terça-feira, 9 de abril de 2024

Estorvo



Sinopse: A campainha insiste, o olho mágico altera o rosto atrás da porta e o narrador, preso entre o sonho e a vigília, inicia uma trajetória obsessiva na qual se depara com situações e personagens estranhamente familiares. Narrativa brilhante. Estreia do autor na literatura.

O livro de contos Anos de Chumbo não ganhou o meu coração, mas em Estorvo o cantor, compositor e escritor Chico Buarque ganhou toda a minha atenção.

Escrito no início dos anos de 1990 o livro possui uma história atemporal e de muita ação, que pode enlouquecer o leitor pela falta de detalhes explicativos ou cativa-lo a decifrar o que está acontecendo enquanto devora as páginas.

Um toque na campainha, o reconhecimento de um rosto, e o narrador leva o leitor para um vai e vem de lugares enquanto interage com a mãe, irmã e ex-mulher.

Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele sujeito através do olho mágico.


Em um sitio que herdou do pai, um militar, um mundo paralelo onde ele parece estar invadindo um lugar que é dele e hoje é ocupado por figuras estranhas, onde nem ele escapa da violência que assombra o lugar.

Tudo em uma fuga que não se sabe se de alguém, do tempo ou dele mesmo.


A escrita de Chico Buarque

O autor Chico Buarque opta em Estorvo por uma narrativa em primeira pessoa que mais do que diálogos e pensamentos é uma sequência de ações que levam o personagem principal sempre aos mesmos lugares, andando em círculos em um eterno looping.

Não há muitas explicações, o leitor precisa ficar atento aos detalhes e aos diálogos com terceiros para tentar montar a sua versão do livro, e a própria vida e personalidade de quem nos guia, já que se o narrador em primeira pessoa por si só é suspeito, neste caso aqui ele prova e comprova que não é confiável.

E ter um filho, no meu cérebro, era notícia que entrava, mexia lá dentro, e não conseguia formar uma ideia.


Sem nome, a narrativa deixa claro que o Estorvo do título é o próprio personagem principal, que foi construído de forma a ser um peso morto na vida dos poucos que são obrigados a conviver com ele.

Seu olhar em cima das outras pessoas pode ser crítico ou pejorativo, levando o leitor mais inocente a acreditar que se trata de uma crítica social a burguesia. Mas calma, pois pelo seu estilo de vida não dá para saber se o tom é real ou apenas uma visão distorcida de quem só passa pela vida em um movimento cíclico e repetitivo, procurando o próprio fim e prejudicando quem lhe estende a mão.


O que eu achei de Estorvo

Na minha visão temos um filho de militar envolvido com o tráfico que vive às custas da irmã, evita o convívio com a mãe e perturba a ex-esposa de tempos em tempos. Um nem-nem na versão mais velha, um sanguessuga de mulheres.

Em sua vida circular, frequenta um sítio, sua herança de família, que foi invadido por bandidos. Lá ele apanha, leva objetos roubados, e dá informações da própria família. Foi estas visitas aqui que me fizeram deduzir que ele era um viciado em drogas, e potencialmente um traficante, e seu olhar sobre tudo tinha potencialidade de ilusório.

Não adianta ficar aqui parado. Eu não posso me esconder eternamente de um homem que não sei quem é.


Eu gostei do livro, toda a movimentação dá um ritmo cinematográfico nele, e a forma narrativa me permitiu usar a imaginação para criar uma própria versão de fatos, o que torna a leitura interessantíssima para quem tem grupo de leitura.

E por este motivo pode desagradar quem gosta de respostas, pois ao deixar margem para interpretação de quem lê, pode gerar uma finalização com mais ponto de interrogação do que ponto final.

A dor latejante me arranca da cama de manhãzinha. A porrada da véspera, eu havia esquecido e, sem querer, perdoado.


Um livro que pode agradar principalmente quem gosta de quebra-cabeças e/ou ritmo policial, e também uma ótima opção de leitura para férias ou para intercalar com livros mais densos, pois sua leitura é rápida e dinâmica.


Estorvo
Chico Buarque
Companhia das Letras
2021 - 203 páginas
Publicado originalmente em 1991


terça-feira, 26 de março de 2024

Meu pai e suas apostas



Sinopse: Meu pai e suas apostas é uma história poderosa e comovente sobre a busca pela dignidade e a luta contra adversidades intransponíveis. Louise Meriwether tece uma narrativa cativante e, com elementos autobiográficos, que oferece um registro perspicaz da experiência de viver no Harlem dos anos 1930, sob o prisma de Francie, uma corajosa garotinha de doze anos. Este livro é uma jornada tocante pelas lutas e triunfos de uma família determinada a vencer as probabilidades e encontrar seu lugar no mundo.

Minha assinatura da TAG Curadoria começou o ano enviando em janeiro/2024 a indicação da jornalista Fernanda Bastos Meu pai e suas apostas da escritora norte-americana Louise Meriwether. O mimo foi um planner, como já virou tradição nos meses de janeiro para os assinantes.

Francie tem doze anos, vive com os pais e dois irmãos mais velhos em condições bastante precária no Harlem dos anos de 1930, tempos de recessão americana, e consequência direta da grande depressão que ocorreu nos Estados Unidos em 1929.

