quinta-feira, 27 de junho de 2024

O Garoto do Riquixá



Sinopse: Tentando ganhar a vida como puxador de riquixá, uma espécie de carroça, o inocente Xiangzi vai em busca da utopia da cidade grande. Na Beijing dos anos 1920, Xiangzi enfrenta as mais diversas situações, navegando a guerra, figuras oportunistas, perigos e desilusões. Escrito por Lao She, um dos escritores mais relevantes da China moderna, O garoto do riquixá se tornou um símbolo de resistência e da odisseia que o país enfrentou no século XX.

No mês de fevereiro/2024 recebi da minha assinatura da TAG Curadoria a indicação do advogado Pedro Pacífico O Garoto do Riquixá do autor chinês Lao She. O mimo foi um dos mais estranhos recebidos nestes anos de assinatura: uma espécie de pratinho, que lembra um cinzeiro, e é descrito para guardar miudezas.

Xiangzi, cujo apelido é camelo, trabalha como puxador de riquixá nas ruas de Beijing. Jovem e ligeiro, não é de muito papo, mas tem muito orgulho de ser dono do próprio riquixá, algo raro, já que a maioria dos puxadores aluga um para poder exercer o ofício.

O passado estava se tornando um pesadelo que lhe roubava a fé no futuro. Às vezes, quase sentia inveja dos outros, que ao menos fumavam, bebiam e andavam sempre atrás de um rabo de saia.


Mas a felicidade de ser dono do próprio nariz, somado a ganância, o fazem aceitar uma corrida que lhe custaria muito caro, e a partir dali o leitor iria conhecer o destino de um jovem teimoso, sem educação formal, pouco aberto a conselhos, que irá mostrar as diferentes situações da população mais pobre na China de 1920.


A escrita de Lao She

O autor chinês nascido na cidade de Pequim Lao She opta pela narrativa em terceira pessoa para contar toda a trajetória do seu personagem Xiangzi em uma China que enfrenta não só desafios políticos, como sociais também.

Ao ambientar entre a classe mais simples, oferece ao leitor uma oportunidade de acompanhar de perto os efeitos que uma economia desigual entre os que não conseguem mudar os seus rumos, que vão do excesso de trabalho até a dificuldade de ter acesso a atendimento médico.

A ideia parecia-lhe insuportável, mas era provável que ainda fosse o desfecho da história. Restava-lhe seguir em frente e se preparar para o pior.


Aspecto também possível de ser identificada na própria ´forma narrativa, já que durante boa parte da história o escritor tem a tendência de detalhar as cenas ao extremo, e se inicialmente ele nos faz percorrer as ruas e habitar cada um dos locais citados, com o tempo, conforme o estilo do leitor, isto pode se tornar entediante.

E o desequilíbrio entra em um ponto identificado pelo próprio Lao She, que diz ter finalizado de forma abrupta. E eu concordo, pois na etapa final ele deixa de detalhar e passa correr para finaliza-la.

O inverno era um longo inferno para eles, e nem um fantasma precisava trabalhar tão pesado por tão pouco. A única esperança era caírem mortos na estrada, como cães.


O motivo é explicado por ele também: inicialmente O garoto do riquixá começou a ser publicado em uma revista chamada Yuzhoufeng, e deveria ter exatamente 24 capítulos. Motivo pelo qual os 3 capítulos extras para um melhor término não foram escritos.


O que eu achei de O garoto do riquixá

Começo utilizando um termo bastante popular para definir a obra: desgraça pouca é bobagem na vida do personagem principal da história, já que a impressão que eu tinha é que para cada acerto ele descia duas lombas, não conseguindo retornar ao ponto inicial nunca.

Absolutamente nada dá certo para Xiangzi, embora me obrigue a dizer, algumas situações poderiam ter sido evitadas se ele não fosse tão fechado a conselhos de pessoas próximas e observasse mais o mundo ao seu redor.

Não se atrevia a importunar ninguém, cedia passagem até para um cachorro. E, ao final, ali estava, ultrajado e sem ter a quem recorrer.


