domingo, 30 de novembro de 2025

Do amor e outros demônios


Sinopse: Durante a inspeção das criptas de um convento em Cartagena das Índias, na Colômbia, é encontrado o túmulo de uma jovem com cabelos que ainda crescem mesmo após a morte. A descoberta remete à história de Sierva María, filha de um marquês decadente, criada entre escravizados africanos e profundamente marcada por crenças e rituais sincréticos. Após ser mordida por um cão com raiva, a menina é enviada a um convento, onde é considerada possuída por demônios. Lá, conhece o jovem padre Cayetano Delaura, designado para exorcizá-la. No entanto, o que se desenvolve entre eles é uma paixão intensa, proibida e trágica, que confronta fé, desejo e as instituições da época.

No mês de agosto/2025 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação da escritora Socorro Acioli (Oração para desaparecer) Do amor e outros demônios do consagrado escritor colombiano Gabriel García Márquez. O mimo foi um chaveiro com a frase "Ler abre portas".

Na Colômbia colonial do século XVIII, uma menina de doze anos é vítima, como outras pessoas que circulavam nas ruas no mesmo momento, de um cachorro raivoso.

Chamada de Sierva María, menina é negligenciada pelos pais, o marquês Ygnacio sua esposa viciada Bernarda. Criada pelos escravos, possui um comportamento diferente do esperado pelas pessoas de sua classe social.

Devia mesmo estar muito inquieto para fazer a pergunta à esposa, e ela muito aliviada de sua bile para lhe responder sem um sarcasmo.


O que faz com que o seu pai passe a temer que ela esteja infectada pela raiva, e após realizar consultas com médicos e religiosos, interna a menina no Convento de Santa Clara, onde é mantida isolada enquanto aguarda suas sessões de exorcismo.

Mas o padre que deveria livra-la de todo mal, acaba tendo uma paixão obcecada ela menina, colocando em questão as suas próprias crenças conforme vai conquistando a atenção de Sierva.


A escrita de Gabriel García Márquez

Não é chover no molhado dizer que Gabo, ou o escritor colombiano Gabriel García Márquez, dispensa apresentações. Afinal, é um dos autores mais importantes e conhecidos do século XX, sendo um exponente do realismo mágico na literatura latino-americana.

Ganhador do Nobel de Literatura em 1982, o seu livro Cem anos de solidão virou recentemente série e é, além de uma das suas obras mais famosas, uma narrativa inesquecível que conta gerações de uma família em uma cidade fictícia.

Não eram poucos nem banais os casos de raiva na história da cidade.


No romance Do amor e outros demônios Gabo utiliza o realismo mágico de uma forma mais ambígua, onde o leitor não sabe se o escritor está utilizando elementos sobrenaturais ou se o psicológico dos personagens, somado ao seu ambiente social, explica o que está acontecendo.

A forma narrativa utilizada é a em terceira pessoa, o que permite ao leitor ter acesso a todos os personagens envolvidos, e ter uma visão mais ampla da história que mistura colonialismo, religião, laços familiares, amor, opressões, sonhos e punições.

Acreditava que a menina se sentia bem, e parecia-lhe impossível que uma coisa tão grave tivesse acontecido sem seu conhecimento,


Em Do amor e outros demônios o autor vai buscar para sua narrativa de realismo mágico a combinação de um evento vivido quando o autor era um jovem repórter, quando ao acompanhar a exumação dos restos mortais de uma jovem, a mesma ainda possuía uma cabeleira entre 16 e 22 metros de comprimento em tom de cobre intenso com uma história contada por sua avó sobre a filha de um marquês que precisou ser trancada em um convento pelo seu comportamento.

Inspirado em uma história real que Gabo cobriu durante o seu período como jornalista somada a uma lenda que sua avó lhe contava, a fusão com a ficção permitiu criar uma narrativa com toque de magia, crítica e tragédia.


O que eu achei de Do amor e outros demônios

Este é o terceiro livro que eu leio do Gabriel García Márquez. Comecei logo com Cem anos de solidão, que segue sendo o meu favorito, depois embarquei em Memórias das minhas putas tristes que me deixou desconfortável e agora embarquei em Do amor e outros demônios.

Da mesma forma que ocorre em Memórias, temos um gatilho aqui se analisado com o olhar da nossa época atual, que é o relacionamento de uma pré-adolescente, Sierva María tem 12 anos, com o Padre Cayetano Delaura, que tem 36 anos.

A primeira coisa que fez foi devolver à menina o quarto de dormir de sua avó marquesa, de onde fora tirada para dormir com os escravos.


Como mãe de menina eu precisei ser relembrada do contexto histórico. Estamos falando do período colonial e da inquisição, isto é, século XVIII, onde era comum o casamento com meninas desta idade.

Resolvida esta questão, assim como o realismo mágico é sutil, o amor também é difícil de ser encontrado. Pois não achei que a relação de Sierva e Cayetano fosse de amor, existe um desequilíbrio muito grande de liberdade, já que estamos falando de uma paixão entre exorcista e quem será exorcizado.

