segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Afirma Pereira


Sinopse: Um momento trágico da história da Europa: crescem o salazarismo português e o fascismo italiano; a Espanha era cenário de uma violenta guerra civil. Um relato preciso que evoca momentos cruciais da vida de um protagonista que se dedica a não ser herói de nada. Pereira, jornalista apagado responsável pela página cultural de uma reduzida gazeta vespertina, protagoniza solidão, sonhos, a consciência de viver e de optar, ou talvez de não optar. Tão humano, se afirma Pereira sempre às margens do precipício.

O livro de agosto da TAG Curadoria foi indicado pela escritora Jhumpa Lahiri, ao qual já resenhei o livro Intérprete de Males aqui no Blog. Afirma Pereira é do escritor italiano Antonio Tabuchi, que assim como Jhumpa também escreve em um segundo idioma.

A história ocorre em Agosto, em pleno verão Europeu. A cidade é Lisboa e o ano 1938. Pereira é um jornalista formado na universidade de Coimbra, viúvo, perdeu sua esposa para a tuberculose e nunca mais se envolveu com nenhuma outra mulher. Durante 30 anos escreveu nas páginas policiais, mas atualmente é o diretor e único responsável pela página cultural de um jornal católico.

Era vinte e cinco de julho de mil novecentos e trinta e oito, e Lisboa cintilava no azul de uma brisa atlântica, afirma Pereira.

A página cultural é publicada todos os sábados, e ali ele coloca a tradução de contos franceses do século XIX e sobre escritores famosos falecidos. Fora isso, as suas preocupações são resumidas a sua alimentação, o seu problema cardíaco e a conversar com a esposa.

Tudo muda ao ler um artigo sobre a morte do recém formado Monteiro Rossi. Pereira que tinha uma fixação sobre não acreditar na ressureição da carne vê no rapaz um possível estagiário para auxilia-lo a antecipar os necrológicos para os grandes escritores da época, afinal, em tempos de guerra, elas poderiam ocorrer a qualquer momento. 

Porque nós fazemos um jornal livre e independente, e não queremos nos meter com política.

Rossi aceita o trabalho, mas ao contrário de contribuir com artigos, o rapaz junto com uma moça chamada Marta acaba abrindo os olhos de Pereira para o mundo presente, e ao acordar, suas ideias sobre a realidade começam a ser questionadas.

Suas dúvidas o levam a se internar em uma clínica para cuidar mais de sua saúde, é quando conhece o Doutor Cardoso, que lhe explica a sua teoria sobre não termos uma única alma, mas uma confederação de almas e um eu hegemônico, que no caso de Pereira quer vir a tona, deixando de viver o passado para recomeçar no presente.

Então me explique tudo, implorou Pereira, porque eu gostaria de fazer minhas escolhas, mas não estou bem informado.

Esta teoria leva o leitor a outro personagem, o Padre António, que após uma discussão sobre a alma ser única ou não, acaba explicando o problema do clero basco e a questão de apoio a república e a repressão da ditadura espanhola de Franco. A soma de tudo é que permitira Pereira decidir sobre como deseja conduzir a sua vida.

Afirma Pereira tem o próprio escritor como narrador, misturando um personagem que passou a visita-lo com um jornalista que ele conhecia, surgiu a figura de Pereira, que lhe conta suas desventuras em um mês muito quente, em um país que fica na Europa e não se sente parte dela, e sobre uma ditadura que passa despercebida aos mais desligados. Por isso a nota do autor, que foi publicada no Il Gazzettino em 1994 é uma espécie de complemento e preparação do que irá vir.

eu não sou companheiro de ninguém, vivo sozinho e gosto de estar sozinho, o meu único companheiro sou eu mesmo.

Confesso que inicialmente o uso numeroso do termo Afirma me irritou, e julguei precipitadamente que o livro fosse ser muito chato. Errei feio. Conforme Pereira foi desvendando o que havia por trás da cortina de boas notícias de Lisboa, as referências históricas e literárias, assim como os jovens que passam a orbitar em volta deste homem tão agarrado ao passado, o livro ganha um ritmo que me agarrou como leitora.

Afirma Pereira é um livro ao mesmo tempo intenso e rápido de ler. Os fatos provocam a necessidade de ir devorando as páginas, ao mesmo tempo que a curiosidade impulsiona para descobrir as respostas junto com Pereira. Conforme a tensão pelo perigo vai tomando conta da história, até ela termina de forma arrebatadora e surpreendente.

Dizem que vivemos numa ditadura, respondeu o garçom, e que a polícia tortura as pessoas.

Uma recomendação é necessária para quem irá se aventurar nestas páginas, faça-o de estômago cheio. Pereira é um homem bom de garfo, entre omeletes, peixes, limonada e vinho branco, seus diálogos ocorrem quase que na totalidade durante as suas refeições. A ponto que a TAG incluiu na revista que acompanha o livro as receitas degustadas ao longo da história. Aliás, a produção gráfica do livro está de parabéns, tanto a Lisboa na luva quanto os limões na capa complementaram a experiência.

Finalizei a leitura batendo palmas para Tabucchi e com saudades do Pereira. E como não poderia deixar de ser, recomendando a leitura para todos de uma Lisboa que poderia ser qualquer cidade, em qualquer época, se nunca olharmos além de nossas próprias janelas.

Afirma Pereira
Antonio Tabucchi
Tradução: Roberta Barni
TAG - Estação Liberdade
1994 - 157 páginas

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