Sonhei que um bagre grande pulou do prato e me mordeu. Madame Zora dá os números cinco e catorze para peixe.


Enquanto a menina dorme em um sofá velho, o pai sustenta a família recolhendo as apostas e esperanças da vizinhança, mas o dinheiro é insuficiente para sustentar a todos e muito menos para convencer os filhos que o único caminho para melhorar de vida é a escola.

Sua melhor amiga tem explosões de violência, única forma encontrada pela menina de se libertar de tudo o que a sufoca, tornando Francie uma de suas vítimas. A vizinhança em sua volta vive em comunidade que se ajuda trocando xícaras de açúcar pela janela e tentando em meio ao sobreviver compartilhar seu apoio para as dificuldades do cotidiano. Sorrindo e sofrendo juntos conforme os obstáculos que enfrentam.

Meu pai tinha consertado o vazamento grande, mas não havia adiantado muito e, quando chovia lá fora, pingava dentro também.


O resultado são crianças criadas juntas e por conta, já que quando todos cuidam, nenhum cuida. E nisso as meninas irão vivenciar o assédio aos seus corpos, o preconceito e o abuso social sem receber as devidas explicações, enquanto decidem se os sonhos para o futuro conseguirão se manter vivos.


A escrita de Louise Meriwether

Ao optar em utilizar uma narrativa em primeira pessoa, onde o narrador é uma menina se despedindo da infância, a escritora norte-americana Louise Meriwether consegue dar leveza e fluidez em uma história onde racismo, fome, preconceito, injustiça social imperam em suas páginas.

As duas eram mais velhas que o restante de nós porque haviam repetido bastante de ano, e todos, inclusive as professoras, tinham medo delas.


Para quem vive em uma bolha como a minha, em alguns momentos chega a ser chocante a tranquilidade de como os personagens encaram as situações, sejam ela de assédio sexual, seja da desistência de sonhos, uma normalidade que nunca deveria ser considerada normal.

O fato de conter dentro da ficção momentos de autobiografia também mexerem com a minha cabeça, pois como uma boa escritora, Louise Meriwether nos coloca nas ruas do Harlem e não raro me peguei questionando em quantas ruas brasileiras não teriam meninas e famílias vivendo exatamente as mesmas situações, por mais inaceitáveis que elas sejam.


O que eu achei de Meu pai e suas apostas

Em Meu pai e suas apostas, mais do que pobreza, temos o limite com a miséria extrema, onde a família passa fome e frio, e o simples cargo de síndico para ganhar desconto no aluguel é suficiente para que eles não tenham auxílio do governo.

Eu tentava imaginar o que a havia deixado tão malvada.


Apesar dos pais de Francie desejarem que os filhos estudem, tentando acender o desejo de eles almejarem ir para uma universidade, as situações adversas desmotivam os irmãos da personagem, como nos lembrando que dependendo da situação, é mais do que querer, as vezes não sobra nada para poder.

O livro também permite que o leitor acompanhe o declínio de uma relação afetada pela fome, o marido que não aceita que a mulher trabalhe e se sente humilhado ao ter que aceitar que ela vá buscar dinheiro na rua, pode despertar conflitos de opiniões para quem vive quase cem anos depois, principalmente ao ver o cansaço e desespero diário que a mãe de Francie precisa administrar.

Simplesmente não se devia interferir nas brigas de rua do Harlem, ainda mais entre um homem e sua mulher.


No geral eu gostei bastante do livro, embora tenha alguns problemas de revisão, isto não impediu de a leitura ser fluída e chocante. Pois existe uma naturalidade latente em situações difíceis de aceitar, como de homens que trocam pão por passarem a mão no corpo das meninas. Ou na luta diária das mulheres sem rede de apoio, fazendo o possível e o impossível para garantir cada dia da sua família.

E claro o racismo pulsante, onde a violência é aplicada para admitir o que não se fez, onde sentenças injustas são proferidas, um dia-a-dia que não permite aos jovens criarem expectativas sobre qualquer futuro.

Ele só me incomodava quando eu estava sozinha, então eu sabia que ele não nos seguiria.


Um livro que não te permite finalizar a leitura de forma indiferente, seja pelo que se viveu pelas páginas, seja pelas comparações que podemos fazer com a nossa própria realidade.

Ficando a dica para quem gosta de livros com toques autobiográficos, que abordem períodos históricos, racismos e crítica social. E claro, para quem gosta de ler.


Meu pai e suas apostas
Daddy was a number runner
Louise Meriwether
Tradução: Petê Rissatti
TAG
2023 - 189 páginas
Publicado originalmente em 1970


sexta-feira, 15 de março de 2024

Arte importa



Sinopse: Uma emocionante ode de Neil Gaiman à criatividade, à imaginação e ao poder transformador da arte. “O mundo sempre se ilumina quando você faz algo que não existia antes”, diz Neil Gaiman na epígrafe de Arte importa, uma reunião de quatro textos breves e inspiradores do escritor sobre o fazer artístico. Com artes de Chris Riddell, ilustrador renomado e parceiro de longa data de Gaiman, o livro explora como ler, imaginar e criar livremente podem ser elementos revolucionários capazes de mudar o mundo. Com leveza e humor, Arte importa é um livro emocionante e necessário, um apelo inspirador à imaginação e à coragem de criar diante de momentos difíceis. “Seja valente. Seja rebelde. Escolha a arte. Ela importa.”

