vivendo apenas de sua imaginação. Que grande engano.

O livro publicado em 2019 pela escritora norte-americana Karen Thompson Walker parece ser uma prévia do que aconteceria no mundo em 2020, só que em uma escala menor.


Uma estranha névoa é vista à deriva cidade afora nessa primeira noite, a noite em que o problema começa.


Em Santa Lora, uma pequena cidade da Califórnia, uma universitária, após uma noite de festa, não acorda mais. Os médicos são chamados e ela é levada para o hospital para descobrirem o motivo pelo qual ela não sai deste sono profundo.

Os dias passam e novos casos são identificados entre universitários que habitam no mesmo andar, a universidade é evacuada e os outros moradores do andar colocados em isolamento. Mas o desconhecimento sobre o que aconteceu e a fuga dos confinados espalham o vírus do sono por toda a cidade.


Os estudantes de biologia ali presentes um dia virão a aprender este fato: certos parasitas podem distorcer o comportamento de seus hospedeiros para servir a seus próprios propósitos.


Narrado em terceira pessoa, o leitor acompanha diferentes vivencias através de alguns personagens. Começando por Mei, a universitária que tem contato com as primeiras vítimas e acaba se unindo aos voluntários para ajudar os moradores da cidade, muitos definhando sozinhos em suas casas, sem que ninguém soubesse que precisavam de ajuda médica.

Sara e Libby são duas irmãs órfãs de mãe, cujo pai há muito tempo se prepara para o apocalipse, quando o pai é infectado pelo vírus, as duas precisam amadurecer para sobreviverem sozinhas, enquanto resgatam lembranças da mãe. 


Tantos dias parecem propensos a descambar para o desastre, mas tantos tomam o rumo contrário.


Uma das personagens que mais tempo permanece adormecida é Rebecca, uma universitária que engravida pouco antes de apresentar os sintomas do vírus. Através dela o leitor vê o surgimento da vida em meio a morte e o desespero entre os que a cercam.

Ben e Annie são um casal de professores com uma recém-nascida, trocaram um apartamento em Nova York por uma casa em uma comunidade pequena em busca de qualidade de vida. Inicialmente eles não acompanham as notícias, isolados no próprio mundo, mas ao terem consciência e tentarem sair da cidade, são impedidos pelo fato da bebê ter recebido leite de uma voluntária infectada.


Por enquanto, estão vivos, mas o futuro está se distanciando deles a cada segundo, o próprio tempo se lançando com ímpeto à frente, sem eles.


Logo no início, Catherine deixa a filha em Los Angeles para avaliar se o que ocorre em Santa Lora é um distúrbio psiquiátrico, e acaba presa junto com todos os demais na cidade. É ela que conta um pouco da linha de frente dos que atendem os infectados.

Na história há uma mistura de passado e presente nos personagens bases, o que permite acompanhar mais as suas mudanças conforme os fatos iam acontecendo, impactando no futuro que está nas páginas seguintes. Eu acho que eram estas bases a reflexão principal do livro, já que ele expõe diferentes aspectos psicológicos. Mas o nosso mundo mudou, e o que poderia ser mais um romance, pode ter o seu significado alterado por quem o lê. 


Quarenta dias: o período que outrora os navios deviam esperar entrar no porto de Veneza - tempo suficiente, era a esperança deles, para que uma doença contagiosa se exaurisse.


Está tudo nas páginas, o vírus aumentando o número de vítima exponencialmente, o uso de máscara para evitar pega-lo pelo ar, a limpeza das mãos, o distanciamento de dois metros, a compra desenfreada por comida, o desespero de não poder chegar próximo as pessoas que amam, o fechamento de uma fronteira regional, a culpa por ter infectado alguém sem saber.

Então sim, a impressão que se tem é que o livro está narrando o que estamos vivendo, basta trocar o nome de vírus do sono por Covid. Pois nas páginas estão os cuidados, os negacionistas, os que infectam os outros, a morte de inocentes, a dor da perda, a alegria da cura.


O que eles sabem é que essa doença é excepcionalmente contagiosa, como o sarampo: uma pessoa pode pegar sarampo se passar por uma sala dez minutos depois de alguém infectado ter tossido lá uma única vez.