O coração da menina batia aos saltos enlouquecidos, e a pele soltou um orvalho lívido e glacial, com um recôndito cheiro de cebola.


Além disso, ao ficar presa, a menina acaba tendo poucas interações, podendo facilmente se apegar a quem lhe dê atenção. Já o padre tem velhas questões não resolvidas que vem à tona com a presença da menina, o que cria uma crise não só para a igreja, mas em tudo o que ele acredita.

Somado a isso, Sierva não é criada com amor nem dentro de casa, já que a menina vive com os escravos. Então a sua forma de agir, só notada após ela ser mordida por um cachorro raivoso, não vem de demônios, e sim do que ela vê, é ensinada e repete.

A cidade estupefata interpretou a tragédia como a deflagração da cólera divina por alguma falta inconfessável.


O comportamento dos pais também não é exemplar. Um casamento de fachada, onde a mãe, Bernada, buscava riqueza com o Marquês Dom Ygnacio, e encontrou a decadência. Ambos negligenciam a filha, pois enquanto a esposa se dedica aos próprios vícios, o marido vive em apatia, conservando um mínimo de respeito entre os seus pares apenas por causa do seu título. Enfim, puro suco de hipocrisia.

Tornando a leitura muito mais de relações tortas e crítica a sociedade de um período histórico, que geram situações e resultados muito mais absurdos do que qualquer realismo mágico, mostrando mais uma vez que a loucura de unir aparências e crenças já foi muito pior do que nos dias de hoje, e não, não deve voltar.

A mãe a odiou desde que lhe deu de mamar pela única vez e se negou a tê-la consigo com medo de matá-la.


E por estes motivos sim, eu gostei da leitura. Não superou Cem anos de solidão na minha preferência, mas é um livro de leitura envolvente e fluída, relativamente curto de ler, que mistura na dose certa momentos leves, podendo ser cômicos conforme o senso de humor do leitor, com questões de reflexão e surpresa.

Ficando a dica para todos que gostam de um bom livro.

Do amor e outros demônios
Del amor y otros demonios
Gabriel García Márquez
Tradução: Moacir Werneck de Castro
TAG - Record
191 páginas - 2025
Primeira publicação originalmente no ano de 1994


sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Modernidade em preto e branco


Sinopse: Geralmente entendido como um movimento de elite, o modernismo brasileiro costuma ser associado a um seleto grupo paulistano. Contudo, desde as primeiras favelas das décadas de 1890 e 1900 até a reinvenção do carnaval nos anos 1930 e 1940, e atravessado pelo boom das novas mídias impressas e da fotografia, o modernismo perpassou diversas classes sociais e áreas geográficas. Neste livro, Rafael Cardoso oferece uma releitura radical do movimento, trazendo à luz elementos absolutamente centrais para seu desenrolar -- e que não se encontram somente em terras paulistas.

Com o objetivo de usar a combinação de imagens e pesquisa para guiar os leitores pela sociedade brasileira dos anos que abrangem o período de 1890 e 1945, Modernidade em perto e branco teve a sua primeira versão publicada em inglês no ano de 2021, sendo reescrito em 2022 para o público brasileiro.

Com um texto crítico a Semana de Arte Moderna de 1922 e sendo contrário a ideia de que São Paulo foi o marco inicial do modernismo no Brasil, o autor questiona a narrativa que comemorou os cem anos do Modernismo resgatando a arte de outros estados.

Nos estudos de literatura brasileira, a noção de pré-modernismo vem sendo desmontada desde o final da década de 1980.


Principalmente do Rio de Janeiro com sua boêmia, revistas e o surgimento do movimento popular que até hoje faz sucesso chamado Carnaval.

Ao buscar a cultura no período de 1890 a 1945, ele também relata as tenções nas relações raciais, a ambiguidade sobre qual seria a identidade do brasileiro.

Mesmo consagrada por estudiosos e preservada por instituições fundadas em sua memória, a importância da Semana reside principalmente em seu status como lenda.


Sendo um livro que questiona não só o modernismo, mas a cultura e os eventos de uma época.


A escrita de Rafael Cardoso

O historiador carioca Rafael Cardoso possui livros de ficção e não ficção publicados, sendo o segundo tipo a maioria.

Sendo Modernidade em preto e branco um deles, com o objetivo de contribuir como se fosse um estudo de caso, o texto possui uma série de referências bibliográficas usadas para embasar o que é apresentado.

A dialética entre regionalismos e nacionalismos é um problema conceitual imenso, muito além do escopo deste livro.


As imagens possuem descrições no texto para situar, principalmente as capas das publicações da época, o contexto do que era desenhado.

Sendo um livro que no geral mistura história, cultura e sociedade durante o período de 1890 e 1945 no Brasil, com alguma pitada do que acontecia fora dele também.


O que eu achei de Modernidade em preto e branco

Eu não consegui finalizar a leitura. Confesso. Eu literaturei o que pude, e acabei abandonando.

Embora eu goste de livros de não ficção, principalmente os que envolvem história, a escrita do Rafael Cardoso infelizmente não me cativou.