Em um livro curto, onde ilustração e texto se conectam de forma que o leitor não imagina um sem o outro, o escritor britânico Neil Gaiman explica os motivos de porque a imaginação de cada ser humano pode mudar o mundo em quatro partes, cujos títulos já despertam a curiosidade.

 Em Crença o autor nos convoca a refletir sobre ideia, da dificuldade de eliminar uma pela sua invisibilidade, sobre não censurar os que discordam de uma ideia, desde e não permitir que isso se transforme em violência para calar os que a defendem.

 
Creio que é difícil matar uma ideia, pois ideias são invisíveis, contagiosas e se disseminam rápido.

 

Violências como o ataque terrorista ocorrido no Charlie Hebdo, onde o jornal francês e seu conteúdo viraram notícias no mundo inteiro. Se a ideia do ataque era calar, o efeito foi exatamente o contrário, disseminando aos quatro cantos do mundo.

 Porque corretas ou incorretas, o autor acredita no direito de existir de cada ideia. Conectando a sua existência a liberdade de expressão, onde as únicas saídas permitidas é o debate ou virar as costas e ignorar, sem jamais censurar.

 As ideias já se propagaram, escondendo-se atrás dos nossos olhos, espreitando nossos pensamentos.


Em Porque nosso futuro depende de bibliotecas, leituras e devaneios o autor nos lembra de um dos melhores hábitos que podemos ter: ler por prazer. A ficção, com a ajuda de bibliotecas e bibliotecários pode fazer com que qualquer pessoa se apaixone pela leitura em uma relação mais eterna que a maioria dos relacionamentos.

 E pessoas que leem são mais capazes de - atenção para o link com o primeiro texto - trocarem ideias, argumentarem com as que são contrárias, sem desejar costurar a boca de quem a pronunciou.

 O modo mais simples de criar crianças leitoras é ensiná-las a ler e mostrar como a leitura é uma atividade prazerosa.


Motivo pelo qual um livro não teria faixa etária, tendo como função despertar que as crianças busquem mais e mais livros. Alimentando assim não só a imaginação, mas a empatia que cresce quando você se solidariza com cada um dos personagens.

Em Fazendo uma cadeira entre a montagem de uma cadeira de escritório há vários devaneios entre os passos que ele precisa executar e comparações com a escrita de um livro e que tipo de instruções ele deveria ter.

Bibliotecas representam liberdade. Liberdade de ler, liberdade de expressar ideias, liberdade de se comunicar. 


Quem fecha é Faça boa arte que começa falando da relação do autor com a escola, sua necessidade de escrever e os melhores conselhos que ele não seguiu ao escolher o mundo da arte como profissão.

Seguido pelos motivos dele ter escolhido determinados caminhos, de não pensar nas dificuldades, das indecisões que vão surgindo, da necessidade de equilíbrio entre sonhos e vida real.

 E naturalmente fazer uma boa arte, pois tudo é motivo para criar uma.

 

A escrita de Neil Gaiman

Escrito em primeira pessoa, Arte Importa parece uma conversa do escritor Neil Gaiman com os leitores. Ao refletir sobre assuntos ligados a ideias, imaginação, livros e escritas, ele compartilha experiências pessoais e opiniões.

As ilustrações de Chris Riddell complementam a experiência, tornando o bate-papo quase real, como se o leitor estivesse sentado em um sofá ouvindo o autor falar e gesticular, mostrar fotografias ou simplesmente acompanhando a montagem da cadeira.

 A ficção é a mentira que nos conta a verdade. Todos nós temos a obrigação de fantasiar. Temos a obrigação de imaginar.


O que torna o livro não só rápido de ler, mas também reflexivo.

  

O que eu achei de a Arte importa

 Recebi o livro Arte Importa como mimo na minha assinatura da Intrínsecos (que não existe mais) e ficou na fila para ser encaixado entre as leituras mais densas. E foi assim que ele entrou nas leituras de verão.

Achei a leitura bastante agradável, e nesta conversa em que apenas um fala concordei e discordei de algumas opiniões. O que, como o próprio livro diz, é saudável para seguirmos evoluindo. Compartilho abaixo os dois pontos cujas questões ainda estão martelando na minha cabeça.

Fazer um livro é um pouco como fazer uma cadeira. Talvez devesse vir acompanhado de alguns avisos, como nas instruções da cadeira.  


Em Crença Neil Gaiman defendeu a liberdade ampla das ideias após um ataque covarde a sede de um jornal, eu, por outro lado, lendo após sobreviver a uma pandemia onde ideias antivacinas completamente tortas contribuíram para milhares de mortes, me peguei pensando se realmente pode ser ampla para tudo. O que fazer quando uma ideia se transforma em desinformação e passa a prejudicar os outros, tornando sua disseminação tão mortal quanto um vírus?