Pois apesar de trabalhar enlouquecidamente e ser extremamente econômico, como ocorre com boa parte da população até os dias de hoje, falta abrir a mente para a educação financeira.

E curiosamente ao mesmo tempo que Xiangzi se fecha para os conselhos financeiros, ele é facilmente manipulável por quem ele acredita ser superior ou admirável. Então ele trabalha muito, junta um bom dinheiro, mas não sabe como multiplica-lo para atingir os seus objetivos.

Ele havia sido injustiçado quando trabalhava de forma diligente, e agora tinha consciência de quão valiosa era cada gota de seu suor, por isso poupava cada gota.


Fazendo com que o personagem passe por inúmeras mudanças, mas não evolua, ele segue centrado no próprio umbigo e não aprende nada com o que dá de errado, nunca melhorando de vida.

Em contrapartida, as mulheres em suas participações secundárias mostram noções de gerenciamento de dinheiro e administração de negócio, só que sem valorização nenhuma disso, ficando a sombra do machismo típico do período retratado.

Quando tinham sorte, logo arranjavam uma ou duas moedas de prata, caso contrário não conseguiam nem ao menos o dinheiro para pagar o aluguel do veículo.


Aliás, adorei as personagens Tigresa e Ama Gao, suas passagens estão entre as que mais despertaram a minha atenção, principalmente por conseguirem viver e pensar de forma diferente, apesar do meio em que estão inseridas.

No geral achei o livro bacana pelo conhecimento de outra cultura, onde se consegue observar diferenças e semelhanças. Sobre a questão de ser uma crítica ao capitalismo, para mim a obra parece narrar mais os impactos de escolhas não pensadas, ganância, orgulho, teimosia e machismo. Mas esse é o meu olhar.

Ficando a dica para quem busca leituras de locais e épocas diferentes, gosta de uma pitada de história em meio a ficção e claro, para quem não resiste a um livro.


O garoto do riquixá
Luòtuó Xiángzi
Lao She
Tradução: Márcia Schmaltz
TAG - Estação Liberdade
2024 - 288 páginas

Publicado originalmente em 1936

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Contos de Horror da América Latina



Sinopse: coletânea de clássicos do horror de autores da América Latina organizados por Kailaine Eduarda da Rosa e Laura Viola Hübner que foi enviada aos sócios da TAG no mês de outubro/2023.

Na apresentação do livro com dez contos de autores consagrados e bem conhecidos pelos fãs do gênero, os que chegam espiando pela fechadura são apresentados as diversas qualificações que este realismo latino américa costuma ser apresentado ao grande público: mágico, fantástico e maravilhoso.

Mas não o maravilhoso de belo, com cenas românticas, laços afetuosos, frases motivacionais para colar com o post it. Maravilhoso em seu horror mais humano, pois não estamos falando de vampiros, lobisomens ou seres geneticamente modificados. Mas do que há de mais podre dentro de um ser humano. O que pode tornar a cara mais angelical, o pior monstro encontrado.

Como o sol, o calor e a calma ambiente, também o pai abre seu coração à natureza


Quem abre a coletânea é o escritor uruguaio Horácio Quiroga com O Filho, onde em um dia quente uma criança sai para caçar e não retorna na hora combinada com o seu pai.

A escritora carioca Júlia Lopes de Almeida nos apresenta Os porcos, onde o pai ao saber que a filha estava grávida lhe dá uma surra e promete dar seu neto de alimento aos porcos.

O caso não era novo, nem a espantou, e que ele havia de cumprir a promessa, sabia-o bem.


O também carioca Lima Barreto vem com O cemitério, e uma sequência de pensamentos de um narrador que caminha pelo local.

O argentino Leopoldo Lugones nos conta sobre O homem morto, onde um homem circula por um vilarejo sendo denominado pela população como louco por um único motivo: ele acredita estar morto.

Chegara havia vários meses, sem querer informar sua procedência, e pedindo encarecida e desesperadamente que o considerassem falecido.


Já o maranhense Humberto de Campos narra O juramento feito por um senhor há trinta anos atrás ao se desiludir de amor.

