terça-feira, 19 de março de 2019

A Vendedora de Livros



Sinopse: Denver- 1962: Kitty Miller já se acostumou à vida de solteira. Ela ama a livraria que gerencia com a melhor amiga, Frieda, e adora ser dona do próprio nariz. Ela pode ir aonde quiser, quando quiser, e não deve satisfações a ninguém. Denver-1963: Katharyn Andersson é casada com Lars, o amor de sua vida. Eles têm filhos lindos, uma casa elegante e bons amigos. É tudo que Kitty Miller um dia desejou para si - mas essa vida só existe em seus sonhos. No entanto, toda vez que Kitty sonha com a vida de Katharyn, passa a achar aquela versão de si mais irresistível, mais verdadeira. Como escolher entre qual das duas vidas que leva paralelamente é a que quer viver? E qual será o preço de permanecer Kitty, ouse transformar de uma vez em Katharyn?


Este não é o meu quarto! Onde estou? 

É desta forma que o leitor começa a entrar na vida de Kitty/Katharyn, a mesma mulher que em um momento é solteira, sócia de uma pequena livraria em crise, que possui laços fortes com os pais e vive de forma independe. Quando ela dorme, ela se torna uma mulher casada, mãe de três crianças pequenas, sendo um dos meninos autista, e dona de casa.

Em cada uma das vidas ela se vê realizando sonhos e com problemas a resolver. E conforme os tempos vão se mesclando, fica cada fez mais difícil para a personagem saber qual é a sua vida real e qual é a vida imaginária. 

É muito otimista que meu cérebro tenha imaginado um marido que pode comprar um diamante desse tamanho.

Livro de estreia da escritora americana Cynthia Swanson, A Vendedora de Livros é instigante e reflexivo ao tratar de um tema recorrente no ser humano: a eterna insatisfação do que temos. Ao viver duas vidas, uma em 1962 e outra em 1963, onde o que as difere são justamente o se eu tivesse feito isso, no caso específico do livro se ela conseguisse socorrer Lars, o marido de Katharyn ao qual Kitty apenas ficou esperando em uma cafeteria. E nesta provocação Kitty/Katharyn mostra ao leitor que não existe vida perfeita, que independente do caminho escolhido haverá risadas e lágrimas, e não é no passado ou no futuro que iremos nos encontrar.

Narrado em primeira pessoa, vivemos as mesmas confusões de Kitty/Katharyn, o que faz com que os olhos devorem as páginas em busca de respostas. A cada descoberta nos surpreendemos junto com a personagem, e não raro se pode bolar teorias para a razão de ela ter criado outra vida para fugir da sua realidade.  E como não temos a visão dos demais personagens, não se sabe quem está certo ao afirmar onde é a sua vida verdadeira.

Será que tem algum outro lugar onde eu possa procurar? Alguma pista que deixei escapar?

Por ser uma dona de livraria, o livro é recheado de referências bibliográficas, começando pelo gato da personagem que se chama Aslam – o leão de As Crônicas de Nárnia – passando pelos livros que ela seleciona para indicar aos seus clientes e conhecidos. Eles também são elos entre as duas vidas, e sua participação não são mera coincidência.

Além dos livros a personagem é bastante musical, possibilitando a criação de uma playlist somente com os sucessos dos anos 60, sendo Patsy Cline a cantora favorita da personagem. Alias pequenas partes das letras de música country de Patsy podem ser encontradas nos capítulos do livro, sendo também um elo entre os dois mundos.

No entanto, teria preferido que minha personagem neste sonho fosse um pouco mais moderna.

Em relação às roupas a personagem possui estilos opostos em cada vida. Solteira ela tem um estilo despojado de cores vibrantes e um cabelo indomável, como Katharyn ela tem Jackie Kennedy como referência, cores sóbrias e cabelos arrumados fazem parte da sua rotina. 

Uma área bastante delicada no livro é justamente a relação de Katharyn com Michael, o filho autista. Ao mesmo tempo em que ele quebra a perfeição de um dos mundos, existe todo um contexto sobre preconceito e aceitação de mães e filhos e convivem com esta doença.

Então, após mais de uma semana de sono sem sonhos, minhas visões noturnas retornaram.

Um livro sobre família, amor, amizade, perdas, desejos e valorização. É impossível não se encantar e não entender Kitty/Katharyn, ao mesmo tempo em que o leitor pode fechar a última página e refletir sobre o seu próprio presente sem precisar dormir e entrar em outra vida.

A Vendedora de Livros
The Bookseller
Cynthia Swanson
Tradução: Julia Romeu
TAG Inéditos – SUMA
2015 – 380 páginas

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quarta-feira, 13 de março de 2019

Primavera num espelho partido



Sinopse: Primavera num espelho partido é um livro arrebatador, que conta a trajetória de uma família separada pela prisão e pelo desterro, mas que sobrevive graças à esperança. O romance intercala múltiplas vozes narrativas, incluindo a do próprio Benedetti, que vivenciou a violência da ditadura e passou parte de sua vida exilado. Ao entrelaçá-las, o autor compõe um mosaico de impressões e sentimentos, num livro marcante sobre a resistência do amor em tempos sombrios.

