sexta-feira, 24 de junho de 2022

O Livro dos Anseios


Sinopse: Ana sempre soube que seu destino ultrapassava as fronteiras do limitado espaço destinado às mulheres na Galileia do século I. Nascida em uma família rica de Séforis, ela é rebelde e ambiciosa, dotada de um espírito ousado e uma voz que anseia em ser ouvida. Desafiando regras da época, Ana estuda e escreve narrativas secretas sobre mulheres silenciadas ao longo da história. Quando conhece Jesus, encontra nele um raro estímulo para seu intelecto e também uma faísca capaz de despertar seu coração.

No mês de março/22 eu recebi pela minha assinatura da TAG Inéditos o romance O Livro dos Anseios da escritora norte-americana Sue Monk Kidd. O mimo é um bloquinho personalizado com uma caneta, para explorar a criatividade como a protagonista da história.


A História

A narrativa tem início no ano 16 d.C. na cidade de Séforis, Ana tem apenas 14 anos, mas diferente das jovens da sua idade, sua mente tem outros interesses. Com muito esforço convenceu o pai Matias, chefe dos escribas e conselheiro de Herodes Antipas, a contratar um tutor para lhe ensinar a ler e escrever.

A menina era tão diferente, que Matias dizia que a filha havia recebido por engano dons destinados a algum menino e sua mãe culpava Lilith, o demônio que a teria contaminado com tendências desviadas.

Toda a minha vida, anseios viveram dentro de mim, saindo para lamentar e cantar durante a noite.


A única que a compreende é a tia Yalta, que como ela é instruída, mas pela forte personalidade, é uma espécie de fardo jogado de um irmão para o outro. Mas no silêncio da noite as duas podem conversar no telhado, o que aquece Ana. E Judas, o irmão adotado e primo de nascença com ideias igualmente diferentes e revolucionárias, a ponto de não ser mais reconhecido por Matias e ser obrigado a se afastar da família.

Mas seu mundo vira de cabeça para baixo quando seu pai a promete em casamento para um homem bem mais velho, cujo desprezo pela jovem não esconde do olhar. A morte do pretendente chega a lhe dar um alívio temporário, mas as fofocas a levam a um convite pior, virar concubina de Herodes. Em todos estes momentos chaves ela se depara com um jovem um pouco mais velho que sempre tenta auxilia-la, e no momento final é ele que a socorre, pedindo-a em casamento. Seu nome é Jesus de Nazaré.

Tinha sido um alívio descobrir que as demonstrações de grandeza da minha mãe não eram motivadas por pura vaidade, mas uma tentativa de compensar sua baixa posição.


Mas se com Jesus ela encontra um parceiro intelectual pelo qual se apaixona, ela também encontra uma vida de pobreza ao ter que se mudar, junto com a tia, para a casa da família do marido. Entre Maria e os irmãos de Jesus, que passa a maior parte do tempo viajando para trabalhos distantes, ela se vê envolvida no trabalho braçal, sem tempo para as suas escritas.

Só que nada é marasmo na vida desta garota, que ao tentar auxiliar uma amiga, acaba empreendendo uma fuga para Alexandria, deixando todos para trás enquanto reencontra os seus anseios.


A escrita de Sue Monk Kidd

Para dar corpo a ideia que tomava forma em sua mente, a autora Sue Monk Kidd fez uma rica pesquisa histórica sobre os personagens bíblicos, fatos históricos e o papel da mulher durante o período que abrange de 16 d.C. até 60 d.C., o que resulta em uma escrita cuidadosa e bastante respeitosa em relação a todos, não havendo nenhuma ofensa religiosa e nada que possa deixar alguém melindrado.

Aliás, no que se refere a possibilidade de Jesus ser casado, existem inúmeros livros de não ficção que abordam este tema, já que era algo esperado dos homens naquela sociedade no período. Um destes livros é Eu encontrei Jesus, já resenhado aqui no blog, um livro que traz várias pesquisas históricas sobre a vida do Jesus.

Senhor nosso Deus, ouça minha súplica, a súplica do meu coração. Abençoe a grandeza dentro de mim, não importa o quanto eu a tema...


Na ficção de Sue Monk Kidd a personagem principal e narradora é Ana, que traz toda a invisibilidade da mulher durante o período, cuja voz é silenciada e qualquer conhecimento mínimo é o suficiente para torna-las a frente do seu tempo, já que vivem em um mundo com regras extremamente machistas.

A escrita em primeira pessoa coloca todos os acontecimentos pelo olhar da personagem, já que estamos acompanhando a sua vida, e com isso não há grandes detalhes sobre Jesus ou Judas, que são meros coadjuvantes na história. Com isso há momentos de muita fluidez, outras em que o texto parece perder um pouco do ritmo, até recuperar o fôlego para o desfecho final.