Quando comecei a ler, quase fechei as páginas e deixei para depois, para quando tudo voltar ao normal. Mas em meio a tantas semelhanças resolvi seguir em frente, em busca de um fim do vírus literário, como se ele pudesse indicar que logo logo, esta agonia que já está indo para o segundo ano, finalmente irá terminar.

Qual seria a minha opinião sobre essa leitura se não houvesse a Covid? Nunca vou saber. Minha única certeza é que os personagens não foram mais os mesmos quando o vírus enfim parou de se alastrar, assim como nós não seremos.


Os Sonhadores
The Dreamers
Karen Thompson Walker
Tradução: Renato Marques
TAG - Alfaguara
2019 - 331 páginas

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terça-feira, 6 de abril de 2021

Vitorianas Macabras


Sinopse: Vitorianas Macabras é uma poderosa antologia que presta homenagem a todas as mulheres da Era Vitoriana que abriram novos caminhos na arte. Estas treze escritoras livres e transgressoras ecoam suas vozes ao longo das décadas e suas histórias assustadoras ressaltam  beleza do Horror em todas as suas formas.

O segundo livro lido da linha Macabra da Editora Darkside simplesmente ganhou o meu coração, e já abro o post dizendo: leia, vale muito a pena. Relembrando que o primeiro foi o Antologia Macabra, já resenhado aqui no blog.

Mais do que contos, é uma aula de história e uma amostra do talento das mulheres em contos atemporais, que causam arrepios, reflexões e até mesmo lembranças das histórias de fantasmas que ouvimos na infância.

A organização e tradução da Marcia Heloisa proporcionam um verdadeiro presente para o leitor. Primeiro porque antes de tudo ela nos faz um resumo, situando o que é considerado o período vitoriano, quem era a rainha Vitória e qual a influência desta mulher em escritas após o seu período no poder.

Com isso é possível ter um pouco mais da compreensão da época em que essas escritoras nasceram e cresceram, e como uma era de crenças e aspectos mais sombrios, onde incluímos figuras como Jack, O estripador, geraram ótimos contos de suspense e terror.

Cada conto contém uma apresentação da escritora, onde sabemos seu ano de nascimento e morte, número de livros escritos, um pouco de sua vida e uma fotografia. A seguir listo um a um, prepare-se, que são vários.


A Porta Sinistra - Charlotte Riddell

Narrado em primeira pessoa, um homem conta uma história vivida em sua juventude, quando na necessidade de conseguir dinheiro para pagar as contas de sua família, aceita o emprego de tentar manter uma porta fechada na casa de um homem milionário. 


Existem pessoas que não acreditam em fantasmas. A bem da verdade, existem pessoas que não acreditam em nada.


O Mistério do Elevador - Louisa Baldwin

Um ex-soldado do exército conta o motivo pelo qual ele e um colega abandonaram bons empregos em um hotel em Londres, após uma noite misteriosa.


Soldados são educados e eficientes e, depois dos marinheiros, são os favoritos do público.


Mortos em Mármore - Edith Nesbit

Homem conta a trágica história vivida junto com a sua esposa ao alugar um chalé em uma região que teria sido amaldiçoada, ao qual teve que pagar um preço alto por não acreditar nas lendas que lhe contaram.


Hoje em dia, exige-se uma "explicação racional" para que uma crença seja considerada possível.


A Prece - Violet Hunt

Quando uma esposa recebe a notícia de que o amor da sua vida está morto, ela se agarra a ele e reza desesperadamente pelo seu retorno. Mas ao ter o seu pedido atendido, sua vida muda completamente.


A esposa soltara um grito de gelar o sangue dos presentes e depois se atirara na cama sobre o marido morto.


O Coche Fantasma - Amelia B. Edwards

Um jovem recém-casado se perde durante a caça às perdizes, caminhando a esmo, ele conseguira a muito custo informação para retornar aos braços da esposa. Mas o frio irá atrapalhar a sua jornada para encontrar o transporte apropriado.


Tenho minha opinião formada sobre os assuntos e, podendo me fiar no testemunho dos meus próprios sentidos, prefiro ser guiado por eles.


Napoleão e o Espectro - Charlotte Brontë

Napoleão se prepara para dormir, mas antes que possa fechar os olhos, os gemidos de um espectro o alertam, fazendo ele seguir o espírito.