A argentina Juana Manuela Gorriti com o seu Ervas e alfinetes coloca em discussão as crenças em superstições, mais especificamente as maldições, versus a ciência, após a experiência vivenciada por um médico.

Todos desejavam admirar, ou mesmo provar, os efeitos desse poder misterioso, do qual apenas tinham ouvido falar, e que preocupava os ânimos com um sentimento que misturava curiosidade e terror.


E como os autores cariocas dominam o livro de contos, quem segue é João do Rio contando uma história de carnaval em O bebê de tarlatana rosa.

Subindo a América temos o autor mexicano José Juan Tablada e o seu De além-túmulo sobre um encontro há muito esperado na madrugada.

Ao longo das ruas, úmido e frio, arrastava-se um vento de inverno que açoitava o vidro dos lampiões e fazia bruxulear os acendedores de gás.


E como não poderia faltar um dos maiores nomes da literatura brasileira, Machado de Assis vem com A causa secreta e a relação de três personagens cujos boatos percorreram o bairro.

Quem fecha é quem abriu este pequeno mundo de arrepios e calafrios. Sim, Horário Quiroga encerra a coletânea com A galinha degolada, conto que eu já havia lido a quinze anos atrás, e mesmo conhecendo, me provocaram um nó na garganta na releitura.


O que eu achei de Contos de Horror da América Latina

A coletânea possui dez contos curtos que abordam diferente situações dentro do cotidiano dos seus personagens, o que torna a leitura bastante diversificada, não dando ao leitor a sensação de mais do mesmo.

Dos contos que tem o toque do fantástico, passando pelos que parecem história de bêbado e as que me arrepiam só de relembrar por serem muito realizadas e nada impossíveis de acontecer no mundo real.

Em todo o seu aspecto sujo e desvalido, notava-se a absoluta falta de um mínimo cuidado materno.


Em comum todos despertam a curiosidade, o que torna o livro aquele curinga que você pode levar para qualquer lugar e por alguns minutos acessar um mundo paralelo um tanto sombrio.

No geral gostei bastante, como é normal, alguns contos eu amei e outros eu achei meio bobinhos, mas juntos eles conseguiram me dar a dose certa de terror.

Em verdade, o que se passou foi de tal natureza que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação.


Ficando a dica para quem gosta do gênero, tem curiosidade em conhecer e claro, para os ratinhos de biblioteca.


Contos de Horror da América Latina
Vários autores
Organização: Kailaine Eduarda da Rosa e Laura Viola Hübner
Tradução: Laura Jahn Scotte
TAG
2023 - 143 páginas

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Destinos e Fúrias



Sinopse: Toda história tem dois lados. Todo relacionamento tem duas perspectivas. E às vezes a chave para um grande casamento não está em suas verdades, mas em seus segredos.

Lotto e Mathilde se aproximaram nas festas finais antes da formatura da faculdade. Aos 22 anos parecem levar tudo em grande intensidade, e nem mesmo o fato de Lotto ser deserdado pela sua mãe o fazem desistir de casar após poucos encontros com Mathilde, a mulher de sua vida.

O ator que não ganha dinheiro suficiente para pagar as contas tem total apoio da esposa e amigos que fazem apostas de quanto tempo o casamento irá durar. Enquanto ele tenta o sucesso nos palcos, ela sustenta o estilo de vida dos dois sem reclamar ou julgar.

Acordara com a língua seca e com uma vontade de tornar concreto o abstrato, formar seu novo conhecimento: de que o tempo era assim, uma espiral.


Mas driblando o destino Lotto encontra a sua vocação como dramaturgo, sob supervisão de Mathilde encontra o sucesso, e a relação cada vez mais sólida desperta sonhos e invejas em seus jantares frequentes.

Só que como quase todos os relacionamentos, os segredos e relações são muito mais profundos do que a superfície revela, e com Lotto e Mathilde não é diferente.


A escrita de Lauren Groff

A escritora norte-americana Lauren Groff utiliza a narrativa em terceira pessoa para contar a história de Lotto e Mathilde.