Entre 1890 e 1930, o surgimento das favelas nos morros do Rio de Janeiro atiçou discursos que promoviam uma correspondência entre negritude, barbárie e atraso.


Nos primeiros capítulos, apesar do contexto, a forma comparativa de São Paulo e Rio de Janeiro me fez pensar mais na rixa que existe entre os dois estados e qual o peso disso no desmerecimento do grupo que talvez tenha amplificado o termo Modernismo na época.

Eu já tinha conhecimento do elitismo através da leitura do livro da Carolina Casarin - O guarda-roupa modernista -, mas não acho que isso diminua um movimento que inclusive teve os seus cem anos festejados em 2022.

Desde suas origens nas festividades de entrudo, na era colonial, o Carnaval sempre operou como um mecanismo para subverter relações de poder e propriedade.


E embora tenha alguns pontos bem interessantes, a escrita no geral não me cativou. A descrição detalhada das imagens me fizeram recordar muito livros didáticos.

Ele explora bastante também a parte conceitual, o que é ótimo para quem gosta de se aprofundar, mas assumo que acabou me cansando.

Tanto em termos temáticos como formais, o Carnaval propiciou um foco para expressar ideias de modernidade.


Tentei intercalar com livros de ficção, mas acabava divagando durante a leitura. 

E como ninguém merece sofrer, aproveitei que a poucos anos aprendi a abandonar o que não me conquista, e desisti com pouco mais de duzentas páginas lidas e a conclusão que não, não era o momento ou não era pra mim.

A disseminação de revistas ilustradas em escala industrial conta-se entre os indícios mais reveladores da modernização cultural no Brasil do início do século XX.


Mas como cada leitor tem o seu gosto, pode ser que ele te conquiste, caso deseje uma visão diferente da mais divulgada sobre o modernismo.

Além de apresentar aspectos da cultura carioca que também estariam alinhados com o conceito que surgiu na Europa.

Ficando a dica para quem se interessa pelo assunto e deseja ler diferentes aspectos de uma época.


Modernidade em preto e branco
Rafael Cardoso
Companhia das Letras
2022 - 366 páginas

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O desabamento


Sinopse: Fruto do primeiro casamento de sua mãe, o irmão de Louis é o mais velho dos cinco filhos. Logo nas primeiras linhas deste romance, que é considerado um dos mais sombrios do autor, o narrador afirma não ter sentido nada ao saber da morte do irmão. “Aprender a conhecer meu irmão era aprender a odiá-lo”, diz, a determinada altura. É tomando essa distância ― física e afetiva ― que o narrador esmiúça a existência de seu irmão, entrevistando pessoas próximas de seu convívio, como uma professora e algumas ex-companheiras, e relembrando momentos decisivos da relação fraternal. Para reconstruir esse personagem, o narrador se vale das ciências sociais, da literatura, da psicologia e da memória, resultando em um romance único e inesquecível, de força e sensibilidade inigualáveis.



No mês de Julho/2025 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação da própria TAG, que estava de aniversário: o livro do escritor francês Édouard Louis chamado O desabamento. O mimo foi um livro extra de poesias do chileno Pablo Neruda.

O romance de auto ficção O desabamento tem o próprio autor Édouard Louis como narrador da morte precoce do seu irmão mais velhos aos 38 anos, causada pelo seu alcoolismo, vícios e o conjunto de violência e fugas acumuladas em seu curto período de vida.

Não senti nada quando soube que meu irmão tinha morrido; nem tristeza, nem desespero, nem alegria, nem prazer.


Ao tentar reconstruir a história de vida do irmão, o autor precisa lidar com os seus próprios fragmentos de memória que o farão retornar a infância e adolescência em uma vila operária no norte da França, em um ambiente que combina pobreza e violência familiar e social.

Outro recurso utilizado é através de depoimentos e conversas com mulheres próximas do irmão, que entram como um fator a mais para analisar não só o que levou o seu irmão mais velho para um caminho de autodestruição, como das suas próprias feridas nesta relação que combina amor e desprezo.


A escrita de Édouard Louis

Considerado uma das vozes mais importantes da literatura europeia contemporânea, o escritor e sociólogo francês Édouard Louis ficou conhecido por usar a sua história familiar para escrever romances de auto ficção.

Em seus romances temas como classe social, homofobia, pobreza, violência, busca por ascensão social e naturalmente, laços familiares são componentes frequentes em suas narrativas.

Ele disse que ia aprender uma nova profissão, com técnicas muito especificas, um saber que não é qualquer um que aprende, mas que ele, ele aprenderia.


O desabamento lançado recentemente faz parte de uma sequência de livros iniciados pelo seu primeiro romance "O Fim de Eddy", que conta a sua história, passando por narrativas que abordam também a figura da sua mãe e do seu pai.

Por ser auto ficção, a narrativa utilizada em O desabamento é em primeira pessoa, os capítulos são curtos e alguns questionamentos internos aparecem com frequência em alguns capítulos, lembrando um fluxo de consciência.

Meu irmão morreu. Eu resolvia essa frase na cabeça.