E se por um lado eu concordo plenamente que nenhuma ideia é justificativa para ato de violências - aliás, não existe absolutamente nada que justifique um ato de violência - por toda a experiência pós-pandemia eu sigo com uma pergunta na minha cabeça: deve ou não haver limites legais para as ideias?

Se você não sabe que é impossível, fica mais fácil fazer.  


Já no texto sobre leituras, me fez lembrar de um livro que a minha filha pediu para ler e eu disse para ela esperar um pouco mais. O autor diz não haver livro impróprio, eu como leitora concordo que os livros instigam a imaginação e o conhecimento, proporcionando uma visão do cotidiano que muitas vezes não é discutido em casa ou sala de aula.

 Mas será que realmente não devemos levar em conta a idade de uma criança ou adolescente antes de lhe dar um livro para abrir? 50 tons de cinza ou a série Game of thrones são leituras para uma criança de 10 anos? E neste ponto eu discordo e acho que sim, como tudo na vida, a tipos de leitura para cada fase, conforme o amadurecimento do ser humano que estamos criando para o mundo.

Os problemas do fracasso são problemas de desencorajamento, desencanto, necessidade. Você quer que tudo aconteça, e quer na hora, e as coisas dão errado. 


De forma geral o livro foi uma grata surpresa, ao qual combina perfeitamente com o início de ano, já que ele de certa forma nos faz repensar não só a arte, mas a própria vida e de como podemos fazer o novo ano ser melhor. Afinal, todo dia é dia para usar a imaginação, buscar a própria sorte e escolher caminhos.

 

Arte Importa - Porque sua imaginação pode mudar o mundo
Art Matters: Because your imagination can change the world
Neil Gaiman
Ilustração: Chris Riddell
Tradução: Augusto Calil, Ângelo Lessa e Editora Intrínseca
intrínseca
2021 - 112 páginas
Primeira publicação na Grã-Bretanha em 2018

 

sexta-feira, 8 de março de 2024

O guarda-roupa modernista


Sinopse: Entre 1923 e 1929, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade formaram um par icônico da cultura brasileira. O casal Tarsiwald - apelido cunhado por Mário de Andrade -- se consagrou como um símbolo tanto no campo das artes visuais quanto no da literatura. Em O guarda-roupa modernista, a professora e pesquisadora Carolina Casarin mostra como os dois se apropriaram da moda para deixar a sua marca. Inédita, esta farta pesquisa revela como os ideais modernistas e as contradições do movimento podem ser compreendidos a partir da escolha das roupas de dois notáveis intérpretes do Brasil. 

Em O guarda-roupa modernista: o casal tarsila e oswald e a moda, a escritora alagoana Carolina Casarin compartilha sua pesquisa de doutorado relacionando diferentes registros da época: vestimentas, fotografias, pinturas, obras literárias, correspondências, depoimentos e recibos, para contar não só a história de um casal que marcou época pela sua personalidade, mas do próprio Brasil que começava a conhecer o modernismo.

O primeiro ponto a se observar é que, como já cantava Cazuza: vivemos em um museu de grandes novidades. E assim podemos dizer que o poeta Mário de Andrade foi quem iniciou a moda de shippar um casal com a utilização do Tarsiwald, sem a # por conta da época, obviamente.

Poucas peças do guarda-roupa de Tarsila e Oswald foram preservadas, e nem todas as que sobreviveram estão acessíveis ao publico.


Assim como mostrar uma sociedade intelectual burguesa que bebe muitos vinhos, viaja para a Europa e não dispensa a moda francesa para transmitir a sua mensagem e realizar o seu marketing pessoal através da roupa. 

No caso de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade as cartas registram as trocas de mensagens entre viagens, além de amenidades, listas de compras e indicações de estilistas, como Poiret, o favorito do casal modernista que curiosamente já havia perdido a popularidade na Europa por não se atualizar nas suas criações.

E, para Oswald, a "passagem" do Império para a República é um deslizamento de poder percebido de forma natural, mais continuação do que ruptura.


O livro aborda principalmente o período entre os anos de 1923 e 1929, tempo de relacionamento do casal título, que terminou justamente no ano da grande recessão, afetando não só os bolsos, mas como as relações sociais e amorosas da elite paulistana. Mas possui também citações de outros anos de ambos ao comentarem suas memórias.

Uma mistura de moda, busca pelo reconhecimento, arte e poesia entre os protagonistas do grande movimento cultural chamado modernismo no início do século XX, ao qual os ecos repercutem até os dias de hoje.


A escrita de Carolina Casarin

Por ser um livro baseado em uma pesquisa e de não-ficção, confesso que a escrita da autora Carolina Casarin me surpreendeu positivamente. Pois existe fluidez nos capítulos, tornando a leitura agradável.

Fazendo um paralelo com um documentário, os capítulos são bem divididos, e os textos conseguem misturar bem a pesquisa sobre as roupas e os fatos que estavam acontecendo tanto com o casal, quanto com os outros integrantes do movimento que originou o Modernismo.

Tarsila soube desfrutar de sua rara condição de autonomia, que lhe garantiu a liberdade de mulher adulta, manteve o desejo de independência e propiciou o contato com as novidades oferecidas pela vida cosmopolita.