Para o mês de fevereiro/2019 a TAG Curadoria enviou para os seus associados a obra indicada pelo escritor brasileiro Julián Fuks.

Durante a década de 1970, em plena ditadura uruguaia, uma família composta de pai, mãe, filha e avô contam a separação devido à prisão do primeiro. Completando a narrativa está um amigo e o próprio autor, que conforme é indicado na sinopse do livro, compartilha suas próprias memórias.

Sempre tem alguém que está pior, como concluía Esopo. E até pior do que o pior, concluo eu.

Santiago é o pai, que permanece preso no Uruguai e escreve cartas para a família que está na Argentina em exílio. É ele o primeiro personagem apresentado, mas não é o único responsável por toda a mudança na vida familiar, visto que a sua esposa também era militante. 

Em terras Argentinas estão os demais personagens, como a mãe Graciela e a filha Beatriz. Mesmo juntas, existe uma distância entre elas, como o fato de Beatriz só chamar Graciela de mãe quando deseja agradá-la. 

É somente quando alguém chega a perceber que uma rua não lhe é estrangeira que a rua para de vê-lo como um estranho.

Narrado em terceira pessoa, a parte de Graciela mostra uma mulher forte, que trabalha e agora se vê cheia de dúvidas com a longa separação. Ao mesmo tempo é a responsável pela parte mais inverossímil do livro.

Já a narrativa da menina Beatriz é uma das mais agradáveis, e ao mesmo tempo reais em relação aos personagens. Sua visão está na saudade e nas mudanças, no que ela percebe e no que ela imagina, rendendo alguns momentos cômicos na história.

As notícias do rádio não somente não eram tediosas, como nos bons tempos, às vezes chegavam a ser arrepiantes, já que em janeiro de 1975 costumavam aparecer dez ou doze cadáveres diários nas lixeiras portenhas.

O pai de Santiago, Don Rafael, compartilha com o leitor suas dúvidas, histórias e culpas. Entre a nostalgia e a atualidade, parece que as cartas acabam aproximando mais pai e filho, já que aqui também há um distanciamento parental, antes muito maior que a distância física.

Fechando o quinteto temos o amigo Rolando Asuero, o solteirão da turma que dá uma ideia de como era o antes de todos os seus companheiros se separem, sejam pela prisão, pelo exílio ou pela morte.

Eu não tirito porque sou menina e não velhinha e também porque me sento perto da estufa.

Entre os personagens, o próprio Mario divide as suas histórias do exílio, usando a narrativa em primeira pessoa e letras em itálico. E na minha opinião, junto com os capítulos de Beatriz, são os mais interessantes. Neles estão suas mudanças de país, as pessoas que encontrava pelo caminho, as mudanças que aconteciam em Cuba em uma visão apaixonada que o socialismo de Che provocava na época.

Mario Benedetti muda o estilo narrativo conforme o personagem, mais do que alterar entre primeira e terceira pessoa, está o uso de cartas – recurso que eu vi sendo utilizado por Amós OZ em seu maravilho A caixa-preta, ou apenas contando o que está acontecendo – recurso utilizado em outro livro que eu acho muito interessante chamado Meu Nome é Vermelho de Orhan Pamuk.

Mas as mulheres sempre tinham fofocas e modas e horóscopos e receitas de cozinha para trocar, pelo menos naquela época, e talvez por isso eles sempre se reuniam à parte para consertar o mundo.

O problema é que esta mistura de recursos nem sempre é muito fácil para o leitor e creio, nem para o escritor, já que a história exige uma atenção extra para seguir cada fio condutor até eles se unirem. No caso de Primavera num espelho partido, em alguns momentos fica a sensação de superficialidade, mesmo tendo um tema tão tenso e que até hoje provoca acaloradas discussões.

Um exemplo é a própria apresentação dos personagens, logo de início você não sabe sobre quem está se falando, fica-se perdido tentando encaixar as peças, tornando assim a intensidade da história secundária. Imaginei que o objetivo do autor talvez você transferir para o leitor o sentimento de estranhamento, de perda de identidade em um local estranho, mas o efeito colateral pode ser justamente um distanciamento dos fatos.

Também deve imaginar que, mesmo que ele e eu tivéssemos tido todas essas discussões em profundidade, ele teria seguido o caminho que definitivamente escolheu de qualquer maneira.

Digo pouca intensidade pelo fato de que a falta de detalhes acaba não criando laços e sim muito mais perguntas sobre eles, parecendo tudo muito ensaiado, sem paixão na escrita. Por isso assumo que apenas literaturei Primavera num espelho partido, que mesmo de leitura rápida não me provocava o desejo de saber o que viria a seguir.