Também é utilizado a ênfase em determinadas frases, que além de serem a única informação, podem se repetir por mais de uma página, como uma forma de compartilhar o que martela na cabeça do escritor também na do leitor.


O que eu achei de O desabamento

Não são raras as vezes que junto com a morte são enterradas (ou queimadas) todas as dores e mágoas que a pessoa provocou em vida. 

Só que existem exceções, e em O desabamento o autor, na minha opinião, parece revisitar estas memórias para de certa forma entender a dor que permaneceu, apesar do irmão não poder mais feri-lo.

Aprender a conhecer meu irmão era aprender a odiá-lo: uma noite, nossos corpos se aproximaram por circunstâncias alheias á nossa vontade, e então entendi quem ele era, e o odiei.


E ao se recordar das mágoas, inevitavelmente também vem as boas lembranças, tornando tudo ainda mais confuso para quem não apenas busca o ombro dos amigos para saber se está correto, como divide toda essa carga psicológica nas páginas de um livro, dividindo com quem se deparar com ela.

No geral, eu achei a leitura boa, não havia lido nada do Édouard Louis antes, e em alguns momentos me solidarizei com a sua dor, pois outra coisa que desaparece com os mortos pelos quais os nossos sentimentos são controversos, são as respostas do por que não ser aceito? por que ser alvo de determinadas agressões? Entre tantos outros porquês que talvez só irão desaparecer com o tempo.

Será que escrevo porque essa dor faria com que eu me sentisse normal, um irmão como todos os outros irmãos, que chora a morte do outro?


Não achei ótimo pelo fato de em alguns momentos acha-lo repetitivo, o que também é natural, pois ao colocar todo o foco no que já foi, a mente tende a andar em círculos, o que é facilmente identificado no decorrer das páginas.

Por outro lado, esta repetição me fez pensar se existe culpa por não conseguir se livrar de toda a dor provocada. De não ser como muitas pessoas e só divulgar o que houve de bom, santificando quem muitas vezes nos infernizou. Tornando o livro também um desabafo de quem ficou e não sabe mais o que fazer com a carga emocional nuca resolvida.

Às vezes tenho a impressão de que a história do meu irmão é a história de uma Ferida lançada no mundo e sempre reaberta.


Já me disseram que o livro se torna ainda mais claro se for lido o primeiro romance do autor, O Fim de Eddy. E confesso que isso me despertou a curiosidade, para ver se terei os mesmos sentimentos em relação ao Desabamento, ou se o meu entendimento se ampliaria.

Ficando a dica para quem gosta de auto ficção, narrativas que envolvem conflitos familiares, ou que procura um livro rápido para ler.


O desabamento
L'effondrement
Édouard Louis
Tradução: Marília Scalzo
TAG - Todavia
2025 - 165 páginas
Publicado originalmente em, 2024

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Corregidora



Sinopse: Ambientado entre o fim dos anos 1940 e 1970, Corregidora conta a história da personagem Ursa Corregidora, mulher negra, cantora de blues, no Kentucky. Ao mesmo tempo que busca conquistar espaços para desenvolver sua carreira e viver de sua arte, Ursa atravessa relacionamentos tumultuados e ocasionalmente violentos. Em uma das agressões sofridas, passa por uma histerectomia e precisa lidar com a frustração e a angústia por não ser capaz de atender ao apelo de suas antepassadas para “dar à luz novas gerações”, o que seria fundamental para continuar a tradição oral que evitaria o apagamento da realidade da vida sob a escravatura.



No mês de junho/25 recebi da minha assinatura da TAG Curadoria a indicação do escritor Jeferson Tenório: Corregidora da escritora norte-americana Gayl Jones. O mimo foi doce e saboroso, pois vieram mini alfajores da Odara que eu adoro.

Após uma violenta briga com o marido, Ursa Corregidora não apenas sofre um aborto como passa por uma histerectomia devido à gravidade dos danos sofridos. Fazendo com que ela não possa gerar descendentes e assim repassar a história dos seus antepassados, conforme foi tão pedido por sua avó.

Passado que atende por um homem chamado Corregidora e tem como profissão ser traficantes de escravos no Brasil. Um português que assombrou a vida de sua bisavó e avó, cuja memória dos atos interferem até hoje em Ursa e em sua mãe.

Eu dizia que não cantava apenas pra me sustentar. Dizia que cantava porque era algo que devia fazer, mas ele nunca entenderia isso.


Afetando suas amizades, relações familiares e também as amorosas. Onde os traumas e a dor parecem aprisionar a personagem principal em um clico vicioso eterno.

E é esta mistura de escravidão, violência contra a mulher e transmissão da história familiar que irão conduzir o leitor ao ritmo do blues no decorrer das páginas.


A escrita de Gayl Jones

A autora norte-americana Gayl Jones é conhecida como uma das figuras centrais na literatura afro-americana é conhecida pelo seu trabalho como escritora, poetisa e professora universitária.

Corregidora é justamente o seu primeiro romance, publicado em 1975 e editado por Toni Morrison (O olho mais azul), e já apresenta o estilo literário pelo qual ela seria conhecida, com a exploração de temas como violência, loucura e opressão sofrido pelas mulheres negras.

