segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Uns e outros – Contos Espelhados



Esta coletânea é um verdadeiro desafio a qualquer escritor. Realizar a releitura de clássicos, e ter o seu texto submetido após a leitura de originais muito bem escritos, instigadores e que levam o leitor a carregar a ideia em seu pensamento durante horas e às vezes até dias.

Quem dá as boas-vindas ao leitor é James Joyce e sua Eveline, onde medos e promessas cruzam a personagem em um momento crucial, aquele em que ela deve escolher a oportunidade de buscar a felicidade ou continuar abraçada ao passado e ser engolida por um não futuro que ela já conhece muito bem. A releitura foi realizada por Beatriz Bracher em A Morte da Mãe, onde a uma inteligente mudança do personagem, um olhar diferente, não dando continuidade ao original. A escritora optou em transcrever trechos de outros contos de Joyce e isso me pareceu ter prejudicado a fluidez do texto. Se no original temos uma prisioneira da violência, no segundo as grades são um momento, embora frágeis, elas não limitam o físico, sendo sombras na mente. 

A segunda dupla é encabeçada por um autor que gosto muito: Ernest Hemingway, cujos textos são atemporais. Com sutileza ele vai situando o leitor até chegar ao último ponto final. Não fica claro de início o que os personagens representam em O Fim do Algo, embora o local tenha simbologia de término. Luiz Antonio de Assis Brasil inverte o foco dos personagens em seu Inicio de Alguma Coisa, agora o local tão bem utilizado por Hemingway está num terceiro plano. Em alguns diálogos me fez lembrar a brincadeira de telefone sem fio pelas sutis mudanças do original. Mas é impossível não sorrir com o seu final. 

Os Desastres de Sofia de Clarice Lispector é recheado de detalhes pelo perfil importuno da menina, existe uma perda, existe a compensação ao se agarrar em um amor platônico por uma pessoa que parece tão sem nada como ela. Existe medo ao ver uma reação e tudo se mistura de forma filosófica, fazendo o leitor ter carinho por esta menina. Já Eliane Brum trás em seu Simplício um toque de Lolita, tendo também utilizado a troca de personagens para se colocar na visão de um professor. Linguagem de imagens fortes e de certa fome da alma transferida para os alimentos.

Saindo do tenso vamos para o cômico e super atual Teoria do medalhão, onde Machado de Assis coloca um pai explicando no aniversário de 21 anos a forma de se realizar política. Praticamente um manual prático conforme é possível observar nas páginas do jornal. Aqui está à releitura que menos gostei, com o título de O Futuro Político (Primeiro Ato), Milton Hatoum utiliza a formatura em direito de um filho de advogado, entre acusações e troca de profissão, seria o combate entre um discurso antigo e o facebookiano. Existe a clara comparação dos tempos, se o filho de Machado escuta, o de Milton discute. Mas se o de Machado está entrando na vida adulta, o de Milton fala muito, mas depende da família, a independência está em seu discurso, e só.

O racismo em dois tempos, se mesclando quase como continuação, e não releitura. A Negrinha de Monteiro Lobato é filha de escravas, órfã, sendo criada como um saco de pancada de uma virtuosa e cristã senhora. Ali está a menina pobre sem brinquedos, sem amor, sem futuro. É um conto dolorido, que ainda não acabou e encontra eco no Negrinha! Negrinha! Negrinha! De Ana Maria Gonçalves, onde o ato da adoção que deveria trazer o amor encontra na fonte de educação a dor, o descaço, a diferença, a tolerância com o intolerável.  Entre imagens a ser preservadas, está o coração de uma criança e nas mãos de uma mulher se ela irá realmente ser mãe.

Em mais um conto de Machado de Assis (campeão das escolhas para releitura), Pai contra Mãe trás a visão de um caçador de escravos, fonte do sustento da sua família. Profissão que se torna comum conforme falta trabalho e todos os que precisam de dinheiro aderem em busca das recompensas. Em um mundo sem escolha há pouco espaço para o diálogo e quem dirá pena. Entre você e eu, é sempre você que ficará com a pior parte. Misturando Brasil e África, Paulo Lins conta a história de Pipa Sande que de vendedor se torna produto. Entre voltas e reviravoltas, o autor mistura história e ficção em um conto de leitura rápida e interessante.

Katherine Mansfield trás o casamento de William e Isabel em seu Marriage à La Mode. No original, temos a visão do marido, um homem que trabalha a semana inteira em outra cidade e tenta passar os finais de semana em família. Tenta pelo fato do final de semana narrado os filhos estão fora, a casa está tomada de escritores e afins, todos amigos da esposa, e esta que não trabalha, sustenta os gostos dos mesmos. Ivana Arruda Leite em sua Rainha das Fadas resolveu dar voz a um destes amigos: Moira. Em um texto que me pareceu às vezes feminista, mas que não consegue esconder a superficialidade de Isabel. Se no primeiro conto fica a impressão de que o casal precisa conversar, no segundo dá vontade de mandar Isabel trabalhar.

Em Um Homem Célebre Machado de Assis (sim, ele novamente) nos apresenta a Pestana, um homem que sonha em fazer sucesso com uma música clássica, mas o encontra nas polcas, e isso o deprime de forma intensa, em um conto onde o que idealizamos impede de ser feliz com a realidade. José Luís Peixoto usou o mesmo título e personagem, mas o transformou em escritor. Mas ao contrário do primeiro, seu público é menor, e sim, ele escreve o que considera clássico, e inveja os escritores best-sellers. E isto possibilita realizar uma brincadeira com o leitor, o que dá um charme a mais no que parecia ser apenas uma troca de profissão com atualizações tecnológicas.

Eu já conhecia O Colar de Guy de Maupassant, onde a ambiciosa Mathilde paga um preço alto ao desprezar o que tem para parecer o que não tem. Ele sempre me lembrou das histórias da Disney, onde parece haver uma lição de moral, mas sua narrativa fluída e a agonia dos personagens não deixam de mexer com o leitor. Na releitura de Maria Valéria Rezende o conto vira Um Simples Engano e a antiga Paris virá o Rio de Janeiro nos dias de hoje, com sua periferia e violência. Foi a releitura mais fraca na minha opinião, e o final me pareceu um pouco inverossímil pelo bem escolhido para substituir o colar.

Para fechar o amor, na versão masculina está nada menos que Liev Tolstói e seu Depois do Baile, onde Ivan conta sobre uma paixão que mudou sua vida. A versão feminina vem através da Beatriz de Cristovão Tezza e O Herói da Sombra. Em comum o que os faz desistir de uma paixão no seu auge e uma escrita fluída, que prende o leitor e encerra com chave de ouro.

Um livro para os leitores se divertirem e os escritores brincarem imaginando o que gostariam de reescrever ou atualizar. Como toda coletânea haverá os preferidos e os literaturados. Os clássicos foram muito bem escolhidos, e a organização no todo está de parabéns.

Uns e Outros  - Contos Espelhados
Organização Helena Terra e Luiz Ruffato
Editora Dublinense
Edição TAG
2017 – 272 páginas

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