Mas isso não me impede de recomendar o livro. Parece loucura? Pode ser. Mas por outro lado a escrita de Mario Benedetti é fácil, e consegue sim dar uma visão de algumas das consequências da ditadura para quem só ouviu falar sobre ela, e sem saber, vive até hoje os seus efeitos colaterais.

Primavera num espelho partido
Primavera con una esquina rota
Mario Benedetti
Tradução: Eliana Aguiar
TAG Curadoria – Alfaguara
2009 – 238 páginas

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quinta-feira, 7 de março de 2019

Alfabeto dos Ossos



Sinopse: O poeta Archie Lunan queria ser escritor de ficção científica. Por causa da vida desregrada e da personalidade polêmica, tudo o que conseguiu foi publicar um pequeno livro de poesias. Depois que se mudou para a remota ilha Lismore, na Escócia, as coisas nunca mais entraram nos eixos. Acabou desaparecendo no mar, sem deixar rastro, e sob fortes suspeitas de suicídio. Morreu sem ter seu talento reconhecido. Quando ainda era adolescente, Murray Watson se encantou pela obra de Archie e se tornou seu maior admirador. Hoje, porém, como professor universitário, sua carreira está tão conturbada e fadada ao insucesso quanto a do poeta. Sua única satisfação é pesquisar a fundo a história de seu autor preferido.

Na sua juventude Murray Watson encontra a única obra de Archi Lunan e se apaixona pela escrita do poeta que sonhava em ser escritor de ficção científica. Anos depois, como professor universitário, escolhe a biografia do escritor como a tese do seu doutorado para colocar o nome de Archi na história da literatura.

Conforme ele tenta pesquisar em bibliotecas ou entrar em contato com antigos conhecidos se depara com uma escuridão, onde nem a morte do escritor é clara, já que ele desapareceu no mar. O silêncio e as informações selecionadas não lhe fornecem nem uma base para começar, e nesta busca ele acaba tendo que enfrentar os seus próprios demônios.

Algumas totalmente escritas com uma letrinha miúda, como as cartas de um condenado para a família.

Identificado como um livro que mistura suspense e romance policial, inicialmente Louise Welsh me fez lembrar de um escritor dizendo que todo livro neste estilo precisa ter cenas de sexo. Só que este clichê nesta história em especifico acaba mais atrapalhando do que ajudando.

Aqui me refiro a um capítulo que poderia ser chave, mas acaba na superficialidade total: Murray vai até a casa da viúva do sociólogo Alan Garret que também estava pesquisando sobre Archi, mas não em relação a sua obra, mas o seu possível suicídio. Garret morre em um acidente de carro sem explicação na mesma ilha onde o poeta desaparece. Toda a pesquisa descrita poderia situar o leitor da base da obra, se não fossem as páginas de sedução forçada seguida de sexo com a viúva.

Como podia guardar tantas datas, aspectos e versos, e esquecer uma mulher bonita?

Somado a isto há toda a questão da relação familiar com o irmão mais novo e um trauma/culpa não resolvido em relação ao pai que não fica muito claro de início e se perde em meio a descrições superficiais, tornando a história um tanto desconexa em alguns momentos. E com isto o foco acaba mais nas discussões familiares e desilusão amorosa de Murray do que nas poucas pistas que vão surgindo no decorrer do livro.

Mas é quando Murray chega à ilha Lismore na Escócia, última moradia de Archi e atual de sua viúva que a minha ficha como leitora cai: não estamos falando de um romance policial e muito menos de suspense. É um livro sobre a psicologia humana, e um ciclo que envolve mentiras, vaidade e suicídio, onde ouso dizer principalmente o que leva ao último.

Era isso o que eles estavam fazendo, desafiando águas perigosas, e nenhum deles possuía um par de nadadeiras.

Neste momento o tédio abre uma brecha para a curiosidade, e entre conversas e descobertas observa-se a rivalidade acadêmica, onde um talento que foge do tradicional é colocado à sombra pelos seus colegas ao escolher o tumulo como altar. A mesma rivalidade se vê entre os professores da instituição onde Murray leciona, cujo troféu é representado por uma mulher.

A morte aqui tem dois papeis: a de desafiar e a de libertar dos fantasmas que perseguem os personagens, mesmo que para um caminho que se desconhece. E somente quando você a entende como personagem, a presença, mesmo que rápida, dos secundários começa a ter sentido. Abrindo assim para Murray e quem o acompanha a vida do próprio Archi.

Talvez pudesse abordar o assunto mencionando sua própria experiência em vasculhar os detritos que os mortos deixaram para trás.

Terminei este livro sem uma opinião definitiva. Quando estava no final, achei as páginas faltantes muito poucas para o leque que havia se aberto. E talvez seja isso o que me incomode no livro: quando a essência dele apareceu, já era o seu final, e ele possuía potencial para ser bem mais explorado.


Alfabeto dos Ossos
Naming the Bones
Louise Welsh
Tradução: Bruna Hartstein
Bertrand Brasil
2010 – 460 páginas