O velho Corregidora, um português que reproduzia escravizados e era cafetão.


Durante suas pós-graduações surgiu o interesse pelo Brasil, o que se reflete no livro Corregidora e em um livro recente chamado Quilombo dos Palmares.

No geral sua escrita é bastante direta, em Corregidora a autora utiliza muito o recurso dos diálogos, o que pode exigir mais atenção do leitor para não se perder sobre quem está dizendo o que.

Agora não é hora de se agarrar a nada. Qualquer mulher se agarra a qualquer coisa. Por medo. 


Pela metade da história, há mais parágrafos descritivos, amenizando assim o cansaço inicial de acompanhar todas as discussões, e também reduzindo assim possíveis desentendimentos sobre o que está ocorrendo na narrativa.


O que eu achei de Corregidora

Corregidora foi um livro que me causou vários estranhamentos. Começando pela citação da escravidão no Brasil, que em um primeiro momento eu achei que fosse uma mudança na tradução e depois descobri que havia sido realmente uma escolha da autora.

Só que essa brasilidade acabou me gerando o tempo todo a dúvida: como é que a avó dela foi parar nos Estados Unidos em um pós escravidão, se eram tão pobres? Confesso que este ponto mais me atrapalhou do que acrescentou, me parecendo que o uso da escravidão americana seria mais adequada, ou esta parte da história também poderia ser contada.

Era como se eu quisesse que vissem o que ele tinha feito, que ouvissem. Todos aqueles sentimentos tristes.


O segundo estranhamento foi em relação as relações do círculo social da personagem principal, o que de certa forma demonstra que sofrer e ser empático não são características que necessariamente andam juntas. Principalmente o seu comportamento em relação a amiga que a ajudou, e depois ela se afastou por um preconceito bobo.

Também fiquei com o sentimento de que a escravidão mais trabalhada na narrativa não é primeira que nos vem à mente e citada na contracapa, mas sim do ciclo vicioso de relacionamentos abusivos e violência contra a mulher. Sendo neste ponto uma narrativa ainda muito atual, já que ainda temos muitas Ursas ao nosso redor, independente de cor e classe social.

Tenho tudo o que elas tiveram, menos os descendentes. Não posso criar descendentes.


Fazendo com que várias vezes eu me perguntasse afinal qual o motivo da personagem querer ter um filho só para repassar todos os traumas que carrega? É uma espécie de terapia não aprovada? Só passando para a próxima geração a pessoa irá se sentir mais leve?

Por outro lado, achei interessante como ela aborda as figuras femininas, seja através da competição por um mesmo homem, a forma como lidar com a própria sexualidade, as relações familiares que não garantem liberdade de comunicação.

Como se agora ele não fosse exigir as mesmas coisas. Seriam exigências diferentes. Mas ainda teria exigências.

Assim como os caminhos escolhidos pela Ursa, que a tornam próximas de tantas mulheres que não conseguem sair do lugar, que apenas acumulam situações e sonhos, sem nunca os realizar ainda nos dias de hoje.

No geral achei a narrativa de Corregidora interessante, embora longe de ser a melhor leitura feita no ano, ela propõe reflexões que podem gerar debates pós leitura, principalmente no que envolve o universo feminino, tornando uma leitura que não some da mente no dia seguinte após fechar a última página.


Corregidora
Gayl Jones
Tradução: Nina Rizzi
TAG - Instante
2025 - 175 páginas
Publicado pela primeira vez em 1975

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Se adaptar


Sinopse: “UM DIA, NUMA FAMÍLIA, NASCEU UM MENINO INADAPTADO”. Assim começa a história do menino de olhos negros que flutuam para o nada, eternamente deitado, e dos seus três irmãos. Em meio à natureza poderosa das montanhas, são as pedras do muro da velha casa da família que testemunham suas trajetórias. O amor absoluto e protetor do mais velho, a rebeldia que a do meio assume para rejeitar a dor, a chegada do mais novo que cresce à sombra das memórias. Um livro magnífico e luminoso, sobre o laço infinito entre irmãos e a inesgotável capacidade humana de se adaptar.



No mês de maio/2025 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação da editora Ana Lima Cecílio, que foi o livro Se adaptar da escritora francesa Clara Dupont-Monod. O mimo foi uma obra inédita produzida em família de Rafael Coutinho e Laerte.

No sul da França, em uma região que a natureza e as montanhas se fazem presente, uma família tem sua vida totalmente alterada após o nascimento do terceiro filho.

Um dia, numa família, nasceu um menino inadaptado. Ainda que de uma crueldade degradante, é esse termo que dá a real dimensão de um corpo mole, de um olhar móvel e vazio.


O menino que nasce com uma condição não nomeada que o impede de se movimentar e interagir com o humano, gerando sentimentos diversos em seus pais e seus dois irmãos.

E é sobre esta necessidade de se adaptar a quem nasceu inadaptado que irá gerar relações complexas e diferentes do irmão mais velho e da irmã do meio.

Há milhares de anos, temos sido as testemunhas. As crianças são sempre as esquecidas das histórias.


