terça-feira, 21 de setembro de 2021

O deus das avencas



Sinopse: Em O deus das avencas, Daniel Galera expande seu universo narrativo para nos trazer um livro diferente de tudo o que já fez - especulativo e por vezes sombrio, mas extremamente humano. Na novela que dá título ao volume, um casal se fecha em casa à espera do nascimento do primeiro filho, e mergulha numa incerteza crescente, tanto sobre o destino deles como sobre os rumos do país. Em "Tóquio", Galera avança algumas décadas para retratar a vida de um homem solitário, obrigado a enfrentar o passado num mundo que atravessou um desastre ambiental e tecnológico. E por fim, em "Bugônia", dá um passo além ao recriar a história de uma comunidade pós-apocalíptica em simbiose com a natureza, que, pressionada pelas ameaças externas de um planeta devastado, precisa se transformar radicalmente.


O deus das avencas foi a minha primeira experiência com a literatura do autor brasileiro Daniel Galera, ao qual ouvia muito falar, em muitos casos as obras acompanhadas de elogios, o que fez a minha curiosidade aumentar ao receber o livro.

Como é indicado na sinopse são três histórias com personagens, lugares, contexto e tempo diferentes. Mas isso não me impediu de fazer uma ligação entre elas, mas primeiro vou falar um pouquinho de cada uma e apercepção que tive.

Sabem que é ilusão, mas também que, em certo sentido, estão realmente silenciando um pouco o mundo, construindo um abrigo contra o cerco das demais urgências.

A história que abre o livro é a que dá o título também, em O deus das avencas o leitor irá para o centro histórico de Porto Alegre, onde moram o casal Lucas e Manuela. É o ano de 2018, véspera das eleições presidenciais no Brasil. Manuela está grávida de quarenta semanas, sentindo as contrações, mas sem dilatação, o que gera o pedido da médica para que ela siga em casa caso mantenha a decisão de um parto humanizado.

Entre o isolamento tedioso do casal dentro do apartamento e caminhadas pelas ruas da cidade, eles vão de preocupações reais a diálogos e pensamentos que podem dar um ar de um pouco pedante e superficial, do estilo que se acha cheio de sabedoria, mas não consegue nem ter independência financeira familiar, já que os mesmos pais criticados por sua opção de voto são os que mandam dinheiro para a dupla se sustentar.

Às vezes tudo que precisava era ser um pouco usada, sabendo que dali a pouco, quando recobrassem as forças, ela seria amparada no que fosse necessário, sem riscos e sem cobranças.

Entre a preocupação com a natureza e fumar ao lado de uma gestante, fica claro que muitos dos assuntos discutidos são para preencher vazios de uma relação sem profundidade, cujo único laço é a criança que irá chegar.

Uma das curiosidades para mim foi as respostas que a obstetra dava aos telefonemas, ao qual me deixou em dúvida se Manuela ligava à toa durante toda a gestação ou se ela era realmente muito descansada. Sim, os personagens se tornam reais para mim durante a leitura.

Mesmo agora, porém, teme que os invoca de maneira precipitada, ao mesmo tempo tarde e cedo demais.

E assim todas as tragédias aqui imaginadas são refletidas nas duas histórias a seguir, ambas em um futuro distante, mas abordando dois estilos de vida que diferenciam as classes sociais após grandes momentos de caos.

Em Tóquio, a segunda história que se segue, tem início na cidade de São Paulo, em uma roda de terapia bastante peculiar em um local chamado APPPH - Associação de Pesquisas e Práticas em Pós-Humanidade.

Passei a odiar mesmo minha mãe depois de uma certa noite, em Tóquio, quando eu tinha dezoito anos.

Todos os presentes, incluindo o personagem que conduz o leitor pela história, possuem em comum o fato de um familiar ter realizado o escaneamento da sua mente, abandonando o seu corpo original para habitar os mais variados objetos, que podem ser de um robô a uma peça do tamanho de um chaveiro.

As pessoas aqui precisam reaprender a lidar com as engenhocas tecnológicas após as empresas responsáveis terem ido à falência. Sem assistência, são vozes cheias de memórias que podem ser ligadas e desligadas conforme a resistência de seu portador.

Não pensava na minha mãe, uma maluca que tinha decidido abrir mão dessa vida aos cinquenta e seis anos para digitalizar o conteúdo de seu cérebro, crente de que isso lhe garantiria a vida eterna.

Aqui me lembrei de outro livro lido recentemente e resenhado aqui no blog, pois assim como em Nossa Parte de Noite, os escaneados são pessoas ricas em busca da imortalidade, uma ambição tão desmedida que as faz ignorar todos os riscos e perigos em uma busca sem limites pela eternidade.

E o que é a eternidade em meio ao caos desta São Paulo protegida em uma bolha, no que parece ser um ambiente pós apocalíptico, onde apartamentos viraram fazendas de cultivo após devastação dos campos, o caminhar é feito por túneis climatizados devido ao calor insuportável que aflige a Terra, e ninguém parece se importar com os que estão fora deste "campo de força".

O mundo nada mais é do que o lugar do qual não podemos fugir.

A cidade de Tóquio aqui é onde o personagem sem nome vê a mãe pela última vez, perde o amor de sua vida, e descobre os planos maternos para se imortalizar. Fazendo com que uma relação de amor e ódio substitua o cordão de ligação entre os dois. As lembranças desta viagem fazem paralelo com o tempo presente da história, o que nos permite compreender com mais amplitude como tudo chegou naquele ponto.

Confesso que esta foi a história que mais gostei, pois ela proporciona reflexões interessantes não apenas sobre as relações humanas, mas também sobre o que determina o que somos? O nosso corpo? A nossa mente? Nossas lembranças? Ou os nossos sentimentos?