A inclusão das fotos permite um entendimento melhor não só do estilo de roupa optado da época, como também observar por uma fresta um pouco da vida e as próprias obras da Tarsila, ao qual confesso ser fã.

Para quem deseja saber mais, ao final do livro estão listadas todas as biografias, notas e origens das informações utilizadas.


O que eu achei de O guarda-roupa modernista

Eu ganhei estes livros em uma ação comemorativa aos 100 anos do Modernismo feito pela editora Companhia das Letras. E devido ao meu tempo livre ter se reduzido nos últimos tempos, acabei postergando a leitura. Mas confesso que foi uma grata surpresa.

Por ser um trabalho de pesquisa dedicado ao detalhamento das roupas, dei uma pulada em algumas partes por ter achado mais maçante, até porque não sou da área nem uma aficionada em moda. Mas para os fashionistas de plantão, fiquei com a impressão que pode ser bem interessante, até pelo fato de a moda ser bastante cíclica.

O movimento modernista brasileiro foi amplo, com várias fases, e englobou literatura, artes plásticas, música e literatura.


O que realmente me atraiu foram os fatos históricos, as relações interpessoais da época, as personalidades que fizeram acontecer o movimento do modernismo, principalmente de Tarsila. 

Achei muito interessante conhecer um pouco mais da artista através das cartas trocadas e de comentários retirados de antigas entrevistas. Assim como o relacionamento do casal com a escritora Pagu, e fiquei imaginando se uma parte de Parque Industrial foi inspirada no que ela viveu junto ao grupo. 

As fotografias de grupo são exemplares para conhecermos os gestos, as poses e as fisionomias apreendidas pelos retratos.


Um livro de não-ficção que conta um pouquinho de uma geração do início do século XX que pode surpreender desavisados como eu e também quem curte saber sobre a influência da moda na nossa própria história.


O guarda-roupa modernista
o casal tarsila e oswald e a moda
Carolina Casarin
Companhia das Letras
2022 - 275 páginas

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Ela se chama Rodolfo


Sinopse: Murilo acaba de se mudar para um apartamento no qual a antiga moradora, Francesca, deixou uma tartaruga. Seguindo ordens recebidas por e-mail, tenta entregar o animal por meia Porto Alegre. A peregrinação parece inocente, mas a escritora Julia Dantas sabe que não há nada mais radical e transformador do que o encontro entre pessoas quando minimamente desarmadas.

Desde a pandemia virou tradição na TAG Curadoria enviar um livro mais leve em dezembro, e 2023 não terminou diferente. Recebi Ela se chama Rodolfo da escritora gaúcha Julia Dantas. A indicação foi do também escritor Tobias Carvalho. E o mimo foi um calendário com doze projetos gráficos tanto da Curadoria quanto da inéditos que já me faz companhia na mesa de trabalho.

Murilo é um professor e escritor frustrado que hoje trabalha como porteiro noturno. Contando os dias para sair de férias e ir atrás da ex-namorada Gabbriela, que ao resolver ir para um retiro espiritual em Goiás e só deixou lembranças e dívidas no cartão de Murilo, ele resolve alugar temporariamente um apartamento.

Alugar o apartamento de uma desconhecida, sem contrato nem garantias, era o tipo de ideia que ele jamais teria levado adiante sob circunstâncias habituais.


No banheiro do local encontra uma tartaruga sofrendo por falta de água. Após lhe reacender a vida, entra em contato com Francesca, dona do apartamento, para saber com quem pode deixar o animal

Entre as idas e vindas em busca do novo dono, há os conflitos de sua irmã Lídia, cujo marido em tratamento de câncer parece suga-la até a alma e Camilo, que um belo dia Murilo encontra dentro do apartamento e acaba ficando por ali mesmo.

Todos os dias, constata que o animal está saudável. Come, move-se, esconde a cabeça, o que mais poderia fazer?


E essa convivência irá fazer com que Murilo reflita sobre os últimos acontecimentos, revelando que nem tudo é exatamente como parece.


O que eu achei da escrita de Julia Dantas

Utilizando a narrativa em terceira pessoa, a autora Julia Dantas coloca o leitor para acompanhar as idas e vindas, encontros e desencontros do personagem Murilo.

E embora a história seja leve, ela também é arrastada, pois falta Porto Alegre se a intenção era fazer uma road book. E quem escreve aqui é uma gaúcha que mora justamente na capital do RS.

As lembranças o deixam exausto, cansaria menos se ficasse acordado.


Falta Porto Alegre nas descrições da cidade, onde parecem saídos diretamente do Google Maps, no chimarrão que não estava presente em nenhuma mão, nos diálogos onde não se encontra nenhum Bah.

Por outro lado, isso permite que a narrativa possa ser adaptada em qualquer lugar do mundo, até mesmo em um lugar fictício, já que não há muita descrição ou referência, tornando a história adaptável ao local do leitor.

Sempre a partir do fim da tarde, os urubus se jogam das alturas e despencam em velocidade terrível até a calçada. Não precisam disputar comida. Há de sobra para todos.