Tudo em meio em uma narrativa sensível, que ao mesmo tempo que nos coloca no lugar do outro, nos enche de perguntas.


A escrita de Clara Dupont-Monod

A escritora e jornalista francesa Clara Dupont-Monod é conhecida por suas críticas literárias e a escrita sensível de seus livros, que tiveram como resultado duas premiações, inclusive o Prix Femina em 2021 por Se adaptar.

Em Se adaptar ela coloca as pedras para contarem a história do menino inadaptado e seus irmãos. Dividido em três partes, o foco está totalmente nos irmãos, sendo necessário estar atento aos detalhes para perceber o impacto sofrido também pelos pais.

Muito lhe disseram que o tempo cura. Na verdade, ele o mede durante essas noites, e o tempo não cura nada, muito pelo contrário.


As mudanças naturais no local onde a família são outro ponto de atenção, servindo tanto como um anúncio do que está por vir como uma metáfora de todas as transformações que ocorrem com os personagens que começam crianças e chegam à idade adulta na narrativa.

A escrita é ao mesmo tempo delicada, poética e real. Existe uma humanidade latente em cada um dos seus personagens, provocando o leitor sobre de que forma ele se adaptaria se vivesse situação semelhante.


O que eu achei de Se adaptar

Ao contrário do que é dito, não me pareceu que eram as pedras que estavam contando a história. Só me lembrava que eram elas quando as mesmas eram nominalmente citadas. Como se faltasse algo para gerar essa conexão, dando a impressão de ser uma narrativa simples em terceira pessoa.

No geral achei a narrativa uma mistura de tristeza, resiliência e revolta com todo o peso físico, financeiro e emocional de criar uma criança que não irá interagir com o mundo conforme o esperado.

Os primeiros enfrentavam, o segundo foi se fundindo. Para ela, não sobrava nada, nenhuma energia para sustentá-la.


O resultado de tudo isso é silêncio, solidão, negação e como diz o título, adaptação. Motivo pelo qual apesar do livro ser curto, aos poucos ele foi me gerando um cansaço, principalmente quando cheguei na última parte.

Cansaço semelhante ao encontrado muitas vezes nesta visão do que se passa dentro de uma família que tem as ilusões quebradas por algo que torna o seu filho inadaptado para a vida em sociedade.

Um senso de dever as guia. Elas vão estar sempre ali, vigias na noite escura, vão se virar para não sentir nem frio nem medo.


E são os filhos que acabam representando as diferentes reações. Começando pelo irmão mais velho que abdica de tudo para dar suporte e sente a dor de forma mais latente a ponto de se fechar para o mundo. E os pais simplesmente parecem não ter tempo de ver isso.

A irmã do meio é quem se envergonha e acaba por se revoltar por não ter mais a mesma rotina de antes. Mas seus atos já conseguem atrair mais os olhares tão ocupados com as dificuldades do dia-a-dia.

Sentia que não devia ser esse o seu papel, mas sentia também que o destino gosta de bagunçar os papéis e que era preciso se adaptar.


E por fim, tem o irmão que nasce depois e por influência da própria imaginação acaba indo parar a sombra do menino inadaptado. O que me gerou mais dúvidas e curiosidade do motivo pelos pais permitirem ou não perceberem isso. Para logo em seguida me lembrar que quando se trata de seres humanos quem está de fora enxerga melhor do que quem está dentro.

No geral é um livro que mexeu com a minha empatia ao mesmo tempo que gerava questionamentos e reflexões. Motivo pelo qual deixo a dica de leitura aqui. 


Se adaptar
S'adapter
Clara Dupont-Monod
Tradução: Diego Grando
TAG - Dublinense
2025 - 160 páginas
Publicado pela primeira vez em 2021


sexta-feira, 18 de julho de 2025

Outra autobiografia




Sinopse: Rita Lee pode ter tido de tudo, menos uma “vidinha besta”. E os últimos anos foram, sim, desafiadores. Ao mesmo tempo que o mundo passava por uma pandemia, ela foi diagnosticada com câncer no pulmão. Em um texto franco, ora cru e chocante, ora cheio de ironias, ora sutil e amoroso, Rita Lee não poupa detalhes de seu tratamento. Fala também da rotina, dos avisos do Universo, de seres de luz e dos caminhos que a vida tomou.



 Em Autobiografia Rita Lee compartilhou com fãs e leitores em geral a sua infância, a relação com a música, com os Mutantes, seus perrengues, suas histórias em geral, passando de forma rápida e leve a sua vida, mesmo quando as cenas descritas eram muito mais complexas que o tom utilizado para as contar.

 Já em Outra autobiografia irá se encontrar uma espécie de diário sem data, onde ela compartilha seus últimos anos de vida quando descobre em plena pandemia que está com câncer.

 Mas é aquela velha história: enquanto a gente faz planos e acha que sabe de alguma coisa, Deus dá uma risadinha sarcástica.


E com isso ela relata os detalhes do seu tratamento, seus ataques de pânico no hospital, as mudanças que precisa fazer por estar mais fraca, as relações com seus bichos de estimação, enfermeiras e claro, família.