Separado em duas partes: Destinos e Fúrias, na primeira nomeada Destinos conhecemos o lado de Lotto, o menino sonhador, que encanta os que estão a sua volta e perdeu o pai muito cedo. O herdeiro que não precisava se preocupar com nada, e acaba se afastando da mãe para viver um grande amor. Levando a vida um tanto despreocupado, ele tem uma visão idealizada da esposa.

Narrar é construir uma paisagem, e tragédia é comédia é drama. Só depende de como a pessoa emoldura o que está vendo.


Fúrias conta a versão de Mathilde, uma mulher que lembra força e paciência, mas como todas de seu gênero, esconde um mundo inteiro abaixo de sua superfície. Mostrando o quando visões de um mesmo fato podem ser diferentes conforme você escolhe se quer enxergar ou não. 

E este talvez seja o diferencial do romance, já que ambos os personagens são muito humanos, e os sentimentos vivenciados os tornam muito próximos a realidade, tornando o leitor quase um voyeur de um relacionamento com seus altos e baixos, alegrias e tristezas, encontros e desencontros, como ocorre em qualquer casamento.


O que eu achei de Destinos e Fúrias

Finalizei a narrativa de Lauren Groff sem ter uma opinião definitiva sobre o que eu achei da leitura, mas com muitas reflexões sobre relacionamentos em geral.

O livro Destinos e Fúrias brinca não só com a imagem que um casal pode passar para as pessoas com quem possui um relacionamento externo, mas também de um com o outro dentro de um casamento, contribuindo para o fato de que viver no mesmo teto e dividir a mesma cama não garantem o conhecimento total que podemos ter de uma pessoa. 

Ela andava trabalhando dezesseis horas por dia, seis dias por semana, mantinha-os alimentados e abrigados.


Eles são extremos. Ele egocêntrico de família rica, ela esconde segredos sombrios do seu passado. Ele quer ter filhos, ela guarda em silêncio o desejo de nunca os ter. Ele tem todo o tempo do mundo para sonhar, ela corre atrás para manter a estruturas de sobrevivência e festas.

As amizades antigas dele parecem ter sentimentos como ciúmes, não poupando a mulher de seus julgamentos. Ela é sozinha, e suporta e sustenta cada veredito.

Os meninos pertencem às mães. Por mais que o umbigo tenha sido cortado décadas atrás, sempre compartilhariam aquele local escuro e aconchegante.


A cereja do bolo é a mãe dele, a típica sogra com lente de aumento em que nenhuma mulher é boa o suficiente para o seu filhinho. E caso não seja ouvida em suas escolhas, ela suspende o pagamento da mesada.

Como citado anteriormente, o livro é dividido em duas partes. Destinos é a visão de Lotto, feita de forma linear da infância até o ponto que a escritora decide encerrar a narrativa dele. Eu achei esta parte arrastada, a personalidade que diziam ser luminosa simplesmente não me cativou.

De alguma maneira, apesar de sua política e sua inteligência, ela virara uma esposa, e as esposas, como todos sabemos, são invisíveis.


Já Mathilde em Fúrias tem um vem e vai no tempo, em que vamos pulando entre o seu passado, futuro e uma mistura de talvez presente talvez um passado recente. A história dela é mais pulsante, tornando a leitura para mim muito mais interessante e fluída, além de trazer alguns pontos de interrogação.

Por este motivo comecei dizendo que não tinha opinião formada, pois se achei a primeira parte maçante, a segunda compensou com sua intensidade, fazendo a leitura valer a pena.

Quem conhece você melhor do que eu? Você é uma santa, mas até os santos têm pontos fracos.


E sim, é um livro sobre relacionamentos, mas não apenas do casal, mas com todos que o cercam. Então posso dizer que ele é sobre paixão, amor, amizade, mas também sobre ilusões, manipulações e chantagem.  

Ficando a dica para quem gosta de livros que podem gerar várias reflexões não só de relacionamento, mas psicológicas também. E claro, para quem adora virar uma página em qualquer turno do seu dia.


Destinos e Fúrias
Fates and Furies
Lauren Groff
Tradução: Adalgisa Campos da Silva
intrínseca
2016 - 368 páginas
Publicado originalmente em 2015