O que eu achei...

Achei o livro interessante, não há nada de polêmico para quem deixou de ler o livro por ter como chamada a história de uma esposa ficcional de Jesus, a ponto que muitas vezes me peguei pensando que ela poderia ser esposa de qualquer um, até mesmo de Judas, que na história aparece como seu irmão-adotivo, já que ele é filho de uma tia dela.

Pois o foco está na invisibilidade das mulheres, do seu silêncio verbal, intelectual e escrito. E isso é muito bem representado em uma cena, onde uma mulher tem a língua cortada por ousar denunciar o estupro sofrido, sendo ela desmoralizada e penitenciada, e não o seu agressor.

Que tipo de homem auxiliava uma mulher a enrolar seus fios?


Também é interessante observar como são raras as mulheres como Ana e Yalta que não se resignam em ocupar os papeis originalmente imaginados por ela. Pois os homens são em sua maioria machistas, alguns com o acréscimo do adjetivo nojentos, na história. Mas este comportamento também encontra eco em figuras femininas como na própria mãe de Ana.

Com isso quem se aventurar pelas páginas desta história, não irá encontrar o relato de como é ser uma esposa ficcional de Jesus, mas de como era ser mulher em meio a rígidas tradições judaicas, ao qual podemos ver semelhanças ainda nos dias atuais. E os anseios que Ana carrega em seu peito ainda está bastante vivo em muitas de nós. E só por isso a leitura já vale a pena.


O Livro dos Anseios
The Book of Longings
Sue Monk Kidd
Tradução: Lígia Azevedo
TAG - Paralela
2020 - 446 páginas

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Divagando com Spoiler

Esta parte aqui é para quem já leu o livro e quer saber um pouco mais da opinião de quem já finalizou a leitura. Então se você não gosta de saber nenhum detalhe a mais, não siga a leitura. Caso contrário, fique à vontade para descobrir quais foram os ecos que a leitura me deixou após eu fechar a última página.

Como cito no texto acima, achei a presença de Jesus muito secundária na história, já que qualquer homem que tivesse uma visão um pouco diferente da tradicional da época poderia ocupar o papel. Pois no geral, mesmo após o matrimônio, Ana é muito sozinha.

Com toda a certeza, a história da menina egípcia forçada a um casamento abominável que eu havia traduzido era uma mensagem me incitando a me manter firme.


O tempo dela com a família do marido é o afastamento da sua escrita e busca por histórias, já que a sua intenção era escrever sobre as mulheres do mundo, comprovar que elas também viveram aquele tempo, possuíam nome, importância, alegrias e tristezas perante as muitas injustiças.

A drástica mudança de vida de uma menina que vivia na riqueza e vai para a pobreza realizar trabalhos braçais, assim como a sua solidão durante a perda do bebê que estava em seu ventre, após ter evitado com o uso de ervas a gravidez durante muito tempo, é bastante dolorido. Aliás, achei muito inteligente ela ter aprendido isso justamente investigando a própria mãe, que em relação a filha possuía inúmeras opiniões machistas, mas ela mesma buscava se defender em seu silêncio do que lhe afetava.

Não, estou tentando dizer que é exigido dos homens que se casem, mas com frequência vejo as coisas de um modo diferente dos outros.


Outros dois pontos que me chamaram a atenção foram que Ana acaba não participando das pregações de Jesus nem mesmo se torna uma divulgadora dele. E ao final, embora apareça para acompanha-lo no caminho da cruz e limpar o seu corpo, ela vai embora de encontro aos seus anseios e não vê a ressurreição e em nenhum momento isto é citado por Ana, como se a informação nunca tivesse chegado até ela.

O que me fortaleceu o sentimento de um personagem de Jesus muito humano, que apenas não tinha o comportamento machistas e como muito dos mais pobres, foi injustiçado por aqueles que só queriam o poder, um homem comum incomum. Só que não é ele a chave para liberar os anseios de Ana, isto ela só vai encontrar ao ter que se esconder entre os terapeutas e se reconhecer dentro daquele mundo.

O sol desliza pelo céu, e a luz dourada-escura se ergue. Olho à distância e canto: "Sou Ana. Fui esposa de Jesus de Nazaré. Sou uma voz."


A conclusão disso tudo? É que se durante a leitura muitas vezes me peguei pensando o motivo de colocar a narradora como esposa de Jesus se a participação dele era mínima, no final conclui que sim, este seria o mais justo pelo fato de que tudo documentado naquele período foi sem a participação das mulheres, então nada mais certo do que um livro que fosse a visão delas e sobre elas.

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