Ela demostra o seu lado mais místico e nos momentos de maior sofrimento não se nega descrever vulnerável, mostrando que a nossa rainha do rock sempre foi muito real em expor o que estava rolando pela sua cabeça, seja por música ou páginas.

 

A escrita de Rita Lee

A paulista Rita Lee Jones de Carvalho, mesmo após a morte, segue sendo uma das mais espetaculares cantora e compositora do Brasil. Inteligente, com um humor que brinca com a ironia, ela se tornou uma escritora que atende grandes e pequenos através de livros infantis, de crônicas, contos e os autobiográficos.

Como é o caso de Outra biografia, onde a eterna ovelha negra escreve em tom de luta e ao mesmo tempo de despedida de todos que a amaram e a acompanharam durante toda a sua carreira.

A "massa" como eles se referiam ao troço, precisava ser melhor investigada para fecharem o diagnóstico e terem mais detalhes.


E como não poderia faltar, há também crítica política, algo que ela sempre fez nos shows, está ali presente em um dos momentos mais tristes que o mundo viveu. A ponto de nomear um de seus tumores de Jair.

O bom humor também anda por ali, como colocar o nome de Leonor na máscara de proteção ao tratamento de câncer, e a comparação e convívio com as duas enfermeiras que a cuidavam.

Minha família e meus amigos me mimavam, me tratando como rainha. 


Há também fotos do período, de sua visita a exposição organizada pelo filho e claro, a participação do Phantom. Tudo distribuído em capítulos curtos nas menos de duzentas páginas que são totalmente insuficientes para quem ficou órfão de Ritinha.

 

O que eu achei de Outra autobiografia

Eu adoro a Rita Lee, suas músicas, suas ironias e a forma engraçada e inteligente de expressar a sua opinião desde banalidades até sobre assuntos mais complexos.

Motivos que me levaram a ler Autobiografia para entrar conhecer um pouco mais da sua história, e ao qual senti falta de mais detalhes, o que me levaram a ler Outra autobiografia.

Quando você fala que está com câncer, a pessoa geralmente fica séria e não sabe o que dizer; eu também agia assim.


E eu achei o livro triste, a ponto de finalizar a leitura chorando, pois em minha mente vinha a imagem da mulher ativa que tive a sorte de ver algumas vezes no palco, e ficava o sentimento de ela não merecer ficar tão limitada.

 Sim, quando há sentimento envolvido, não temos muita racionalidade ao acompanhar os fatos. Mas se por um lado achei injusto ela passar por todo o sofrimento descrito, por outro fiquei feliz por ela estar rodeada de pessoas amorosas.
 

Já meu quê Beauvoir tem a leveza de ser sempre uma persona grata e um cabelo que não lhe faz falta: ela adora seus turbantes.


Durante a leitura também me lembrei do livro do David Coimbra Hoje eu venci o câncer, outra pessoa que eu admirava e também foi levado por esta doença maldita.

Comparando os dois livros autobiográficos que li da Rita, se o primeiro é voltado para o seu passado, no segundo o foco está na doença que ela enfrenta e no fato de tudo ter ocorrido durante a pandemia de Covid, não faltando assim "elogios" a criatura que dizia não ser coveiro. 

Mas como bom coringa que sou, escolho a cara do tarô que mais me representa: o Louco.

Me parecendo uma espécie de carta de despedida para todos o que acompanharam a rainha do rock. Ficando as páginas e as músicas como forma de matar a saudade desta mulher incrível.

 

Outra autobiografia
Rita Lee
Globo livros
2023 - 192 páginas

 

 

 

 

sexta-feira, 27 de junho de 2025

O Amante



Sinopse: Prêmio Goncourt em 1984, com mais de 2 milhões e meio de exemplares vendidos apenas na França, este romance autobiográfico acompanha a tumultuada história de amor entre uma jovem francesa e um rico comerciante chinês na Indochina pré-guerra. Com uma prosa intimista e certeira, Duras evoca a vida nas margens de Saigon nos últimos dias do império colonial da França e relembra não só sua experiência, mas também os relacionamentos que separaram sua família e que, prematuramente, gravaram em seu rosto as marcas implacáveis da maturidade.



Na Indochina francesa, uma adolescente de 15 anos órfã de pai mora com a mãe e dois irmãos. Filha de colonos franceses pobre, ela conhece em uma travessia de balsa sobre o rio Mekong um jovem com o qual terá um relacionamento intenso que envolve benefícios financeiros.

Filho de um rico empresário chinês, o homem de 27 anos, mesmo sendo mais velho, acaba sofrendo psicologicamente dos mesmos problemas que a menina, no que envolve tabus raciais e morais dos anos de 1920.

Muito cedo na minha vida ficou tarde demais. Quando eu tinha dezoito anos já era tarde demais.


O que a empurra precocemente para esta relação é a sua família desestruturada, com um irmão extremamente violento e uma mãe que o defende, ao mesmo tempo que possui uma busca constante por dinheiro.

Um livro sobre memórias e traumas transferidos para as páginas em um romance curto, cuja densidade se alterna, e virou um filme não aprovado pela autora.


