Que Stephen King é um mestre do terror, ninguém discute. Mas este livro com quatro contos tem algo a mais, um reflexo duro da nossa realidade (mesmo quando a história ocorre em 1922), e no meu caso, coincidiu até com uma notícia que eu estava lendo. Sobre o que ele trata? Machismo. Ambição. Vingança. Inveja. Morte. Vida.
No primeiro conto (1922) Arlette quer vender as terras da família e se mudar para a cidade. Seu marido, o agricultor Wilfred não consegue nem pensar nisso, e convence o filho adolescente Hank ficar ao seu lado. Como a esposa, herdeira de grande parte das terras planeja vender as mesmas para uma grande empresa, só há uma solução: matá-la. E não se preocupe isso não é spoiller, está na primeira página do conto.
Quem conta é o próprio Wilfred, que vê o sonho de viver todos os seus dias na fazenda esfarelarem como pão velho após o crime, que seria perfeito se ele não se tornasse seu próprio julgador.
Uma frase dita pelo xerife da história me marcou bastante: "A Bíblia diz que o homem sempre é a cabeça da mulher, e que a mulher, se precisa aprender alguma coisa, deve aprender em casa, com seu marido.". Pelo número de crimes que ainda ocorrem com mulheres, o pensamento parece ainda existir em muitas cabeças masculinas nos dias de hoje, e no próximo conto.
Gigante do Volante acabou me impactando mais pela coincidência do episódio do estupro coletivo ocorrer enquanto eu o lia. Tess é uma escritora cujas personagens são velhinhas investigadoras. Metódica, até mesmo insegura, traça planos para todas as suas ações, até que um atalho muda a sua vida. Tess é estuprada e abandonada junto a outros corpos femininos para morrer. Quem sai do buraco e trava uma luta para sobreviver é outra mulher.
A nova Tess quer vingança, mas precisa esconder seus hematomas. A velha Tess e suas velhinhas acham melhor chamar a polícia, mas isso não satisfaz a mulher que sobreviveu ao inferno. Enquanto a discussão interna ocorre um plano é criado.
Neste conto, a realidade é expressa pela personagem Betsy e transcrevo para todos pensarem: "Mulheres em todos os cantos do mundo estão sendo estupradas enquanto falamos. Meninas também. Algumas que, sem dúvida, possuem bichinhos de pelúcia preferidos. Algumas são mortas, outras sobrevivem. Das que sobrevivem, quantas você acha que denunciam o que acontece?".
Extensão Justa, o terceiro conto da história, surge para aliviar a tensão das outras histórias, ao mesmo tempo em que nos leva a pensar no que a inveja é capaz de fazer. Streeter é um homem comum, tem família, emprego e câncer. Um dia, ao parar na estrada para vomitar, encontrou George Odabi em uma banca chamada Extensão justa. Havia apenas ele ali, e no momento em que a conversa começou, nenhum outro carro passou. Ele vendia extensões, inclusive de vida. O preço? Não é sua alma, e sim 15% do salário de Streeter e dizer o nome de uma pessoa que odeia. Streeter compra a extensão e acompanha toda a decadência da pessoa que invejava, já que todo o seu mal é passado para ela.
Conforme a história vai acontecendo, imagino os eleitores se dividindo em dois grupos: os que irão se agoniar e desejar que Streeter reconsidere e os que irão desejar encontrar George Odabi para tornar os próprios desafetos infelizes. Afinal, como diz Odabi "A alma dos humanos se tornou pobre e transparente".
Para finalizar, temos Um Bom Casamento. Darcy é o retrato da esposa americana pintado em muitos filmes da sessão da tarde, um bom casamento, filhos encaminhados, feliz em sua rotina. Mas ela precisou de pilhas, foi até a garagem e tropeçou em uma caixa que nada mais era que a segunda vida do seu marido.
Tentou procurar justificativas, alegar curiosidade masculina, mas algo a fez procurar por mais. E a verdade após vinte anos de casamento era aterrorizante. O que fazer após tantas mentiras? Como resolver sem marcar os próprios filhos? As escolhas e decisões de Darcy não são nada fáceis.
Mas nada fácil também é ler a justificativa de um psicopata "Ficamos procurando as esnobes. Essas são fáceis de reconhecer. Elas usam saias muito curtas e mostram as alças do sutiã de propósito. Elas seduzem os homens." e saber que não é ficção.
Talvez muitos achem essa resenha feminista, e ela é. Simplesmente pelo fato que precisamos parar e reordenar nossos pensamentos, valores, direitos e deveres. Para que se possa ler este livro, sentir medo, raiva e desespero, mas ao fechar a contracapa respirar fundo e saber que o mundo real é diferente. Só assim poderemos pegar firmemente na mão do autor e voltar à luz do sol.
Full Dark, No Stars
Stephen King
Tradução Viviane Diniz
Suma de Letras
2010 - 390 páginas
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