A ameaça não produziu mais do que uma rápida risada sarcástica seguida de um silêncio absoluto.


O Conto da Velha Ama - Elizabeth Gaskell

Uma ama que acompanha gerações da mesma família conta para as crianças os acontecimentos que ela viveu junto com a mãe dos pequenos em uma antiga mansão, quando a menina se tornou órfã.


Eu era apenas uma menina na escola do vilarejo quando, um dia, sua avó entrou e perguntou para a professora se havia alguma aluna que daria uma boa ama.


A Sombra da Morte - Mary Elizabeth Braddon

Em uma casa com fama de maldita, onde ninguém quer ficar próximo após o anoitecer, casal de empregados buscam uma órfã de outra região para trabalhar no local, acomodando a menina em um quarto que suga sua vitalidade.


E existem ou não provas, eu não sei, mas os moradores da região acreditam nisso piamente, tanto quanto creem nos evangelhos.


A Janela da Biblioteca - Margaret Oliphant

Uma adolescente passa as férias na casa da tia, quando escuta os amigos da mesma discutindo se uma janela da biblioteca que fica em frente à casa é verdadeira ou apenas uma pintura. A partir daquele momento, a janela vira uma obsessão para a jovem, que não sabe se suas visões são verdadeiras ou não.


No início, eu não fazia a menor ideia do quanto já se especulara sobre aquela janela.


A Verdade, Somente a Verdade, Nada mais do que a Verdade - Rhoda Broughton

Narrado através de troca de cartas, Elizabeth encontra a casa perfeita para a amiga Cecilia em Londres, mas não pode ficar na cidade para recebe-la. Por correspondência, descobre que a beleza esconde dor e tristeza.


Quando pus os pés na casa, achei que tinha entrado por engano em um pedaço do céu.


A Maldição da Morta - H.D. Everett

Jovem viúvo explica ao amigo dos tempos de escola os motivos de continuar seguindo as regras da sua falecida esposa dentro de casa e pelo qual não pode se casar novamente, se mantendo em uma tensa solidão.


Talvez, após tantos anos de casado, tivesse passado a depender de uma mulher que cuidasse dele.

 

Amor Dure - Vernon Lee

Narrado em ordem cronológica conhecemos um jovem historiador que ganha uma bolsa de pesquisa na Itália. Em suas pesquisas nos arquivos sobre a história da Urbania, ele se depara com Medea da Carpi, uma mulher belíssima, cujo poder remete a outras figuras poderosas como Bianca Cappello e Lucrécia Bórgia. 

Quanto mais o historiador descobre, mais obcecado por esta mulher, já morta, ele se torna, a ponto de tudo em sua vida girar em torno dela. 


A história da Urbania não é de todo desprovida de romance, embora tal romance tenha sido (como sempre) desprezado por nossos pedantes eruditos.


Onde o Fogo não se Apaga - May Sinclair

Após viver algumas decepções amorosas uma mulher vive um longo romance com um homem casado, e mesmo quando a paixão acaba, descobre que o seu inferno é aturar quem não mais suporta pela eternidade.


Agora se perguntava por que, se o mandara embora no dia anterior, deixara que voltasse.


Depois dos contos, há algumas páginas com curiosidades sobre a Londres do período vitoriano, como as lutas de cães e ratos, o uso do ópio, os hospícios, a imundície que o Rio Tâmisa já foi, as assassinas de bebês entre outros.

O que eu não gostei tanto na edição: nas primeiras páginas observa-se diferenças na impressão, algumas páginas saíram com a tinta mais escura, meio borrada, que dão a impressão as vezes de estarem desfocadas. Proposital para falar de uma rainha casada com um fantasma por quarenta anos ou um erro? Eis mais um mistério. 

Mas isso não conseguiu reduzir o quanto fiquei admirada com a edição, onde toda uma era é contada na visão feminina através de contos que deixam os pelos do braço arrepiados, além de abrir ainda mais a visão sobre a cidade de Londres, o que permite facilmente criar um roteiro bem diferente do tradicional.

Recomendo de olhos fechados, pois mesmo quem não curte o gênero, provavelmente irá se interessar por toda história, assim como a própria visão cultural do período.


Vitorianas Macabras
Várias autoras
Organização e Tradução: Marcia Heloisa
Macabra - Darkside
2020 - 384 páginas