Sabe que deveria procurar em tanta complicação a leveza das possibilidades, mas na maior parte do tempo encontra um peso indistinto e difícil de carregar que a arrasta para longe da paz.

Quem fecha é Bugônia, ao qual fiquei em dúvida se seria em um futuro após Tóquio ou em tempo paralelo com ela, já que aqui temos uma comunidade que vive no mundo externo, longe das metrópoles fechadas. Sendo bem possível que a comunidade do Topo enxergasse apenas as luzes de São Paulo.

Nesta história fui conduzida pela jovem Chama, que nos apresenta quem são as lideranças do chamado Organismo, onde adultos e crianças dividem tudo, como em uma sociedade hippie pós apocalipse que encontrou um lugar aparentemente seguro. Para sobreviver aos inúmeros vírus que exterminaram parte da raça humana, eles consomem necromel frequentemente, que como o nome indica, é gerado pelas abelhas livres que também moram no topo a partir do corpo de pessoas mortas.

Que a diferença entre estar vivo e não estar vivo é um pouco como sonhar sabendo que está sonhando e de repente acordar e não ter certeza se ainda está sonhando ou não.

Tudo muda na comunidade com a chegada de uma nave e seu astronauta estrangeiro, trazendo diferentes sentimentos à toa, e comportamentos quase selvagens. Somado a isto eles se veem sob o risco de confrontar um outro grupo, este mais extremista e também perigoso, que de certa forma me remeteram ao filme Mad Max.

Todas as mudanças e ações são pelos olhos de Chama, que mesmo sem estudo, usa o seu conhecimento para avaliar o que é justiça e realizar questionamentos sobre o que é correto e o que deveria ser avaliado, demonstrando ser uma opção de liderança diferente entre os já conhecidos guias.

Há entre eles quem acredite na existência da alma, uma excrescência do corpo que persiste após a decomposição e precisa de carinhos e certas palavras e cantos para descansar de vez.

Esta leitura foi bastante curiosa e intrigante, se em um primeiro momento eu cheguei a achar o livro uma viagem, mudei totalmente de ideia ao prestar a atenção com outro olhar no jornal da noite, toda a destruição da natureza pelas queimadas, o derretimento do gelo, a pandemia que vivemos e seus negacionistas, o que fez acender aquela luz de que talvez esse futuro não seja nem irreal nem tão distante assim se não mudarmos os rumos atuais.

O que pode parecer um exagero de Daniel Galera, onde no lugar de carros voadores e soluções para todas as doenças temos o medo de novos vírus e uma Terra caindo aos pedaços, me fez pensar no quanto nós, como humanidade, não damos importância para tudo o que influência o nosso dia-a-dia, o que vai das escolhas pessoais, dos sentimentos que guardamos até chegar a forma como cuidamos do nosso planeta.

Queria entender exatamente o que se reconfigura nas relações entre as coisas para agitar nela tais efeitos, mas sabe que ainda tem acesso somente a cintilações insuficientes.

Pois sim, para mim parece um tanto óbvio que os últimos acontecimentos políticos, virais e que envolvem a natureza influenciaram a escrita. E mesmo que você não concorde com o primeiro casal de protagonista, vale refletir sobre o comportamento atual de governantes e governados, antes que seja tarde demais. Assim como as linhas tênues que separam vida e morte, esperança e uma rua sem saída.

Em relação a escrita, as duas primeiras histórias são narradas em primeira pessoa e apenas a última tem um terceiro como narrador. Sendo que na primeira história temos um único e longo capítulo, acompanhando as horas que passam de sexta até domingo. Em Tóquio o capítulo também é único, mas há espaços maiores entre os parágrafos separando os tempos do personagem. Em Bugônia temos os capítulos, como que dando um maior respiro entre os acontecimentos na comunidade.

Sobrevivíamos sim, mas amaldiçoados.

E ao final das três jornadas eu realmente gostei do livro, de suas ligações invisíveis, do olhar pessimista com um leve toque de esperança. Um livro diferente, de escrita fluída e leitura que pode trazer diferentes pensamentos mesmo após a página final.

O deus das avencas
Daniel Galera
Companhia das Letras
2021 - 247 páginas

Esta edição faz partes dos livros recebidos pelo Time de Leitores 2021 da Companhia das Letras, cuja resenha é independente e reflete a verdadeira opinião de quem o leu.

8 comentários:

  1. Eu Fiquei apaixonada só de ler seu artigo, ótimo livro ...!!

    ResponderExcluir
  2. Também achei diferente, mas se você gostou e achou fluída a leitura dou um toque de confiança
    Abraço,
    Alécia, do Blog do Arrojada Mix

    ResponderExcluir
  3. É um livro bastante interessante que nos leva a refletir e questionar o que desejamos para o nosso futuro, é um bom livro, bjs.

    ResponderExcluir
  4. Oi
    Eu adorei a sugestão de leitura 📚 e a capa também é bem legal. Já quero ler

    ResponderExcluir
  5. Eu adorei a capa do livro. Que linda!
    Adorei a sua resenha tb

    ResponderExcluir
  6. Eu também já ouvi muito falar sobre o Daniel Galera mas nunca li nada dele. Pela sua resenha pode ser que comece por esse !

    ResponderExcluir
  7. Olá, tudo bem?
    Não sei se é por que escreve tao bem, ou se é por causa da sugestão. Mas me prendeu completamente quero ler o livro ...

    ResponderExcluir
  8. Olá, tudo bem?

    Fiquei animada ao saber que você gostou da leitura, principalmente por esse toque de esperança que citou. O fato de ser diferente e com escrita fluida me anima. Já quero ler o quanto antes!

    Beijos!

    ResponderExcluir