No geral um livro que pincela em seus capítulos  - curtos, sem número ou nome - várias situações, que vão de uma pessoa que estuda e acaba sem objetivo na vida até aquela que precisa confrontar a família para se sentir confortável com o que vê no espelho.


O que eu achei de Ela se chama Rodolfo

É curioso como a minha régua sobe quando se trata de um livro enviado pela TAG, mesmo quando se trata de livros mais leves. Eu espero que a história tenha um diferencial, que me apresente algo novo ou tenha algo diferente na narrativa. E infelizmente não é o caso de Ela se chama Rodolfo.

Começo com as várias movimentações do personagem pela cidade com o objetivo de encontrar um dono para a tartaruga: elas não acrescentam nada a história, e eu ficava e perguntando se não era mais fácil economizar as passagens de ônibus e entrar em contato via whats. Aliás, porque a própria Francesca, que tinha acesso a um e-mail, não fazia isso?

Não há jeito. Existe uma aparente incompatibilidade irreversível entre tartarugas e agricultores.


O motivo é que tanto na descrição dos lugares como nos diálogos com os figurantes que entram e saem em uma sucessão de negativas, tornaram esta parte da narrativa bastante enfadonha para mim, pois não acrescentam nada a história.

O personagem principal é um homem que não sabe o que quer da vida. O trauma de infância que cai no colo do leitor no meio da narrativa não surtiu nenhum impacto em mim. Sendo apenas mais uma muleta para um personagem que sai do nada e vai para lugar algum.

Sou do tipo que prefere manter distância dos excessos, inclusive os excessos de gente. Não sou bom com pessoas, e essa é uma expressão perfeita.


Como a narrativa é centralizada no Murilo, não ficamos sabendo muito sobre os personagens coadjuvantes, cujas participações demonstraram ter mais possibilidades para serem explorados. Principalmente Francesca que acaba sendo uma participação especial para justificar o nome da tartaruga. Aqui sim um ponto que achei bem perspicaz.

No geral achei a primeira metade do livro arrastada e repetitiva, a segunda metade melhora, mas não o suficiente para me encantar, e assim achei o livro mais ou menos.

A ideia de trocar palavras ocas com quem ele não tinha intimidade lhe parecia um imenso desperdício de vida.


Mas como ele pode provocar uma reação completamente diferente em você, fica a dica de uma leitura nacional, onde você não vai conhecer a cidade de Porto Alegre, mas quem sabe se conectar com alguns dos pontos abordados e ter uma relação bem melhor que a minha com o livro. 


Ela se chama Rodolfo
Julia Dantas
TAG - DBA Editora
2023 - 263 páginas
Publicado originalmente em 2022

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

O fim da eternidade


Sinopse: Um dos livros de viagem no tempo mais divertidos já escritos e uma das principais obras de Asimov, O fim da eternidade conta uma história de amor envolta em ficção científica da mais alta qualidade. O técnico Andrew Harlan é responsável por fazer pequenas modificações na história durante suas viagens no tempo. Por menores que sejam - tirar um objeto do lugar, interromper uma conversa -, cada uma dessas mudanças altera a vida de milhares de pessoas, evitando até catástrofes séculos à frente. Em uma de suas missões, conhece Noÿs Lambent, uma mulher que abala suas convicções e o faz questionar as regras do próprio trabalho, podendo colocar em risco o rumo da humanidade.

Andrew Harlan utiliza cápsulas para viajar entre os séculos. Nascido no século 95, desde que aos 15 anos se tornara um aprendiz na Eternidade, nunca mais retornara para casa ou viu sua família. 

Hoje ele exerce a função de técnico, um perfil que exige uma estrutura mental fria e impessoal, o que o torna bastante distante das demais pessoas que circulam na Eternidade, tornando-o bastante solitário. 

Não esperava nenhum movimento; nem para cima nem para baixo, para a esquerda ou para a direita, para a frente ou para trás.


Em cada viagem pelo tempo ele precisa se adaptar a cultura do século destino para passar despercebido na realização de suas mudanças, que por menores que sejam, geram mudanças que ecoam pelos séculos futuros, impactando em nascimentos, mortes e eventos.

Mas todas as suas crenças serão colocadas a prova em uma missão no século 482. Recebendo como parceira a tempista Noÿs Lambert, que conquista o coração e a mente do até então muito frio técnico, que irá rever e começar a questionar tudo o que viveu e aprendeu até se deparar com sua primeira paixão.

Tudo funcionava perfeitamente antes, mas agora tudo estava diferente para ele, e os pedaços do que havia se quebrado não poderiam ser juntados de novo.


E para viver esta paixão ele pode colocar em risco tudo o que se entende como a organização chamada Eternidade.


A escrita de Isaac Asimov

O escritor americano Isaac Asimov utiliza a narrativa em terceira pessoa para que o leitor acompanhe a jornada de Andrew Harlan em sua jornada pelo tempo e o desafio de tomar as próprias decisões.

Optando em já o apresentar como técnico, utiliza de pensamentos para pincelar como ele foi convocado a trabalhar na organização chamada Eternidade, suas funções anteriores e sua escolha para uma função tão desafiadora. 