A escrita de Marguerite Duras

Considerada uma das escritoras mais importantes da literatura francesa do século XX, a autora Marguerite Duras nasceu na Indochina e no final de sua adolescência retornou a França para estudar.

Sua escrita tem por característica ser fragmentada, conseguindo ser emocionalmente contida e ao mesmo tempo profundamente sensível. O que fez com que fosse uma das figuras-chaves do movimento literário "Nouveau Roman" (Novo Romance francês) que ocorreu nas décadas de 1950 e 1960.

A história da minha vida não existe. Ela não existe. Jamais tem um centro. Nem caminho, nem trilha.


E este rompimento com as formas tradicionais de narrativa é encontrado em O Amante, sua obra mais conhecida que venceu o prestigiado prêmio de literatura francesa Goncourt.

O Amante é uma mistura de ficção com autobiografia, tendo como base a sua infância na Indochina e o caso amoroso que teve na adolescência com um homem mais velho.

Tudo começou assim assim em minha vida, com esse rosto visionário, extenuado, as olheiras antecipando-se ao tempo, à "experiência".


A narrativa é semelhante a um fluxo de consciência, com presente, passado e futuro dividindo o mesmo espaço sem ordem cronológica nem capítulos definidos. Como alguém que se senta no divã e conforme vai puxando o novelo de lã que é a sua vida, começa a trazer memórias, reflexões e pensamentos.

Dando um tom introspectivo na narrativa em primeira pessoa, onde nem tudo é explicito e não raro há situações que ficam mais na sugestão no que no detalhamento para o leitor.


O que eu achei de O Amante

Esta foi a segunda vez que leio o livro de Marguerite Duras. Havia recebido o livro em capa dura em uma coletânea de clássicos que o jornal do meu estado vendeu tempos atrás.

E acabei relendo por causa do encontro com outros assinantes da TAG Curadoria, já que a obra foi o livro de abril, ao qual pulei para não ficar com dois livros iguais.

Sei que não são as roupas que fazem a mulher mais ou menos bela nem os cuidados de beleza, nem o preço dos cremes, nem a raridade, o preço dos adornos.


Quando abri o livro já não tinha lembranças de sua narrativa, apenas a famosa base de que era o caso de amor de uma adolescente com um homem mais velho.

Ao reler, me deparei com uma família desestruturada, que apesar da pobreza tem empregados, da mãe que cobra postura da filha, mas permite que ela chegue em qualquer horário na escola após os encontros com o amante. De um irmão mais velho que inspira medo nos que convivem com ele e deixa para a mãe pagar as dívidas dos seus vícios.

Resta aquela menina que começa a crescer e que talvez um dia venha a saber como trazer dinheiro para casa.


Também é uma narrativa que expõe a colonização, onde a cor da pele ou o dinheiro não impede que ocorra racismo ou preconceito.

E por fim é um livro bem psicológico, pois não foram raras as vezes que me vinha o jargão "fale-me mais sobre isso" durante a leitura. Ficando a dúvida se era ficção, algo que deveria ficar subentendido ou traumas que não conseguem ser revelados.

Sente subitamente uma angústia até então apenas pressentida, uma fadiga, a luz apagando-se levemente no rio.


Mas apesar de todas as suposições, de ser um livro bem curto, eu segui não gostando.

A mistura de pedofilia e prostituição foi algo que me incomodou ainda mais nesta segunda leitura. Pois o relacionamento não é iniciado por amor, paixão ou uma atração física na minha opinião, mas pelo que o dinheiro dele poderia proporcionar.

Quer a apanhem, quer a levem, quer a maltratem, quer a corrompam, eles não devem saber mais nada.


Também me peguei achando que se o nome do livro fosse O irmão mais velho, combinaria mais. Pois o amante é uma figura secundária em meio a todos os conflitos que as relações familiares causaram em todas as etapas da vida da narradora, sendo uma ferida ainda não curada mesmo após tantos anos.

Sendo o amante apenas mais um a acelerar o seu sentimento de envelhecimento precoce, de mudança na imagem que via no espelho ainda tão jovem. Me parecendo o resultado de quem se sentia usada por todos ao redor sem nunca ter sido realmente amada.

Ele lamenta o que ocorreu comigo, digo-lhe que não deve, que não devo ser motivo de lamentação, ninguém deve, exceto minha mãe.


E apesar de tanta complexidade, em muitos momentos ela me pareceu superficial. Como se a narradora tivesse uma borda a ser respeitada, e justamente ao respeitar estes limites, ela não me ganhou como leitora.

Pois o vai e vem de tempos e lembranças me parecia mais um disfarce para não explorar o que era realmente importante para a menina frágil e a mulher já idosa que manteve tudo muito vivo em sua memória.

Só que esta é a minha leitura, a sua pode ser completamente diferente, e assim deixo a indicação deste clássico para que você possa tirar suas próprias conclusões.


O Amante
L'amant
Marguerite Duras
Tradução: Aulyde Soares Rodrigues
2003 - 95 páginas
Publicado originalmente em 1984