A história que tentam ensinar aos Tempistas muda a cada Mudança de Realidade. Não que eles se dêem conta disso. Em cada Realidade, a história deles é a única história.


No primeiro capítulo o autor optou em deixar uma pulga atrás da orelha de quem inicia a leitura, e os capítulos seguintes vão em uma crescente de acontecimentos e situações que geram reflexões não só sobre alterar os acontecimentos passados, mas sobre a humanidade em si.

A tecnologia está presente, mas como uma coadjuvante para levar o personagem principal de um século a outro, o verdadeiro foco está nas atitudes dos Homens em si.

Acima de tudo, havia desenvolvido o sentimento de poder de um Técnico. Tinha o destino de milhões de pessoas nas pontas dos dedos e, se isso era fonte de solidão, também era fonte de orgulho.


A escrita no geral é fluída, inicialmente parece mais engessada, mas ela vai ficando mais solta no decorrer dos capítulos, aos quais todos possuem um título, deixando ganchos de uma passagem para a outra.


O que eu achei de O fim da eternidade

O que dizer de um livro cujo título já é um possível spoiler?

Confesso que não o achei divertido, já que não houveram gargalhadas durante a leitura, mas sim bem interessante as reflexões que ele proporciona ao longo da leitura e após sua finalização.

Teria de falar o menos possível, fazer o menos possível, ser o mais possível somente uma parte da parede. Sua verdadeira função era ser dois olhos e dois ouvidos.


Primeiro é o machismo explícito de um grupo chamado Eternidade que viaja pelo tempo alterando eventos e assim mudando diferentes realidades que em sua maioria é composta por homens em toda a sua hierarquia.

Curiosamente ao mudarem as grandes dores de nossa história, o ser humano para de evoluir e os séculos, apesar de terem culturas diferem, tendem a uma padronização a cada mudança realizada no passado.

Era muito pior do que apenas antiético, mas há muito isso não lhe importava. No último fisiomês tornara-se, aos seus próprios olhos, um criminoso.


A verdade é que a cada mudança parece que eles apenas pioram mais o cenário. O poder do homem de ser Deus, interrompendo outras vidas, mudando caminhos, me provocou como leitura uma certa inquietação, principalmente quando se pensa no período atual, em que estamos no meio de tantas guerras espalhadas pelo mundo e outros tantos desejos de invasão.

Seria bom consertar tudo isso e vivermos tempos de paz para tentar dar uma sobrevida ao nosso planeta? Com certeza. Mas aí teríamos que colocar mulheres para participarem das análises, algo vetado na Eternidade de Harlan, e assim termos sensibilidade em relação as pessoas afetadas. Ao mesmo tempo surge a pergunta quem somos nós para decidir os caminhos dos outros?

Um juramento de posse quebrado, que não era nada no 482, era execrável na Eternidade.


Voltando a ficção, em O fim da eternidade tudo muda quando um dos técnicos mais capazes se apaixona. E aí temos uma ficção científica love story que coloca o amor na batalha contra o poder de uma organização.

Confesso que fiquei curiosa se o filme De volta para o futuro se inspirou nele, principalmente na questão de uma pessoa não poder se encontrar durante as viagens. Também me recordei do filme Efeito Borboleta e da série Dark, onde temos as pequenas alterações no tempo e um vai e volta constante.

Ninguém o questionara. Ninguém o detivera. Haveria essa vantagem, de qualquer modo, no isolamento social de um Técnico.


Em resumo eu gostei, não achei o máximo, mas no geral a leitura me agradou. Achei o início um pouco arrastado, contrastando com o final que já prende bem mais, mesmo quando as descobertas feitas são um tanto óbvias.

Ficando a dica para quem gosta de ficção científica, histórias diferentes, reflexões sobre o comportamento humano e claro, quem não resiste a um livro que já quer ler.


O fim da eternidade
The end of eternity
Isaac Asimov
Tradução: Susana L. de Alexandria
TAG - Aleph
2023 - 256 páginas
Publicado originalmente em 1955


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Em algum lugar lá fora


Sinopse: A história se passa em uma região não especificada no sul dos Estados Unidos, por volta dos anos 1850, na fazenda Placid Hall. Nela, os escravizados — ou “Sequestrados”, como se autodenominam — são submetidos aos caprichos de um tirânico e excêntrico captor e nunca sabem o que pode lhes ocorrer além do trabalho físico desumano de todos os dias: um castigo brutal ou a venda inesperada de um ente querido. Porém, o que mais fere William, Cato, Margaret, Pandora e o Pequeno Zander é a falsa crença de que são incapazes de amar. Ainda que tenham aprendido o idioma e a doutrina religiosa de seus captores — chamados por eles de “Ladrões” —, possuem linguagem e rituais próprios e desejam, a todo instante, estar “em algum lugar lá fora”, uma realidade distinta daquela em que vivem. Até que o pastor Ramson, homem negro liberto com um passado misterioso, começa a incutir neles ideias de liberdade.

Em Novembro/2023 recebi da minha assinatura da TAG Curadoria o romance norte-americano Em algum lá fora do escritor Jabari Asim. A curadora foi da escritora e historiadora pernambucana Micheliny Verunschk. E o mimo foi um chaveiro literário.

A história começa quando William, aos quatorze anos, assiste uma das piores cenas que um ser humano pode presenciar: vinte crianças negras mortas, esquecidas em um barracão de madeira após a prisão de seu sequestrador. Para em seguida ele ser vendido a um fazendeiro dono de dez mil acres de terra. Seu novo lar, Placid Hall, era o centro de pesquisa deste homem branco sobre o comportamento de seus sequestrados.

Nossas privações eram muitas, e, no entanto, havia algum consolo em saber que existiam outros seres no mundo - ratos, digamos, ou cobras - que sofriam ainda mais.


Em Placid Hall William conhece Cato, que já nasceu escravizado em um lugar onde a senhora era gentil e o ensinou a ler, e até hoje recita as regras de um livro chamado As regras da civilidade para se acalmar. Ele e Willian dividem sua cabana com Zander, um menino sonhador que está nos primeiros anos da adolescência, tem uma grande fé e é sempre muito ativo.

As mulheres são representadas por Margaret, companheira de Willian, que não deseja que seus filhos nasçam escravos e vive a pressão do fazendeiro de engravidar. E por sua amiga Pandora, que já passou por várias humilhações nas mãos da senhora de Placid Hall, ao qual chama de Guincho da Coruja.

Uma língua que que sabe parar quieta é a base de uma cabeça sábia.


Os cinco conhecem Ransom, um homem de aparência calma e confiável que já foi escravo e hoje realiza a função de pastor itinerante pelas diferentes fazendas. Mas muito mais do que palavras religiosas, ele mantém vivo os próprios rituais africanos e planta nos corações que encontra o anseio por liberdade quando os ladrões não estão olhando.


A escrita de Jabari Asim

O escritor Jabari Asim divide a sua narrativa em nove partes, cujos títulos podem dar uma pista ao leitor do que irá encontrar nas páginas seguintes. Com raras exceções, os capítulos levam o nome do personagem que irá relatar os fatos a seguirem, utilizando a narrativa em primeira pessoa. A narrativa em terceira pessoa só ocorre nos capítulos sem nome.

Como base está a própria história da escravidão, com suas dores e injustiças, a cultura africana, com suas formas de fé, e o realismo mágico, que dá o toque de esperança em meio a tensão.

Os bebês que por milagre sobreviviam ao inverno eram mandados para os campos para trabalhar como espantalhos humanos assim que aprendiam a andar.


Os personagens, em um retrato fiel aos seres humanos, possuem origens, histórias e personalidades bem diferentes, embora o fazendeiro não se dê o trabalho de observar e muito menos anotar. Aliás, as observações feitas pelo pseudo pesquisador dão uma ideia para quem não é descendente de escravos o tipo de mentalidade que os escravagistas tinham para acreditar terem direito de subjugar um outro ser humano e assim se sentirem livres para praticarem atos desumanos.

Outro fato curioso são os termos utilizados pelo autor, aqui não temos o uso de termos como proprietário ou dono, mas ladrões, e o termo escravizado por sequestrado. Lembrando que sim, que foram ladrões que entraram dentro do território do continente africano e sequestraram vidas humanas de suas aldeias, famílias e amores.

Não existe deus nenhum, e as únicas coisas em que dá para acreditar são a brasa do verão, o gelo do inverno e a força das minhas mãos.


Tudo em uma escrita forte, que transfere o leitor para a fazenda e o faz sentir junto com os personagens cada situação, suas tristezas, pequenas alegrias, injustiças e sim, esperanças.


O que eu achei de Em algum lugar lá fora

Gostei muito da divisão dos capítulos, que são curtos e intensos. Também gostei das diferentes visões das situações, o fato de cada personagem ter suas características tão definidas me cativaram como leitora, tornando fácil imaginar o dia-a-dia na fazenda, sofrer com as dores de uma violência sem justificativa e entender as dúvidas e certezas em relação a fé.

O toque fantástico amplia as cenas, lembrando as histórias que foram passadas oralmente, mas aqui vividas por completo. Tudo complementado pelo respeito aos ancestrais, a mistura de coragem e medo, gerando uma contrapartida as palavras pronunciadas pelos aqui chamados ladrões, principalmente o dono da fazenda, cujos diálogos beiram o absurdo.

Nós nos movíamos como se estivéssemos perdidos em sonhos; comíamos sem sentir sabor, dormíamos sem descansar, ouvíamos sem escutar.


A leitura também me fez recordar dois livros: The Underground Railroad - que trata da fuga de Cora, uma escrava presa em uma plantação de algodão na Geórgia - e A Dança Da Água - que também mistura o desejo de liberdade de escravos na Virgínia com realismo fantástico.

Um livro que eu gostei e me tocou, e assim deixo aqui recomendado para quem se interessa por história, pelo período da escravidão, literatura fantástica ou simplesmente gosta de ler.


Em algum lugar lá fora
Yonder
Jabari Asim
Tradução: Rogerio W. Galindo
TAG - Instante
2023 - 255 páginas
Primeira publicação em 2022

Post não patrocinado, assinatura paga pela autora do post.